De onde a mãe fala quando canta o filho? E o amante o amado? De onde a voz fonografada se dá à reprodução e canta o ouvinte quando este liga o rádio, ou o leitor de mp3? Há um lugar onde a voz nasce e é guardada até ser acessada? De certo, há os meios (tecnologias) de acesso à voz. Portanto, é neste meio que a voz se dá. O meio é o lugar da voz? Se, como tenho defendido aqui, toda voz é o indício de que existe um ser que a emite, é no meio - que vai de um a outro indivíduo - que nos damos à vida.
"Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o outro" registra Mário de Sá-Carneiro. "No espelho não é eu, sou mim / Não conheço mim, mas sei quem é eu, sei sim (...) Eu e mim se dividem numa só certeza / Alguém dentro de mim é mais eu do que eu mesma", canta, por sua vez, Rita Lee.
Para além e aquém de uma pertinente leitura psicanalista, o que não está entre os objetivos daquilo que desenvolvo aqui, estou mais interessado na produção de presença do eu, enquanto no primeiro caso há uma "ponte de tédio" ligando o eu ao outro, no segundo caso o espelho é a ponte. Ambos levam-me a crer que é no reflexo (dos desejos e das frustrações) que eu e mim (o outro) se comunicam, se tocam. De todo modo, o eu se funda no meio.
O eu está no instante-já de sua enunciação. Salvo engano, é por isso que, fora do útero materno (tempo e espaço paradisíaco, em que tudo é dado de graça e como uma graça), temos a necessidade do canto, da canção do outro: meu reflexo e meu companheiro de interdito na terra.
Ou seja, para parafrasear o ensinamento cristão, estamos onde está nosso coração. Este é o nosso lugar: um lugar que se localiza, se materializa quando eu estou cantando (ou sendo cantado) a vida. É a partir desta localização que podemos começar a tentar responder as perguntas acima.
Mas agora tudo se complexifica, pois, onde é o lugar do coração? Obviamente, mesmo atravessado por tais ideais, não estou tratando aqui do coração romântico: sede dos sentimentos. Se neste identifico unicamente a paixão arrebatadora, não posso esquecer que a canção (ser cantado e cantar alguém) também implica em um equilíbrio entre a intuição (vontade) e a tentativa lúcida de fotografar o outro, reflexo de mim.
A voz é a carnação do indivíduo posto no mundo. Ao cantar, ele se corporifica, imprime presença, é e está. Cantar é existir: "é mais do que lembrar, é mais do que ter tido aquilo então, mais do que viver do que sonhar, é ter o coração daquilo", como argumenta o sujeito de "Genipapo absoluto", de Caetano Veloso.
O canto é a "ponte de tédio" e a fugaz certeza de não se estar absolutamente sozinho. No canto, a localização relativa (um lugar em relação a outro) se mistura com a localização absoluta (as coordenadas geográficas e físicas). Como não sentir quem canta quando a sua voz sai pelo meu fone de ouvido?
A canção aperta o sentimento de interconexão e interdependência. O contato entre os lugares - eu e mim - amplifica os traços de individualidade e de cultura. É no choque entre um e outro(s) que o eu - paisagem movediça - se anima. É no processo de ocupação que o lugar se transforma e se forma. Um lugar é um acúmulo poderoso de efeitos especiais. Ter um lugar, um porto alegre e seguro, onde ancorar as atividades emocionais é carência, vontade e motor de todos nós.
Penso nisso enquanto ouço Lula Queiroga cantando "Poeira de estrelas", de sua autoria. Guardada no disco Todo dia é o fim do mundo (2012), o sujeito desta canção fala de seu impulso criativo: "Foi quando você dormiu / Profundo / E eu passei a vigiar / Seu mundo / Fiz essa canção / Que é só pra mim". Porque o outro é o lugar do sujeito no mundo, o sujeito canta e, assim, por sua vez, encontra o próprio lugar.
