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13 outubro 2024

A primeira pedra


Pedro Machado abre A PRIMEIRA PEDRA com epígrafes que dão o tom e o ritmo das narrativas do livro. O trecho do Evangelho de João em que Jesus diz “aquele de vocês que nunca pecou atire a primeira pedra”, o poema de Cruz e Sousa em que o eu-lírico assume a voz de Jesus e diz ao destinatário “sei que cruz infernal prendeu-te os braços” e o trecho de texto de João do Rio em que se lê sobre um pastor que “sonhava com o domínio temporal e a Câmara dos Deputados” são os motes trabalhados por Pedro ao longo de 14 narrativas. Essa consciência no uso das epígrafes é fundamental, por exemplo, para entender as pedreiras que os personagens precisam quebrar para ser e estar no mundo, pois serve de dispositivos para leituras de textos cujos títulos são “Jesus Negro”, “Vó Benedita”, “Jerusalém Desolada”, “Todos contra Sara”, “Pele Sagrada”. Se os contos podem ser lidos no modo aleatório, a sequência montada pelo autor cria uma narrativa em que uma história insemina a seguinte e faz com que a “pedra” do título do livro seja a protagonista. As personagens de Pedro Machado têm como emblema o humano cotidiano de quem faz do morro carioca o monte Sião. O ethos religioso é o tempo e o espaço por onde os personagens negros evangélicos e ex-evangélicos transitam. Do primeiro conto ao derradeiro diálogo do livro há um coro de vozes dissonantes cantando a dificuldade e a glória de estar vivo. Jeferson, Josué, Jeremias, Jonas, Davi, Josias, Salomão são homens-de-fé apresentados por Pedro Machado sem o véu do exotismo e do voyeurismo que por tanto tempo ainda encobre corpos e subjetividades negros obrigadas a “disciplinar sua alma à força”.

29 setembro 2024

Efrain Almeida


A obra de Efrain Almeida comove desde o primeiro contato. O lirismo de suas esculturas remete-nos a uma quietude anterior à civilização (à destruição do "natural") e a um universo mitológico irrestituíveis. Suas peças são ex-votos à natureza das coisas e do ser - sejam os passarinhos e insetos que parecem empalhados espalhados no chão cru de uma galeria, sejam os colibris cujo voo estaciona porque o bico está preso. Esse lirismo evoca o interior de um Brasil tropical e desértico, vasto, preservado na memória de quem experimentou o lugar geográfico chamado Norte-Nordeste. A artesania irreprodutível das autoesculturas do artista, que de tão mínimas lembram o tamanho do Homem diante da imensidão da existência coletiva, traduz os biografemas relacionados ao corpo, à sexualidade e à religião de quem habitou esse lugar. "Sobre o lado ímpar da memória  / o anjo da guarda esqueceu / perguntas que não se respondem", escreveu João Cabral. Por isso, não há saudosismo nem desejo ingênuo de restituição, mas sim gesto contundente com foco no silêncio preso nas gargantas ruidosas na modernidade. "Assentados de modo esparso sobre paredes amplas, bases largas ou folhas brancas, esses trabalhos têm o tamanho do que a mão acolhe e solicitam a aproximação do olho para serem vistos. Voltados para o espectador em busca de cumplicidade, parecem entregar sempre algo - ou a si mesmos - em oferenda, assumindo um tom confessional e sedutor que confunde - de modo medido e insinuado, mas insistente - religiosidade e erotismo", escreve Moacir dos Anjos no texto monográfico que compõe o livro EFRAIN ALMEIDA lançado pela Cobogó em 2010 com imagens dessa obra até aquele momento. E Efrain continuou criando e inventando até 2024. Ocupando galerias, bienais, feiras e demais espaços do mercado de arte, as peças (os pedaços) de Efrain Almeida focam na vigília daquilo que não cabe nesses lugares de consagração. "Eu preciso de minhas memórias. Elas são meus documentos. Eu as vigio", diz Louise Borgeois na epígrafe do livro - dando-nos a chave para essa poética cúmplice do "lado ímpar da memória", singular, autoral, comovente.

22 setembro 2024

Ar de provença


Sempre que Augusto de Campos assina algo toda uma imensa tradição de poesia se movimenta junto, oxigenando o labor com (e a reflexão sobre) a palavra poética. E a relação de Augusto com a tradição tem raízes profundas na música. Por exemplo, foi de texto de canção do trovador provençal Arnaut Daniel que os poetas concretos brasileiros pinçaram e ressignificaram o termo "noigrandes" - "(...) olors de noigandres" característica de flor [de noz moscada?] cujo perfume liberta-nos do tédio [olors (perfume), enoi (tédio), gandres (do verbo gandir, libertar)]. Incorporado ao vocabulário e à prática poética, o termo deu nome à revista que Augusto, Haroldo de Campos e Décio Pignatari editaram em 1952 e ao grupo depois composto também por Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald. Desde então, Augusto de Campos tem desempenhado o trabalho de revocalizar (recolocar na voz; transcriar) textos que, vocais em seus contextos de criação, hoje acessamos apenas impressos nas páginas de livros raros. AR DE PROVENÇA é exemplo disso. No CD encartado ou por Código QR podemos ouvir cantos (na voz de Antoni Rossell) e oralizações (na voz de Augusto) de duas canções de Arnaut Daniel (que "adotou um modo de trovar em rimas raras, razão por que suas canções não são fáceis de entender nem de aprender"), uma de Marcabru ("temido pela sua língua, pois dele era tanto o maldizer") e uma de Bernart de Ventadorn ("pobre de nascimento (...) sabia cantar e trovar bem e tornou-se cortês e instruído") - todas traduzidas por Augusto de Campos. A bela edição que a editora Cobalto preparou para AR DE PROVENÇA reedita textos, traduções, intraduções e imagens singulares para a compreensão da poesia inventiva e experimental brasileira. Destaquem-se ainda a flauta de Valeria Bittar, a rabeca de Luiz Fiaminghi e a parceira sempre potencializadora de belezas entre Augusto e o produtor musical Cid Campos.

01 setembro 2024

Jardim botânico


Nuno Ramos é artista polivalente. Em tese de doutorado recém defendida, Carlos Gomes de Oliveira Filho observou que na obra de Nuno Ramos encontramos "a presença de uma matéria-canção enquanto dispositivo crítico que distende as fronteiras presentes nos diversos campos artísticos e nos consequentes sistemas culturais em que essa matéria circula". Isso diz bastante do livro de poema JARDIM BOTÂNICO. Aqui vozes que muitas das vezes aparecem em itálico (sendo ou não citação direta de algum outro texto de terceiros) se infiltram e compõem a voz do sujeito poemático que dramatiza a própria partilha da escrita: "Minha incapacidade de morrer / povoa o tempo com palavras", lemos. E são palavras (o nome de) o que, na ausência das plantas, povoam as página do livro. "Aqui os nomes das plantas / crescem no lugar das plantas", dizem os dois primeiros versos de JARDIM BOTÂNICO. A imagem de uma onça queimada atravessa o livro em que cada poema parece desdobrar, redobrar o poema anterior. Ao ponto de, ao final, o escritor recolher muitos dos fragmentos de imagens proliferadas (semeadas) ao longo do texto, do jardim (selvagem, do mal). "O que temos então diante de nós é um solilóquio corajoso em que o poeta se embrenha a questionar-se sobre o valor e o sentido de suas próprias vivências", escreve Leonardo Fróes na orelha do livro. Qual é o papel do artista num mundo em que a jangada salva-vidas é de garrafas pet, esse elemento da natureza moderna? "De que fala este poema? / Essa é a pergunta, Nuno", escreve o poeta inscrito na escrita. Quem é leitor da obra de Nuno Ramos vai identificar algumas recorrências temáticas, como a referência ao "pau", ao sexo físico. A reflexão sobre o homo sapiens macho e "seu medo medonho de não ter uma voz" se mantem como uma questão da poética do escritor. "A vida que te deram era grátis, Nuno, nenhum preço a pagar", lemos aqui; "à palavra excitada / ereta, lubrificada / pronta pra enfiar / a mensagem na orelha da vítima", lemos ali. JARDIM BOTÂNICO é aquilo que numa "folha pousa / na prosa medrosa dos meus versos"; é a matéria-canção excrítica e escrítica do agora expandido, "onde letra e matéria dão match". E onde "eu era a onça queimada".

25 agosto 2024

Rebeldes e marginais


O subtítulo do livro REBELDES E MARGINAIS dá conta de apresentar aquilo que é tratado, ou seja, a "cultura nos anos de chumbo (1960-1970)". "Durante um grande período, estudei a fundo nossa produção cultural brasileira sob a mão pesada ditadura militar e da censura", escreve Heloisa Teixeira na Apresentação do livro que reúne fontes e reorganiza o material que a autora produziu sobre esta "época mágica, quando a cultura enfrentou estruturas, ditaduras e soube sonhar novos futuros". Equilibrando diagnóstico e terapêutica, a autora se reafirma como intérprete incontornável do período. E em REBELDES E MARGINAIS a parceria de trabalho entre Heloisa Teixeira e Marcos Augusto Gonçalves merece destaque. Com Marcos, a professora desenvolveu projetos fundamentais - "Cultura e participação nos anos 1960", "Impressões de viagem", etc. Por exemplo, em depoimento a ele, lemos Caetano Veloso afirmando sobre o Tropicalismo: "a gente fez essa coisa com grandeza, colocando em xeque a pequenez dessa elite colonial que é a sociedade brasileira, uma nação que não é ainda inteiriça, que não acontece, onde as coisas não rolam e onde as pessoas não têm acesso a quase nada". REBELDES E MARGINAIS traz códigos para acesso a entrevistas e documentos audiovisuais raros de Heloisa Teixeira, tornando a leitura "viva" e estimulando quem lê a pesquisar também.

18 agosto 2024

A guerra invisível de Oswald de Andrade


A GUERRA INVISÍVEL DE OSWALD DE ANDRADE é um livro notável. A sensibilidade com que Mariano Marovatto reconstrói as intempéries vividas pelo controverso modernista dá conta de traduzir em perfil ensaístico aquilo que de mais complexo há na obra e na vida de Oswald: seu impulso de universalização da arte brasileira com foco na nossa distintiva "antropofagia", e no "tropicalismo literário", como registrou Roger Bastide, e no "tumultuoso aglomerado de raças", nas palavras do próprio Oswald. Isso porque Mariano apresenta um Oswald com olhos e ouvidos livres, mesmo que por vezes, devido ao contexto crítico de guerra, assombrado com os encaminhamentos de ideias e ideais de "progresso". "Oswald escrevia na mesma velocidade em que o mundo girava. Convencia-se de que, ao experimentar o Zeitgeist, pudesse talvez mudar o curso dos acontecimentos", escreve Marovatto. A GUERRA INVISÍVEL DE OSWALD DE ANDRADE é resultado de pesquisa, levantamento de dados e, repito, sensibilidade, naquilo que o momento ainda hoje guarda de difuso e pouco conhecido: a viagem de Oswald e Julieta Barbara a Europa e a urgência de retorno ao Brasil na eclosão do nazismo. Mariano defende que essa viagem frustrada (esse trauma) repercutiria para sempre (como um totem) nas intuições e perspectivas críticas oswaldianas. "Levando em consideração que a autoficcionalização de sua biografia foi notável e constante", Marovatto lança luz sobre esse transe do autor de Marco zero que, defendendo a autonomia cultural e social brasileira, afirmara: "as catacumbas líricas ou se esgotam ou desembocam nas catacumbas políticas".

11 agosto 2024

Haroldo de Campos Transcriação


Entre os incontornáveis textos de Haroldo de Campos que Marcelo Tápias e Thelma Médici Nóbrega reuniram em HAROLDO DE CAMPOS TRANSCRIAÇÃO destaco "tradição, transcriação, transculturação". Nele Haroldo pensa "o ponto de vista do ex-cêntrico", afirmando que "a literatura brasileira nasceu sob o signo barroco" da "expropriação, reversão, desierarquização" e marcada por "complicado quimismo em que já não é possível distinguir o organismo assimilador das matérias assimiladas". Isso se espraia ao longo dos tempos e de várias formas. Por exemplo, "Machado de Assis não representa um momento de aboutissement, mas sim um momento de ruptura. Seu nacionalismo não é mais o nacionalismo ingênuo de certos românticos de aspirações ontológicas, mas um nacionalismo 'crítico', 'em crise', dilacerado, em constante diálogo com o universal". Haroldo está interessado naquilo que também interessava Hélio Oiticica (em entrevista a Ivan Cardoso), a saber: "O artista só pode ser inventor, senão ele não é artista". Inventar é devorar criticamente suas referências. Daí o conceito de transcriação haroldiano estar na mesma clave semântica da antropofagia crítica de Oswald de Andrade, no que se refere ao trato da língua e da linguagem polilíngue do Brasil. "A politópica e polífônica civilização planetária está, a meu ver, sob o signo devorativo da tradução lato sensu. A tradução criadora - "a transcriação" - é a maneira mais fecunda de repensar a mímesis aristotélica, que marcou tão fundamente a poética do Ocidente", escreve Haroldo. E nisso o Brasil pode oferecer experiência e prática.

04 agosto 2024

Introdução à poesia oral


"Além de um saber-fazer e de um saber-dizer, a performance manifesta um saber-ser no tempo e espaço. O que quer que, por meios linguísticos, o texto dito ou cantado evoque, a performance lhe impõe um referente global que é da ordem do corpo. É pelo corpo que nós somos tempo e lugar: a voz o proclama, emanação do nosso ser. (...) tudo se colore na língua, nada mais nela é neutro, as palavras escorrem, carregadas de intenções, de odores, elas cheiram ao homem e à terra (ou aquilo com que o homem os representa). A poesia não mais se liga às categorias do fazer, mas às do processo: o objeto a ser fabricado não basta mais, trata-se de suscitar um sujeito outro, externo, observando e julgando aquele que age aqui e agora. É por isso que a performance é também instância de simbolização: de integração de nossa relatividade corporal na harmonia cósmica significada pela voz; de integração da multiplicidade das trocas semânticas na unicidade de uma presença". Bastaria Paul Zumthor ter feito essa anotação e toda a sua teorização se desdobraria. Mas ele fez muitas outras, tão luminosas quanto. INTRODUÇÃO À POESIA ORAL é livro de cabeceira de quem pensa a performance enquanto produção de presença, recusa à privatização da linguagem, elaboração coletiva de pertencimento, compreensão da ontologia da voz.

28 julho 2024

Por entre traços e cores


No texto "Eu nunca quis pouco: as capas de Caetano Veloso" (ver livro "Lamber a língua: Caetano 80"), Aïcha Barat  pergunta-se "qual relação Caetano cria com suas capas ao longo de sua carreira? Como elas ecoam seu projeto artístico e por que elas são terreno fértil para se refletir sobre sua obra?". Essas perguntas podem ser levada para a obra de outros artistas da canção brasileira. É o que faz Aïcha Barat noutros textos e na tese de doutorado, mas também Delzio Marques Soares no seu livro POR ENTRE TRAÇOS E CORES, em que analisa "a retórica do design nos lps da Tropicália". "Quais recursos argumentativos foram empregados no projetos gráficos de cada uma dessas capas?", pergunta-se Delzio. Com base na Retórica do Design Gráfico, o autor desenvolve argumentações luminosas para as "capas-embalagens" enquanto extensão do projeto estético-cancional de discos fundamentais de nossa história da canção. Depois de pertinente revisão bibliográfica sobre retórica, argumentação e linguagem visual, Delzio ilumina a importância da visualidade como parte fundamental da comunicação ético-poética da Tropicália. As cores vibrantes, os ícones pops, Gil de fardão da ABL, Caetano emoldurado por bananas, serpente e ninfa, a indumentária dos mutantes, os anúncios da liquidação de Tom Zé, a pose melancólica de Nara, o tropicaos de Druprat e o jardim de inverno de "panis et circencis" entram em rotação na leitura crítica de Delzio. "É nesse sentido que me propus analisar as capas dos sete álbuns tropicalistas: tornando-as como discursos, inventariando seus recursos argumentativos como resultado de um projeto de Design, para poder confrontá-los com esse ethos tropicalista", escreve e executa o autor de POR ENTRE TRAÇOS E CORES, livro que nos ajuda a compreender a Tropicália enquanto projeto verbivocovisual.