A pós-canção-de-ninar entoada na voz de Lula Queiroga visa encontrar "Um jeito assim de não deixar / O tempo / Ir embora". Ele canta quando o outro dorme. Aliás, nós não ouvimos a tal canção. Ela é apenas sugerida: o segredo. Ele se cala quando o outro se acorda. "Foi quando seu olho abriu / Bom dia / Que eu achei que o sol queria chegar / E aquela canção / Fugiu de mim". O sujeito é enquanto o outro não está. Isto é, em um complexo sistema de relação, ao sustentar (acalentar, velar) o outro, estando este ausente (sonhando), o sujeito se localiza.
"No mapa do meu nada / canção emocionada / trajeto por teus fios", canta CássiaEller, adensando a geografia íntima, dos afetos que se estabelecem entre quem canta e quem é cantado. O corpo do outro dormindo na canção "Poeira de estrelas", é muito mais do que um corpo dormindo.
O sujeito de "Poeira de estrelas" é o lugar onde o outro sossega a alma. E vice-versa. Entendendo por sossego não a tranquilidade fútil, a acomodação infértil, mas, o contrário disso: a ponte, a intimidade estranha, a acomodação no espelho - esse lugar intermediário por excelência.
Como EmanueleCoccia apresenta em A vida sensível, é o espelho indica que existimos como mera visibilidade: de mim, fora de mim; e do outro, fora de mim. Ambos exterioridades do eu. O espelho mostra "a existência de algo fora do próprio lugar". Nessa perspectiva, corpo e alma se misturam: o amante torna-se a coisa amada. Como no caso do sujeito de "Poeira de estrelas".
A imagem provocada pelo título da canção, lírica e terna, por sua vez, também tematiza o quão frágil e radical é uma canção, são os tais fios (de contato) por onde trafega o sujeito cantado por CássiaEller, a dialogia mãe/bebê. É na voz que tudo se sustenta e existe. Isso porque, ciclicarmente, "Morre no ar / Um resto de canção / Um resto tão sereno / Tão quieto de paixão". E é a paixão, que só as canções conhecem, que nos move: eis o nosso lugar.
Para além e aquém de uma pertinente leitura psicanalista, o que não está entre os objetivos daquilo que desenvolvo aqui, estou mais interessado na produção de presença do eu, enquanto no primeiro caso há uma "ponte de tédio" ligando o eu ao outro, no segundo caso o espelho é a ponte. Ambos levam-me a crer que é no reflexo (dos desejos e das frustrações) que eu e mim (o outro) se comunicam, se tocam. De todo modo, o eu se funda no meio.
O eu está no instante-já de sua enunciação. Salvo engano, é por isso que, fora do útero materno (tempo e espaço paradisíaco, em que tudo é dado de graça e como uma graça), temos a necessidade do canto, da canção do outro: meu reflexo e meu companheiro de interdito na terra.
Ou seja, para parafrasear o ensinamento cristão, estamos onde está nosso coração. Este é o nosso lugar: um lugar que se localiza, se materializa quando eu estou cantando (ou sendo cantado) a vida. É a partir desta localização que podemos começar a tentar responder as perguntas acima.
Mas agora tudo se complexifica, pois, onde é o lugar do coração? Obviamente, mesmo atravessado por tais ideais, não estou tratando aqui do coração romântico: sede dos sentimentos. Se neste identifico unicamente a paixão arrebatadora, não posso esquecer que a canção (ser cantado e cantar alguém) também implica em um equilíbrio entre a intuição (vontade) e a tentativa lúcida de fotografar o outro, reflexo de mim.
A voz é a carnação do indivíduo posto no mundo. Ao cantar, ele se corporifica, imprime presença, é e está. Cantar é existir: "é mais do que lembrar, é mais do que ter tido aquilo então, mais do que viver do que sonhar, é ter o coração daquilo", como argumenta o sujeito de "Genipapo absoluto", de Caetano Veloso.
O canto é a "ponte de tédio" e a fugaz certeza de não se estar absolutamente sozinho. No canto, a localização relativa (um lugar em relação a outro) se mistura com a localização absoluta (as coordenadas geográficas e físicas). Como não sentir quem canta quando a sua voz sai pelo meu fone de ouvido?