21 julho 2024

Anos 70 ainda sob a tempestade


O livro ANOS 70: AINDA SOB A TEMPESTADE reúne os cinco volumes publicados separadamente por área - música, literatura, teatro, cinema e televisão - e escritos no calor e no temor da hora. Eram os anos cinzas do governo militar. Os textos publicados sob coordenação de Adauto Novaes diagnosticavam o estado das artes num contexto de invenção e resistência, desbunde e protesto. Aqui reunidos esses textos ajudam a perceber o que permaneceu, o que pereceu, mas, principalmente, os esforços de intelectuais e artistas que apostavam na crítica em momento de crise aguda. Censura e autocensura podem ser rastreadas em cada interpretação vertida agora em documento que nos ajuda a ler um contexto ético e estético ainda pouco entendido e analisado. "O tempo nos distanciou dos anos 70 para que pudéssemos ganhar o direito de falar deles mais livremente", escreve Adauto. Por motivo de trabalho e interesse de pesquisa acadêmica, os volumes "música" e "literatura" sempre estão à mão. Como ouvir canção do mesmo modo depois de ler no texto de José Miguel Wisnik que "no Brasil a tradição da música popular, pela sua inserção na sociedade e pela sua vitalidade, pela riqueza artesanal que está investida na sua teia de recados, pela sua capacidade de captar as transformações da vida urbano-industrial, não se oferece simplesmente como um campo dócil à dominação econômica da indústria cultural que se traduz numa linguagem estandardizada, nem à repressão da censura que se traduz num controle das formas de expressão política e sexual explícitas, e nem às outras pressões que se traduzem nas exigências do bom gosto acadêmico ou nas exigências de um engajamento estreitamente concebido"? Sem falar nos textos de Ana Maria Bahiana e Margarida Autran. É por isso e muito mais que ANOS 70: AINDA SOB A TEMPESTADE é livro de cabeceira.

14 julho 2024

ABC do Sérgio Cabral


Certos historiadores guardam o privilégio de terem estado no momento histórico que historiografam e fazem da própria obra a historiografia precisa e o arquivo aberto dos acontecimentos. É o caso de Sérgio Cabral. Suas biografias, suas colunas, seus textos e livros de crítica de canção popular, mais do que registrar a história, assentam conhecimento e vivência. "Ele se tornou parceiro de compositores, amigo de músicos, diretor de espetáculos e produtor de discos. Esta proximidade gerou grande parte das histórias deste livro e foi o que certamente lhe garantiu escrevê-lo", diz Roberto Moura na quarta capa de ABC DO SÉRGIO CABRAL, volume de 1979 que traz "um desfile dos craques da MPB" - de "A de Alvaiade conta Portela" até "Z de Zé Kéti", passando por uma série de personalidades e entidades que compõem o espírito das ruas da cidade do Rio de Janeiro, matéria maior da obra de Sérgio Cabral. Dentre sua vasta produção, destaco ABC DO SÉRGIO CABRAL por seu texto precioso sobre Caninha (José Barbosa da Silva), segundo Cabral, "adversário cordial de Sinhô, Caninha dividiu com o Rei da Samba a honra de ser autor dos maiores sucessos populares da década de 1920". Quem mais escreveria sobre Caninha? E sobre Alvaiade? Sérgio Cabral tinha a generosidade de quem faz do arquivo de sua pesquisa um bem público, estimulando quem lê a pesquisar, a se interessar pelo narrado. Pode-se consultar o valioso arquivo físico de Cabral, mas e os causos, e a narração dos acontecimentos? Poucos sabem contar. Sérgio Cabral sabia.

07 julho 2024

Mar paraguayo


Ao tratar daquilo que chamou de “tradição de uma fala delirante na cultura brasileira”, da qual o diretor José Celso Martinez Corrêa fazia parte, Ericson Pires observou que “a ideia de fala delirante é construída a partir da percepção de uma série de ressonâncias e tunelamentos entre obras e autores dentro da produção artística e cultural brasileira que apresentam, no caráter delirante, uma parte pulsional da obra/vida” (ver livro Zé Celso e a Oficina-Uzina de corpos). Isso nos ajuda a pensar também a literatura de Gregório de Matos, Sousândrade, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, José Agrippino de Paula, Haroldo de Campos, Caetano Veloso, Jorge Mautner, Wilson Bueno - todos autores que lidam com o delírio sonoro da palavra escrita no Brasil, experimentando materialidades fônicas, a partir da coloquialidade e da prosódia do país. MAR PARAGUAYO é ótima partilha do sensível disso. "(...) y esto es como grafar impresso todo el contorno de uno cuerpo vivo en el muro de la calle central", diz a voz narrativa a certa altura dando a chave daquilo que ela realiza em dicção multilíngue. Wilson Bueno coloca o leitor à deriva, como a voz que confidencia: "(...) añaretã, añaretãmeguá, com mucho miedo, los confidencio, a vos, lectores invenctivos, mas invenctivos que la invención de mi alma cautiva de estos derrames, de estos exageros de tangos y guarânias harpejadas dolientes in perfecta soledad a la margen de los lagos ô de las montañas, a vos, que me descifraron en outra dimensión, a vos confidencio: hay una duda, una gran duda, morangú, que me persegue por la casa e toda vez me pone, como já expliquê, me pone al rastro del infierno (...)". É essa vida em estado de delírio o que MAR PARAGUAYO nos faz experimentar.

30 junho 2024

Caetano Por que não?


De toda a vasta bibliografia que a obra de Caetano Veloso tem, o livro de Ivo Lucchesi e Gilda Korff Dieguez merece destaque. Definido como "uma viagem entre a aurora e a sombra", CAETANO. PORQUE NÃO? usa a pergunta da canção "Alegria, alegria" para passar em revista crítica a discografia e as falas públicas do organizador do "movimento" Tropicália até 1993. Trabalho excepcional de garimpo, singularidade, curadoria e ajuste por temas. As mutações todas de Caetano são postas em justaposição que dá o tamanho exato da presença do artista na cultura brasileira. Basta dizer que o livro guarda 516 depoimentos dados por Caetano entre 1966 e 1993. Destaque a paixão pela palavra, pelo uso inventivo da palavra poética e crítica. "Corpo, individual ou coletivo, é sempre fonte de prazer ou dor, liberdade ou prisão, desejo ou sublimação. No caso, a obra de Caetano aponta para a opção pelo prazer, liberdade e desejo, até como símbolo de resistência e insubmissão às forças externas que querem domá-lo", anotam os autores. CAETANO. PORQUE NÃO? é fonte de consulta incontornável.

23 junho 2024

Operação forrock


No livro OPERAÇÃO FORROCK, Felipe da Costa Trotta, Arthur Coelho Bezerra e Marco Antonio Gonçalves assinam individualmente três textos sobre a tradição e a renovação das sonoridades - importações e exportações - do Nordeste brasileiro. Sanfona, rabeca, samplers, Gonzaga, Science, cordel, sertão e litoral são analisados como aspectos de uma grande "zona de contato" sonoro. Nesse ambiente, "ainda que outros artistas tenham desenvolvido narrativas mais plurais e menos estereotipadas, ainda hoje o som da sanfona e o sorriso de Gonzaga representam uma certa unidade identitária regional, reconhecida dentro e fora dos limites da região", escreve Trotta. "É na cultura afro-brasileira que encontramos a origem do ritmo que mais caracteriza a participação da tradição popular na música de Chico Science - o maracatu", escreve Bezerra. "Para o cordel a poética é apreendida através da performance em que o afetivo, o subjetivo e o conceitual aparecem na simultaneidade criando uma relação entre intérprete e ouvinte, sendo mesmo a própria performance uma condição na narrativa", escreve Gonçalves. Performance parece ser a palavra-chave para se entender as narrativas de Nordeste que a canção popular engendra na cultura nacional ao longo do tempo. Épocas, estilos, tradições e rupturas se representam no corpo de artistas diversos, sempre em negociação complexa com o mercado, para dar conta de cantar o "ser nordestino", essa invenção sudestina ainda e sempre em processo de operação.