A canção aperta o sentimento de interconexão e interdependência. O contato entre os lugares - eu e mim - amplifica os traços de individualidade e de cultura. É no choque entre um e outro(s) que o eu - paisagem movediça - se anima. É no processo de ocupação que o lugar se transforma e se forma. Um lugar é um acúmulo poderoso de efeitos especiais. Ter um lugar, um porto alegre e seguro, onde ancorar as atividades emocionais é carência, vontade e motor de todos nós.
Penso nisso enquanto ouço Lula Queiroga cantando "Poeira de estrelas", de sua autoria. Guardada no disco Todo dia é o fim do mundo (2012), o sujeito desta canção fala de seu impulso criativo: "Foi quando você dormiu / Profundo / E eu passei a vigiar / Seu mundo / Fiz essa canção / Que é só pra mim". Porque o outro é o lugar do sujeito no mundo, o sujeito canta e, assim, por sua vez, encontra o próprio lugar.
A pós-canção-de-ninar entoada na voz de Lula Queiroga visa encontrar "Um jeito assim de não deixar / O tempo / Ir embora". Ele canta quando o outro dorme. Aliás, nós não ouvimos a tal canção. Ela é apenas sugerida: o segredo. Ele se cala quando o outro se acorda. "Foi quando seu olho abriu / Bom dia / Que eu achei que o sol queria chegar / E aquela canção / Fugiu de mim". O sujeito é enquanto o outro não está. Isto é, em um complexo sistema de relação, ao sustentar (acalentar, velar) o outro, estando este ausente (sonhando), o sujeito se localiza.
"No mapa do meu nada / canção emocionada / trajeto por teus fios", canta CássiaEller, adensando a geografia íntima, dos afetos que se estabelecem entre quem canta e quem é cantado. O corpo do outro dormindo na canção "Poeira de estrelas", é muito mais do que um corpo dormindo.
O sujeito de "Poeira de estrelas" é o lugar onde o outro sossega a alma. E vice-versa. Entendendo por sossego não a tranquilidade fútil, a acomodação infértil, mas, o contrário disso: a ponte, a intimidade estranha, a acomodação no espelho - esse lugar intermediário por excelência.
Como EmanueleCoccia apresenta em A vida sensível, é o espelho indica que existimos como mera visibilidade: de mim, fora de mim; e do outro, fora de mim. Ambos exterioridades do eu. O espelho mostra "a existência de algo fora do próprio lugar". Nessa perspectiva, corpo e alma se misturam: o amante torna-se a coisa amada. Como no caso do sujeito de "Poeira de estrelas".
A imagem provocada pelo título da canção, lírica e terna, por sua vez, também tematiza o quão frágil e radical é uma canção, são os tais fios (de contato) por onde trafega o sujeito cantado por CássiaEller, a dialogia mãe/bebê. É na voz que tudo se sustenta e existe. Isso porque, ciclicarmente, "Morre no ar / Um resto de canção / Um resto tão sereno / Tão quieto de paixão". E é a paixão, que só as canções conhecem, que nos move: eis o nosso lugar.
***
Poeira de estrelas
(Lula Queiroga)
Foi quando você dormiu
Profundo
E eu passei a vigiar
Seu mundo
Fiz essa canção
Que é só pra mim
Naquela hora
Um jeito assim de não deixar
O tempo
Ir embora
Foi quando seu olho abriu
Bom dia
Que eu achei que o sol queria chegar
E aquela canção
Fugiu de mim
Nem lembro agora
Foi com as estrelas
Na pequena noite
Sem fim
(Lula Queiroga)
Foi quando você dormiu
Profundo
E eu passei a vigiar
Seu mundo
Fiz essa canção
Que é só pra mim
Naquela hora
Um jeito assim de não deixar
O tempo
Ir embora
Foi quando seu olho abriu
Bom dia
Que eu achei que o sol queria chegar
E aquela canção
Fugiu de mim
Nem lembro agora
Foi com as estrelas
Na pequena noite
Sem fim