16 junho 2024

Falas curtas


Demorei a conhecer a obra de Anne Carson. Não fossem minhas alunas eu ainda estaria na ignorância do pensamento de autora tão importante para a reflexão do que seja "escrita de si", do que seja a prática da interpretação "com" a literatura. Em FALAS CURTAS Carson anota as leituras que fez, compondo seu paideuma estético: Stein, Ovídio, Parmênides, Bardot, Kafka, Claudel, Plath. "Comecei a anotar tudo o que era dito. Os rastros e vestígios constroem aos poucos um flagrante da natureza, da monotonia de uma história. Isso para mim é importante", lemos na introdução. Roland Barthes disse que quanto mais a gente "levanta a cabeça" durante uma leitura melhor o livro é. FALAS CURTAS são as levantadas de cabeça de Carson, aquilo que inquieta suas verdades friccionadas pela literatura de outros que, de tão provocadora ("falam de uma voz chamando no deserto"), passa a ser sua literatura - colagens, citações, enxertos. A crítica enquanto anotação. Professora de grego antigo, Carson passa em revista sua formação, deixando o palimpsesto ocidental falar.

09 junho 2024

Tropicalista lenta luta


Desconheço se há um cancionista que melhor experimenta, inventa, cria e força os limites da canção do que Tom Zé. Desde o primeiro disco, quando escreveu "Eu sou a fúria quatrocentona de uma decadência perfumada com boas maneiras e não quero amarrar minha obra num passado de laço de fita com boemias seresteiras", até o mais recente disco Língua brasileira (2022), Tom Zé entrega a seus ouvintes verdadeiras teses verbivocoperformáticas sobre cultura, arte e vida no Brasil. Melodias e letras, vozes e instrumentações sempre a serviço do acesso aos nossos núcleos duros. Cancionista crítico, Tom Zé pensa como quem brinca, totemizando o Brasil, essa "Babel das línguas em pleno cio", como canta na canção que dá título ao urgente e estupendo ao disco. Por isso e muito mais, seu livro TROPICALISTA LENTA LUTA merece leitura atenta, lenta. Nele encontramos significantes fundamentais para compreender de modo crítico um dos momentos mais interessantes da nossa canção, uma canção que, sendo inventiva, transgressiva, se queria popular, "biscoito fino" para as massas. "Não cantar apagava a visualidade de Torquato, na fase em que se instaurava com mais força o cantor-imagem", escreve Tom Zé num dos textos recolhidos no livro.

02 junho 2024

A vegetariana


"Então ela se lembra da visão dos corpos nus e entrelaçados do marido e Yeonghye. A imagem a chocou muito, não havia dúvida, mas conforme o tempo passa, por alguma razão, ela já não a relacionava a algo sexual. Aqueles corpos, cobertos de flores, folhas e caules verdes, eram tão estranhos que já não se assemelhavam a pessoas. Os movimentos que faziam pareciam forjar uma luta para deixar de serem humanos", lemos a certa altura de A VEGETARIANA, de Han Kang. A trama incomum é contada de modo inovador, experimental. Quem lê se vê íntimo de uma personagem "sem fala". Sabemos dela pelos outros, por aqueles que nela engendram o trauma e os limites entre o desejo e a crueldade, o explícito e o subentendido. A tradução fluida de Jae Hyung Woo é parceira importante no sonho intranquilo proposto pela narrativa.

26 maio 2024

Oração para desaparecer


"Os lenços eram objetos preciosos porque continham um pequeno poema que declarava o amor. Levavam meses bordando à luz de velas, escolhendo os desenhos e os versos, quase sempre em galaico-português, porque ali já era quase outro país, o Norte de Portugal já faz fronteira com a Espanha e por isso a mistura de idiomas na poesia dos lencinhos". Esse parágrafo de ORAÇÃO PARA DESAPARECER diz muito da delicadeza com que Socorro Acioli cria a textura lírica e trágica de seu livro. Identidade e memória são reconstruídas com rigor e prazer. Acompanhamos o trajetória de Cida, a busca pelo seu duplo (seu passado?) animados por uma narrativa que faz da própria narração-de-si o mote ideal. O tempo narrativo é solapado a serviço do narrado. Isso é tão raro de se alcançar sem arestas. É bonito perceber quando isso acontece. E em ORAÇÃO PARA DESAPARECER acontece. As vozes em primeira pessoa se sobrepõem no tom correto de criar o palimpsesto da história. "A vida é feita de palavras, elas explicam e fazem nascer e morrer. (...) Estar vivo é ser palavra na boca de alguém", lemos no final do primeira parte do livro, quando Cida nos conta como foi desenterrada. É no jogo das palavras-que-falam-de-si que as personagens vivem enquanto enredo no mundo. E a língua, o cruzo das línguas é fundamental nesse processo. Assim, como várias manifestações da fé. ORAÇÃO PARA DESAPARECER resgata um episódio histórico esquecido, convocando os leitores a refletir sobre a tensão entre os povos originários e a Igreja Católica.

19 maio 2024

Chico Buarque do Brasil


Dentre os livros que analisam a obra do autor de "Geni e o Zepelim", CHICO BUARQUE DO BRASIL se destaca. Profundo conhecedor da obra buarqueana, Rinaldo de Fernandes organiza textos com enfoques diversos. Antonio Candido, Regina Zappa, José Saramago, Cecilia Almeida Salles, Augusto Boal, Regina Zilberman, Frei Betto compõem um coro de quase 50 autores debruçados sobre as canções, o teatro e a ficção de Chico, construindo seu lugar de intérprete do Brasil. Amador Ribeiro Neto, por exemplo, cruza o poema "Cidade City Cité" de Augusto de Campos com o disco "As cidades", lançado por Chico em 1998 - "num e noutro o caleidoscópio cotidiano de seres e coisas da cidade descatam-se com os contornos de uma lente objetiva ou angular", escreve Ribeiro Neto. Por sua vez, Sônia Ramalho aponta que "o duplo pastiche autobiográfico veiculado pela circularidade romanesca torna possível a "Budapeste" problematizar a noção de individualidade autoral inerente ao gênero autobiográfico clássico". Friccionando tradições e promovendo rupturas, na palavra escrita, ou encenada, ou cantada, a obra de Chico Buarque recebe aqui a atenção justa. Lançado nas comemorações pelos 60 anos do artista, CHICO BUARQUE DO BRASIL interpreta o intérprete. Para o organizador do livro, "num país deselegante, indiscreto e pouco generoso com boa parte de sua população, Chico é coro do contrário - ainda". E quem há de negar?

12 maio 2024

O belo caminho

Em O BELO CAMINHO Gary P. Leupp apresenta a "história da homossexualidade no Japão". É muito interessante perceber o que a "ocidentalização" do Japão fez com os costumes daquele país que nem o termo "homossexual" (ou parecido) usava, dada a diversidade de práticas e jogos eróticos possíveis entre pessoas do mesmo sexo, notadamente, homens. E nisso as culturas se irmanam, no patriarcado, na brotheragem que incensa de hipocrisia a moral e a ética. O rico trabalho de pesquisa em arquivos de documentos e imagens faz do trabalho de Leupp uma obra importante e rara, por desvelar de modo tão direto essa história pouco conhecida. Afinal, "é comum sociedades atribuírem a gênese da sua homossexualidade ao estrangeiro: os hebreus associavam-na às culturas pagãs egípcias e canaanitas; os gregos imputavam sua pederastia aos persas; os europeus medievais consideravam a sodomia um pecadilho árabe trazido pelos Cruzados; e os ingleses renascentistas estavam convictos que o 'vício inominável' chegara às ilhas por meio de, dependendo da conjuntura das suas relações internacionais, Castela, Itália, Turquia ou França", anota Leupp, sob tradução de Diogo Kaupatez. Mas "como explicar o surgimento e a difusão de uma cultura nanshoku monástica, tamanha a fobia homossexual dos textos budistas continentais?", pergunta-se o autor de O BELO CAMINHO. Nanshoku é termo utilizado para referir-se a relações homossexuais entre homens, traduzido como “cores masculinas”. O livro percorre respostas, desde a "tolerância social" até a "construção de gênero", passando mesmo pela "comercialização do nanshoku", presente nas tradições monástica, militar, burguesa. Leupp mostra como "o conceito de nanshoku-zuki cedeu lugar ao alemão urning, indivíduo que padecia de desordem psicológica. Assim, os homens se tornaram pouco propensos a conhecer, e muito menos experimentar, o prazer homossexual". O desdobramento foi a marginalização. E nisso o livro conta bastante a história do desejo sexual também em nosso cultura.

05 maio 2024

Fremosos cantares


O livro FREMOSOS CANTARES é material primoroso para quem quer imaginar com rigor e prazer o som da lírica medieval galego-portuguesa, braço e berço importante de nossa lírica. A professora Lênia Márcia Mongelli aciona o gaio saber sonoro de uma poesia que se realizava na voz, no canto, na presença física de quem cantava e de quem ouvia. Em relação à poesia trovadoresca, é sempre importante destacar o caráter coletivo das cantigas e a tensão entre o indivíduo e sua subjetividade. Da interação entre música, poesia e performance, surgia a formação de um "eu coletivo", de um "corpo místico", nas palavras do professor João Adolfo Hansen, ao pensar as letras coloniais brasileiras, por exemplo. Algo que nos é difícil acessar hoje, tamanha a nossa individuação. Fato é que, como se sabe, o virtuosismo era elemento constitutivo do poeta trovador, o que, por vezes permitia certa exteriorização dos estados de espírito, conforme observado por Mongelli. Para a autora, O lirismo trovadoresco galego-português não é, evidentemente, uma poesia 'confessional'. Não se pode esperar encontrar nela um 'eu' individual expresso com a densidade introspectiva romântica ou com o nível de verticalidade psicológica dos simbolistas ou com a consciência moderna de que fazer é revelar. Contudo, é preciso matizar os limites do chamado 'eu coletivo' medieval". Antologizando, comentando, corporificando, cotejando e singularizando vozes de um coro (hoje) mudo de poemas da vasta poesia desse período, FREMOSOS CANTARES abre nossos ouvidos.

28 abril 2024

De uma a outra ilha


"(...) há de se impelir na imaginação o movimento que conduz o homem à ilha. É só em aparência que um tal movimento vem romper o deserto da ilha; na verdade, ele retoma e prolonga o impulso que a produzia como ilha deserta; longe de compromete-la, esse movimento leva-a à sua perfeição, ao seu apogeu. (...) A ilha seria tão-somente o sonho do homem, e o homem seria a pura consciência da ilha", escreveu Gilles Deleuze em "Causas e razões das ilhas desertas" (trad. de Luiz Benedicto Lacerda Orlandi). Evoco Deleuze para comentar o poema-livro DE UMA A OUTRA ILHA, de Ana Martins Marques, não apenas porque a poeta utiliza aquilo que o filósofo chamou de “diferença e repetição”, basta observar os vários deslocamentos de trechos, versos, temas dentro do poema-livro (de "dinheiro, celular, cigarros" do refugiado, às apropriações de matérias jornalísticas, de textos de Anne Carson, de versos de Safo), mas porque é nessa verve metalinguística inter e intratextual que o texto de Marques se realiza. Colchetes, travessões, itálicos, espaçamentos, asteriscos, incorporação da linguagem jornalístico-documental arquivam (porque re-velam) a voz cuja partitura se perdeu; "toda a música de Safo / se perdeu", lemos em Anne e em Ana. Para tanto, DE UMA A OUTRA ILHA justapõe temporalidades (na montagem dos pedaços do óstracon, suporte do poema sáfico, metáfora das subjetividades dos exilados e refugiados de agora), efetivando "o trabalho dos séculos: (...) disfarçar que o mundo é pobre / sobrepondo-lhe / adereços". Mas não para fugir do "real", ao contrário, expô-lo e comover, exigindo e propondo a ação de quem lê. O que conduz a poeta à ilha não é o que conduz o refugiado à ilha. A consciência ética e estética dessas conduções suplementares está no meio do livro-poema, quando Ana Martins Marques elenca o que se perde ao sobreviver. O apogeu de DE UMA A OUTRA ILHA está em ser (fazer quem lê experimentar) a "porcelana trincada" que todo poema deveria ser, ao exigir de quem lê cuidado e atenção com o deserto da língua e da linguagem poética viva.

21 abril 2024

Gentis guerreiros


O poema “Canção do exílio” fixou uma imagem do Brasil que extrapolou as páginas dos livros. Naquele momento pós-Independência, as nossas cores, a nossa fauna, a nossa flora foram cantadas de forma ufanista para nos diferenciar do colonizador. Extremamente musical, escrito em redondilhas e sem adjetivações, seus versos foram incorporados ao hino nacional e fazem parte da memória afetiva dos brasileiros - sendo um dos poemas mais parodiados, pastichizados de nossa história. Mas Gonçalves Dias fez mais. Ainda na esteira do bicentenário do poeta maranhense em 2023, reli o pioneiro GENTIS GUERREIROS, livro em que Cláudia Neiva de Matos analisa o "Indianismo em Gongalves Dias". O "em" aqui é chave de leitura do trabalho de Cláudia, já que a autora demonstra como o poeta incorporou procedimentos, ritmos e temas originais (e originários), no que se refere à representação de vozes e corpos até então recalcados; e fundou uma "convenção" do nacional, "fabricada com materiais ideológicos e estéticos: cumplicidade de duas categorias que ao mesmo tempo rechaçam a realidade e a ela se apegam obscurantemente - inventam-na", escreve. A professora passa em revista a recepção crítica da obra do poeta - Lúcia Miguel Pereira, Antonio Candido, Cassiano Ricardo, são alguns interlocutores; além de comparar a obra gonçalvina com a tradição por ele herdada e com escritores seus contemporâneos. "Para bem compreender o mecanismo da idealização do herói e de seus pares em Gonçalves Dias, é preciso observar como aí se combina a mítica do cavaleiro feudal à do bom selvagem", orienta. E observa, com análise de trechos, que o indianismo gonçalvino "é muito mais amargo que o do deputado, ministro e homme du monde Alencar, ao mesmo passo que aponta um conceito de nacionalidade inteiramente diverso". Por essas e outras miradas e miragens da leitura crítica rigorosa, GENTIS GUERREIROS é livro fundamental para a compreensão da contradição brasileira encarada pelo poeta. Contradição que Cláudia estabelece desde o título de seu livro.

14 abril 2024

Refazenda


O disco Refazenda (1975) dá início à chamada “trilogia Re”, de Gilberto Gil, composta com Refavela (1977) e Realce (1979) e suplementada pelo disco Refestança, gravado ao vivo por Gil e Rita Lee em 1977 e a canção "Refloresta" (2021). Ao traçar o percurso de volta às raízes de Gil, Refazenda é fundamental em sua discografia, por considerar o contexto cultural e social em que o cancionista se formou. Isso inclui elementos como a tradição musical local, as influências da mídia popular e as mudanças sociais e políticas que ocorreram durante sua juventude. Para Chris Fuscaldo, a autora do livro REFAZENDA - O INTERIOR FLORESCE NA ABERTURA DA FASE "RE" DE GILBERTO GIL, depois de voltar do exílio, "enquanto viajava pelos palcos do Brasil, [Gil] ia transformando o desejo de retomar suas raízes naquele que seria o repertório de Refazenda – esse, sim, o marco de um recomeço". O livro lê e escuta o disco de Gil iluminando pontos de sua produção e recepção, ampliando a rede de sentidos. Chris Fuscaldo faz o diagnóstico e comprova com rigor crítico que “Refazenda representou uma virada para o Gilberto Gil músico, uma novidade musical para os que estavam acostumados com o artista (‘artivista’) ou tropicalista, tornando-se um disco até hoje comumente resgatado para inspirar releituras. E essa novidade musical trazia consigo, à tona, a essência de Gil e a busca por suas raízes”. Essas raízes são revolvidas e redivivas pela autora de REFAZENDA - O INTERIOR FLORESCE NA ABERTURA DA FASE "RE" DE GILBERTO GIL e se expandem na obra completa do cancionista que tão bem potencializa o acervo afroameríndio do gaio saber nacional. "Fazenda" é como "tecido" é chamado no interior, Refazenda é revisão da trama de fios que compõe a obra de Gil. Curadora do museu virtual O ritmo de Gil, lançado em 2022 pelo Google Arts & Culture, Chris Fuscaldo sabe bem disso e nos ajuda a reouvir Refazenda.

07 abril 2024

Mistura adúltera de tudo


"Quando conseguirmos, no lugar da estratégica omissão, estabelecer um respeitoso dissenso entre nós (em oposição aos verdadeiramente nefastos ataques da extrema direita), talvez estejamos mais perto de alguma resistência cultural contra a força dissolvente do neoliberalismo contemporâneo, para o qual - há tempos - já não há mais sociedade". A frase que encerra o ensaio MISTURA ADÚLTERA DE TUDO, mais do que apontar uma conciliação utópica, convoca-nos a refletir sobre os caminhos que nos levaram a tão facilmente aceitar a cooptação de nossos discursos, práticas e experiências éticas e estéticas pela extrema direita (que a tudo pasteuriza e aniquila), dos anos 1970 até aqui. Promovendo uma breve revisão constelar do percurso, Renan Nuernberger diagnostica nexos e lacunas fundamentais para quem pensa e faz arte (notadamente, com texto criativo) no Brasil. Se desde 1970 o esforço tem sido "tornar o presente habitável", quanto tempo se perde em falsas polêmicas e dicotomias e em verdadeiros apagamentos e exclusões? Se "riquezas são diferenças", como diz o rock - essa linguagem jovem do jovem -, no exercício da chamada "vida literária" reinam os grupos que se retroalimentam. "Sem a fricção do debate entre artistas, a esfera do mercado, na qual todos estamos inseridos, desmancha as diferenças formais em favor de uma supostamente irrestrita fruição estética, cujo resultado, no limite, é uma relação anestesiada com as obras consumidas", escreve Nuernberger. Sem tocar no tema do "leitor sensível" é disso que (também) está se falando aqui, da deseducação dos sentidos - resultado do excesso de (pseudo) harmonia. MISTURA ADÚLTERA DE TUDO é, com perdão da nostalgia, um elogio à intrincada relação entre poética e política, diferença e ocupação.

31 março 2024

Como e por que ler a poesia brasileira do século XX


Ítalo Moriconi é dos críticos que mais experimenta compreender a poesia feita a partir dos anos 1970. Sua contribuição crítica é referência incontornável para pesquisadores e professores. No livro COMO E POR QUE LER A POESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX, Ítalo apresenta pelo menos seis linhas de força, todas girando em torno da ideia de que esse foi um "século modernista", a saber: a superação oswaldiana da cultura bacharelesca; a fragmentação (ou polifonia, ou multifacetada) drummondiana do eu; a quebra da hierarquia na constituição do cânone literário; o flerte tropicalista entre poesia e cultura pop; as vanguardas cabralina e concretista; e o fim dos fins das utopias. Nesse percurso, ora sobreposto, ora justaposto, Ítalo destaca quais são os poemas e os poetas essenciais. O livro apresenta, assim, excelentes leituras dos poemas selecionados, como por exemplo o "Poema de sete faces", de Carlos Drummond de Andrade, em que Ítalo vai fundo de modo didático e preciso (professor que é) no jogo entre forma e conteúdo, observando que o poeta faz "tudo para colocar o eu no palco. Este eu nada tem de excepcional, é um eu comum. Trata-se então da intimidade do homem comum. Não é o eu especial de um Poeta em maiúscula, com a grandiloquência de certo mau romantismo kitsch. É o mesmo eu corriqueiro de Bandeira, mas Drummond o trabalha noutras direções, complexificando-o, mostrando suas torções e contradições internas". É essa presença do corpo na vida, no corriqueiro, no cotidiano da cidade grande o que mais se evidencia na seleção e nas análises de Ítalo Moriconi, resultando num panorama eficaz e potente da poesia do século XX.

24 março 2024

Mosaico


Marcelo Mourão tem a palavra poética como profissão de fé. Mestre e doutorando em literatura brasileira, poeta, curador de saraus, professor, Marcelo tem desenvolvido um rico trabalho de manutenção do debate público sobre poesia. No livro MOSAICO temos o Marcelo pesquisador e crítico elencando autores e temas importantes "sem berloques, miçangas ou balangandãs", como bem afirma Sérgio de Castro Pinto no prefácio. Platão e Pessoa, Heidegger e Sloterdijk, Hamlet e Beowulf, José de Alencar e Waly Salomão transitam nos ensaios que compõem o livro, dando conta de plasmar seu título. A metalinguagem, o ser e estar no mundo, o romance de formação, as linguagens com as quais a poesia fricciona são os temas principais, com destaque para a pesquisa de Marcelo sobre os grupos Feira de Poesia e Passa na Praça, projetos que animaram poesia e política no cotidiano de um Rio de Janeiro fora do eixo zonasulista e sob ditadura. "A cidade real se torna cidade imaginada através do discurso que, ao voltar para essa mesma cidade na forma de versos gritados nas praças, acaba perpassando todo o imaginário do público presente, no ciclo de dialética permanente, num jogo constante de espelhamentos entre cidade real e cidade do imaginário", escreve Marcelo ao analisar um poema de João Alves. Assim como os autores que seleciona estudar, Marcelo se preocupa com a comunicação poética e a recepção do público. Sua preocupação ética resulta em textos de linguagem franca e elucidativa, também para não iniciados nos debates acadêmicos. Isso é raro e bonito.

17 março 2024

A superfície dos dias


"Ao escrever, criamos vínculos vitalizantes por meio dos gestos perceptivos", a frase com que Luiza Leite (quase) encerra o livro A SUPERFÍCIE DOS DIAS encapsula o subtítulo do volume: "O poema como modo de superfície". Ao longo do ensaio, a autora arma uma trama de citações a fim de defender que "a exigência da inspiração desaparece porque a poesia está em tudo". Antes de pensar que "a poesia está nos fatos, no cotidiano", como pensavam os modernistas, o texto pensa a poesia das anotações, dos improvisos, das rasuras, dos rascunhos. Isso se inscreve no corpo do texto. Por exemplo, há uma voz narrativa no texto de Luiza Leite que, "de repente", lembra de situações, faz "uma pausa na escrita por causa do vento na varanda" e é nesse intervalo entre uma escrita e outra que surge "o poema". Logo, o pensamento crítico surgiria, assim, fenomenologicamente, entre uma leitura e outra, entre uma citação e outra. Laurie Anderson, Walter Benjamin, Emanuele Coccia, Hans Magnus Enzensberger, Tamara Kamenszain, Airton Krenak, entre outras referências bibliográficas, dançam no texto que se quer prazeroso, como pensara Roland Barthes. Olhando poemas de William Carlos Williams, Eileen Myles e Frank O’Hara a autora conclui que "o inacabamento e o improviso fazem parte dessa poesia cheia de pensamentos impulsivos que reserva um lugar especial para a noção de arte amadora" e assim define sua própria escrita em torno d'A SUPERFÍCIE DOS DIAS - superfície plena de profundidades em busca permanente do inaugural e que em muito lembra a voz inquieta da Água viva clariciana.

10 março 2024

Mangue


Em certo momento do filme "Moisés Alves: o fogo que antecede as cinzas" o autor do livro MANGUE diz que a escrita precisa estar na frequência da vida. É essa frequência que Alberto Pucheu traduz e monta em imagem e som, equilibrando intimidade e coletividade, poética e política, pois é esse ponto equidistante o que anima a obra/vida de Moisés Alves, autor de um de meus poemas de predileção, "Oferenda": "minha mãe disse / a partir de agora eu sigo / você fica", começa; "a partir de agora / faça sua ultrapassagem / ultrapássaro", termina e segue aceso em quem lê. MANGUE é composto por muitos versos que funcionam como mantras, orikis, aforismos de elogio ao ato de escrever/viver: "escreve-se / comigo tudo / que por algum motivo / bem justo não pode ter acontecido / estamos livres / apesar de não sairmos / dessa festa muito vivos", lê-se num veio de metalinguagem tradutora da verdade poética, transcriadora da vida. "É por revolta que faço / da alegria / arma pesadíssima / nunca fui a favor de morrer com vida", esses versos, distribuídos na estrofe com esses cortes, singularizando "revolta", "alegria", "arma" e "vida" dão o ritmo da pulsação dos poemas de MANGUE. "Dizer o isso da vida é o a que a poesia se dedica", observa Pucheu na apresentação do livro. Assim como Moisés Alves, que nasceu no Mangue, na rua Maciel do Baixo, a voz poética transita no Pelourinho, no Centro Histórico, biografemando sua história, que se desdobra na história de muitos do lugar, do mundo. Se "amor é quando químicas não impedem / nossa paixão" e "poema é aquilo / que atinge à queima- / roupa / então dói", o livro de Moisés Alves ama por tanto doer (tem corpo) e dói por tanto amar (tem alma). Sua poesia pulsa da fricção entre alma e corpo.

03 março 2024

O avesso da pele


"Esta história é ainda a história de um ferida aberta. É uma história para me curar da falta daquilo que você, repentinamente, deixou de ser". Dirigidas ao pai, as palavras do narrador de O AVESSO DA PELE dão o ritmo do profundo e complexo embate com seus sentimentos, experiências e relações interpessoais. Passando sua formação em revista, o narrador faz um acerto de contas consigo mesmo, registrando o que é viver num país racista. Nesse processo a literatura (as leituras do pai e do narrador) é fundamental. O AVESSO DA PELE mostra que é possível aprender com a alteridade, ou, melhor, fazer da outra pessoa uma fonte de entendimento de si. É assim que São Petersburgo se espelha (reflete e refrata) em Porto Alegre, por exemplo, e Dostoiévski é companhia. Esse procedimento de revelar leituras é presença importante na obra de Jeferson Tenório, autor atento em propor e desenvolver uma educação antirracista em quem lê. "Pessoas brancas nunca pensam que um menino negro pobre possa ter outros problemas além da fome e das drogas", escreve o narrador. Jeferson Tenório ilumina por dentro aquilo que torna alguém o que esse alguém é, num jogo entre influenciar e se deixar influenciar pelos fracassos e sucessos. Como o professor Henrique Nunes, pai do narrador e morto porque "era alvo de uma política de Estado", como depõe um aluno. "É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo", lê-se num dos muitos trechos dirigidos ao pai, um pai cuja luta foi "fazer a sua voz permanecer na cabeça deles o máximo de tempo possível". Dos alunos, dos leitores, o livro O AVESSO DA PELE de Jeferson Tenório permanece.

25 fevereiro 2024

O que é poesia marginal


No livro O QUE É POESIA MARGINAL Glauco Mattoso esmiúça a controversa adjetivação da poesia que circulava nos anos 1970 à margem do mercado editorial. "A palavra marginal, sozinha, não explica muito. Veio emprestada das ciências sociais, onde era apenas um termo técnico para especificar o indivíduo que vive duas culturas em conflito, ou que, tendo-se libertado de uma cultura, não se integrou de todo em outra, ficando à margem das duas", escreve o autor. Hoje, com o adjetivo já devidamente mercadologizado por poetas e editoras, termos como "independente", "alternativo", underground, "artesanal" parecem mais apropriados para refletir sobre a poesia enquanto gesto de subversão ao sistema, às instituições, diante do progressivo aburguesamento do poeta e da poesia numa sociedade cada vez mais espetacularizada. O interessante é observar que tal processo já estava previsto por Glauco Mattoso, poeta do rigor e do desbunde. "No final, você concluirá se existe um característica que possa ser conceituada como marginalidade, se tal conceito representaria uma 'subversão' daquilo que comumente se entende por poesia, ou se essa história toda não passaria de mais um 'equivoco'", lemos no final na introdução do livro. Glauco é um pesquisador das formas, um crítico lúcido e faz de O QUE É POESIA MARGINAL um espaço para responder e provocar com brevidade e profundidade perguntas como "poesia tem que ser estrela?", "poeta tem que ser estrela?", numa evidente cutucada em Bilac e seus herdeiros. "Abaixo o verso! É subversão?" e "artesanais ou artes anais?" também pergunta Glauco, nesse livro da saudosa coleção Primeiros passos, em que a editora Brasiliense tentava explicar temas complexos de um jeito leve e despretensioso.

18 fevereiro 2024

Ao amigo que não me salvou a vida


Paralela às discussões teóricas sobre autoficção, o livro AO AMIGO QUE NÃO ME SALVOU A VIDA, de Hervé Guibert é o registro tocante e interessado dos anos 1980 em Paris, período de descobrimento da aids, doença que aturdiu e matou muita gente. Jornalista e fotógrafo, Guibert maneja as imagens líricas e subversivas da escrita, seduzindo quem ler. "Sim, posso escrever, e esta sem dúvida é minha loucura, dou mais importância a meu livro do que a minha vida; eu não desistiria de meu livro para preservar minha vida, isso será o mais difícil de fazer as pessoas acreditarem e entenderem", lemos em um dos muitos momentos metalinguísticos do texto. "A obra é o exorcismo da impotência", lemos também. Como registrar e impotência? Talvez seja essa a pergunta que move o livro. Impotência diante da doença, diante do "rosto descarnado" que o espelho reflete, diante do abandono de um amigo que poderia ter ajudado e não ajudou. A narração ao estilo de um diário romanceado termina pouco tempo antes da morte do autor. Sob pseudônimos (ou heterônimos?), Michel Foucault e Roland Barthes, amigos de Guibert, também são personagens de uma narrativa em que a homossexualidade pode, enfim, transparecer: "havia uma certeza de que para além da amizade estávamos ligados por um destino tanalógico comum". Se Cazuza cantou "eu vi a cara da morte e ela estava viva", AO AMIGO QUE NÃO ME SALVOU A VIDA registra essa convivência. "Este livro que relata minha fadiga me faz esquecê-la e, ao mesmo tempo, cada frase arrancada de meu cérebro, ameaçado pela intrusão do vírus assim que a pequena barreira linfática ceder, me dá ainda mais vontade de cerrar as pálpebras", lê-se.

11 fevereiro 2024

Novos e baianos


No livro NOVOS E BAIANOS, Luiz Galvão escreve no limite entre autobiografia, ensaio, memórias, crônica, romance de formação pessoal e romance geracional. Os anos 1970 são apresentados enquanto época híbrida, experimental, desbundada, no que se refere a uma juventude que queria mudar tanto os costumes, a partir da revisão crítica da sonoridade brasileira. "Estou começando a gostar dessa forma integrada de escrever unindo em um texto o passado vivido ao presente acontecendo, e até ao futuro por vir", escreve Galvão, inscrevendo o tom autorreflexivo da própria narrativa da sua/nossa história. Galvão aborda o passo adiante dado pelo coletivo/comunidade Novos Baianos nas propostas éticas e estéticas herdadas do tropicalismo. Há registros de momentos curiosos e engraçados, difíceis e inspiradores para se entender o período, bem como a linha evolutiva da canção popular. Por exemplo, os bastidores do filme "Farol da Barra", que segue "aquela forma de tríplices historinhas independentes", dirigido por Luiz Galvão, a fim de levantar recursos para o lançamento do disco "Farol da Barra" (1978): "O enredo nos leva ao paraíso onde Adão dorme, enquanto Eva irrequieta, dá com os olhos no personagem da Serpente, vivido por Gato Félix. Com o rabo enrolado num coqueiro, a serpente flerta com Eva, atira-lhe três bananas-maçã, e ela come duas e acorda o companheiro Adão, dando a outra para ele, que após come-la se assusta um pouco, mas logo entra numa onda de sensualidade e beija Eva. Mesmo sendo um beijo de cinema, eles fizeram dessa cena a mais bela, pelo misto de lírico e sensual, quando eles rolaram pela grama em acentuado declive, que facilitou a plástica e a fotografia. A Serpente, depois de cumprir seu papel, se transforma no Anjo Expulsador, que traz uma espada de fogo e persegue a dupla que teoricamente dava vazão ao sexo no planeta". Por essas e outras anotações de quem viveu e fez, NOVOS E BAIANOS é livro que merece leitura.

04 fevereiro 2024

Mangue mundo


No livro MANGUE MUNDO: POÉTICAS DO MANGUE EM JOSUÉ DE CASTRO, JOÃO CABRAL DE MELO NETO E CHICO SCIENCE Francisco K ensaia uma educação pela lama presente na convergência dos homens-caranguejo do escritor, médico, nutrólogo, cientista social e geógrafo; com os homens-lama do poeta; e os mangueboys e manguegirls do cancionista. Os textos de K equilibram a densidade do rigoroso trabalho de leitura e audição com uma linguagem direta. Para compor o que chama de "poéticas do mangue" K analisa a dialética de acaso e controle, caos e ordem presente (inscrita) na linguagem das obras de Josué, Cabral e Science. A fome - este tabu - é um topos guia das especulações do autor. Naturalismo, idealismo, metáfora e aspectos sócio-econômicos afirmam as margens. K investiga os núcleos moles do centro capitalista perverso. Núcleos sugeridos, de modo mais ou menos engajados, no romance, na poesia, na canção (na performance). A leitura que Francisco K faz do percurso da metáfora na poesia cabralina já mereceria a atenção para MANGUE MUNDO. Mas há mais. Se Josué de Castro chamou atenção para a fome "que corrói silenciosamente inúmeras populações do mundo"; e em seu tríptico do mangue (do Capibaribe) João Cabral tratou do cão vivo debaixo da pele; Science, sem estilizar ou folclorizar o material tradicional sonoro, nem a fome, engendrou um pacto corporal com o mangue: limite e expansão, caos e cão nas "fronteiras nos jardins da razão". O livro de Francisco K é este elogio urgente e revigorante do "corpo sensível-pensante", do "pensar que se faz juntamente com o sacolejo jubiloso do samba".

28 janeiro 2024

Ninguém quis ver


Do primeiro - "moro a setenta quilômetros do mar" - ao derradeiro - "o rosto queimado de sol" - o livro NINGUÉM QUIS VER reúne versos, poemas, sombras, luminescências que justificam o título do livro. Bruna Mitrano escreve poemas em que saltam imagens tão inquietantes quanto óbvias, e, justamente por isso, ocultadas, postas à margem, convenientemente esquecidas. Bruna dá a dica: "só esquece do mar / quem mora perto do mar". Dialética, de contrastes, quiasmática, de fricção são algumas chaves de interpretação da poética de Bruna Mitrano. Poética em que o sol só aparece se desenhado no chão. E o que sempre chama atenção nessa poética são os cortes dos versos, cortes bruscos, violentos, que interditam qualquer lirismo comedido, bem comportado, facilitador. Para se quebrar os versos com a precisão e a eficácia de Bruna Mitrano é preciso projetar vozes líricas tão fraturas quanto: "disseram bruna você parece / que pode partir ao meio", lê-se o biografema no poema que dá título ao livro e abre a segunda das cinco partes que compõem o volume. No uso interno do nome da autora aparecem muitas outras filigranas do eu que "tem estômago pra lembrar / de ser menina". Enjambements "sem metáfora / ou outra figura de linguagem / que emprestasse beleza", os versos aqui são cortados para que "uma voz fraca / vinda do mais fundo / onde uma mulher pode ser" se projete olhando frontalmente quem lê: "eu tô brincando de verdade", lemos. Escrevo mulher porque há uma sabência que passa de avó para mãe para filha. Uma ciência aprendida, apreendida, curtida, sobrevivida: "ela disse que quando o estômago / ficava vazio por muito tempo / apertar ajudava a esquecer", anota a filha escritora. A fome cabe na "vala" do poema, Gullar? Quanto desdobrável a voz lírica de Bruna Mitrano é, Adélia? - pergunta-se quem lê NINGUÉM QUIS VER.

21 janeiro 2024

Das vanguardas à tropicália


Dentre os muitos livros que tratam da relação entre a Tropicália e as vanguardas europeias do começo do século XX, dentre eles, o incontornável "Convergências: poesia concreta e tropicalismo", de Lúcia Santaella, destaca-se DAS VANGUARDAS À TROPICÁLIA. Tamanho o rigor crítico. Nele, Guilherme de Azevedo Granato passa em revista as várias filigranas da "modernidade artística" até a "música popular". "A retomada pelo tropicalismo de processos construtivos que remetem às vanguardas históricas insere-se em um momento de recuperação do ideário vanguardista, concomitante com o cenário europeu e norte-americano", escreve Granato, para observar que "formulações como a performance e o happening surgiram como formas alternativas de fruição artística, almejando uma influência direta na vida prática por meio do estímulo sensorial e da desorganização da lógica cotidiana". No Brasil, com a censura e o controle pela ditadura militar, isso ganha conotações importantes, com usos singulares das experimentações artísticas. Urgia superar a separação entre arte e vida. E "o principal intento dos levantes vanguardistas foi o de atacar a arte enquanto instituição dentro da sociedade burguesa", lê-se em DAS VANGUARDAS À TROPICÁLIA. Insubmisso, o instante-já da performance e do happening não se deixa capturar, arquivar, reproduzir, dificultando a ação autoritária. Isso nos ajuda a entender porque muitos cancionistas deram prioridade aos discos de shows ao vivo. Microfones desligados, ruídos propositais, palavras alterações durante o canto marcam o período. Devorar as estruturas era um gesto ético e estético. O livro de Granato orienta como isso se realizou.

14 janeiro 2024

Assessora de encrenca


Em ASSESSORA DE ENCRENCA Gilda Mattoso conta como entrou e saiu de várias situações ao lado de nomes importantes da música brasileira. "Gilda Mattoso é uma superdotada para viver o melhor da vida e fazer com que assim também vivam os demais", escreve Pedro Almodóvar na contracapa. "Tudo com ela sempre teve o tom de camaradagem, onde o humor e as observações sutis predominavam", escreve Caetano Veloso na Apresentação. Em tom bastante coloquial, como uma boa conversa num dia de verão, o livro se divide em cinco grandes capítulos: Vinicius, Tom, Caetano, Outros famosos, Álbum de família. Cada capítulo guarda uma gama de enredos, causos da assessora que aprendeu a assessorar assessorando. O destacado bom humor de Gilda tornam leves, importantes e tocantes as situações mais complexas, as encrencas. E há as hilárias, como comer por enquanto os acarajés dedicados a Iansã na casa de Maria Bethânia; Pedro Almodóvar dizer "yo también", depois de Paula Lavigne responder "sou a mulher de Caetano Veloso" a um segurança em Londres. São muitos os famosos com quem Gilda trabalhou, ou, como deixa sugerido ao longo do livro, compartilhou a vida. E essa é a mensagem, ASSESSORA DE ENCRENCA conta uma vida de trabalho em que o afeto reina - a parceria profissional e a amizade andam juntas. Recheado de fotos, o livro rende boa leitura e boas risadas da assessora de imprensa, de encrenca de bom humor.

07 janeiro 2024

Anjo do bem gênio do mal


ANJO DO BEM GÊNIO DO MAL é a autobiografia de quem, não apenas esteve nos bastidores, mas foi elemento fundamental para que boa parte de nosso cancioneiro tropicalista e rebelde dos anos 1970 acontecesse. Natural de Itabuna, sul da Bahia, Paulinho Lima esteve junto com Gal Costa, Glauber Rocha e demais baianos que fizeram o sudeste rever o conceito "nordestino". Por exemplo, ele trabalhou no antológico show "Barra 69", que Gilberto Gil e Caetano Veloso fizeram na Bahia antes de saírem para o exílio em Londres, e no icônico "Gal (Fatal) a todo vapor", que segurou o vigor contestatório tropicalista durante a ausência dos compositores, em decorrência da ditadura militar. Aliás, pelo que conta, Paulinho foi fundamental para formatar a imagem de Gal Costa. ANJO DO BEM GÊNIO DO MAL conta as dificuldades técnicas, os improvisos, os dribles na censura, o trabalho de transpor os shows para os discos. Interessante ler a atuação de pessoas como Luciano Figueiredo, Oscar Ramos, Duda Machado nesse momento decisivo. Entre muitos autoelogios, destacam-se os comentários feitos sobre o projeto pessoal de gravar discos de literatura lidos por artistas famosos. Gregório de Matos, Drummond, Clarice, Augusto dos Anjos, entre outros, foram lidos por Paulo Autran, Aracy Balabanian, Othon Bastos e outros artistas de teatro, pessoas do convívio de Paulinho desde a juventude em Salvador e Rio de Janeiro. Coautor da radiofônica "Perigo" (cujo verso dá título ao livro ANJO DO BEM GÊNIO DO MAL),  sucesso na voz de Zizi Possi, entre amizades e desafetos, Paulinho transitou e agiu em boa parte do cânone da canção popular brasileira da segunda metade do século XX.  E suas memórias guardam boas percepções desse contexto histórico.