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12 abril 2012

Poeira de estrelas

De onde a mãe fala quando canta o filho? E o amante o amado? De onde a voz fonografada se dá à reprodução e canta o ouvinte quando este liga o rádio, ou o leitor de mp3? Há um lugar onde a voz nasce e é guardada até ser acessada? De certo, há os meios (tecnologias) de acesso à voz. Portanto, é neste meio que a voz se dá. O meio é o lugar da voz? Se, como tenho defendido aqui, toda voz é o indício de que existe um ser que a emite, é no meio - que vai de um a outro indivíduo - que nos damos à vida.
"Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o outro" registra Mário de Sá-Carneiro. "No espelho não é eu, sou mim / Não conheço mim, mas sei quem é eu, sei sim (...) Eu e mim se dividem numa só certeza / Alguém dentro de mim é mais eu do que eu mesma", canta, por sua vez, Rita Lee.
Para além e aquém de uma pertinente leitura psicanalista, o que não está entre os objetivos daquilo que desenvolvo aqui, estou mais interessado na produção de presença do eu, enquanto no primeiro caso há uma "ponte de tédio" ligando o eu ao outro, no segundo caso o espelho é a ponte. Ambos levam-me a crer que é no reflexo (dos desejos e das frustrações) que eu e mim (o outro) se comunicam, se tocam. De todo modo, o eu se funda no meio.
O eu está no instante-já de sua enunciação. Salvo engano, é por isso que, fora do útero materno (tempo e espaço paradisíaco, em que tudo é dado de graça e como uma graça), temos a necessidade do canto, da canção do outro: meu reflexo e meu companheiro de interdito na terra.
Ou seja, para parafrasear o ensinamento cristão, estamos onde está nosso coração. Este é o nosso lugar: um lugar que se localiza, se materializa quando eu estou cantando (ou sendo cantado) a vida. É a partir desta localização que podemos começar a tentar responder as perguntas acima.
Mas agora tudo se complexifica, pois, onde é o lugar do coração? Obviamente, mesmo atravessado por tais ideais, não estou tratando aqui do coração romântico: sede dos sentimentos. Se neste identifico unicamente a paixão arrebatadora, não posso esquecer que a canção (ser cantado e cantar alguém) também implica em um equilíbrio entre a intuição (vontade) e a tentativa lúcida de fotografar o outro, reflexo de mim.
A voz é a carnação do indivíduo posto no mundo. Ao cantar, ele se corporifica, imprime presença, é e está. Cantar é existir: "é mais do que lembrar, é mais do que ter tido aquilo então, mais do que viver do que sonhar, é ter o coração daquilo", como argumenta o sujeito de "Genipapo absoluto", de Caetano Veloso.
O canto é a "ponte de tédio" e a fugaz certeza de não se estar absolutamente sozinho. No canto, a localização relativa (um lugar em relação a outro) se mistura com a localização absoluta (as coordenadas geográficas e físicas). Como não sentir quem canta quando a sua voz sai pelo meu fone de ouvido?
A canção aperta o sentimento de interconexão e interdependência. O contato entre os lugares - eu e mim - amplifica os traços de individualidade e de cultura. É no choque entre um e outro(s) que o eu - paisagem movediça - se anima. É no processo de ocupação que o lugar se transforma e se forma. Um lugar é um acúmulo poderoso de efeitos especiais. Ter um lugar, um porto alegre e seguro, onde ancorar as atividades emocionais é carência, vontade e motor de todos nós.
Penso nisso enquanto ouço Lula Queiroga cantando "Poeira de estrelas", de sua autoria. Guardada no disco Todo dia é o fim do mundo (2012), o sujeito desta canção fala de seu impulso criativo: "Foi quando você dormiu / Profundo / E eu passei a vigiar / Seu mundo / Fiz essa canção / Que é só pra mim". Porque o outro é o lugar do sujeito no mundo, o sujeito canta e, assim, por sua vez, encontra o próprio lugar.
A pós-canção-de-ninar entoada na voz de Lula Queiroga visa encontrar "Um jeito assim de não deixar / O tempo / Ir embora". Ele canta quando o outro dorme. Aliás, nós não ouvimos a tal canção. Ela é apenas sugerida: o segredo. Ele se cala quando o outro se acorda. "Foi quando seu olho abriu / Bom dia / Que eu achei que o sol queria chegar / E aquela canção / Fugiu de mim". O sujeito é enquanto o outro não está. Isto é, em um complexo sistema de relação, ao sustentar (acalentar, velar) o outro, estando este ausente (sonhando), o sujeito se localiza.
"No mapa do meu nada / canção emocionada / trajeto por teus fios", canta CássiaEller, adensando a geografia íntima, dos afetos que se estabelecem entre quem canta e quem é cantado. O corpo do outro dormindo na canção "Poeira de estrelas", é muito mais do que um corpo dormindo.
O sujeito de "Poeira de estrelas" é o lugar onde o outro sossega a alma. E vice-versa. Entendendo por sossego não a tranquilidade fútil, a acomodação infértil, mas, o contrário disso: a ponte, a intimidade estranha, a acomodação no espelho - esse lugar intermediário por excelência.
Como EmanueleCoccia apresenta em A vida sensível, é o espelho indica que existimos como mera visibilidade: de mim, fora de mim; e do outro, fora de mim. Ambos exterioridades do eu. O espelho mostra "a existência de algo fora do próprio lugar". Nessa perspectiva, corpo e alma se misturam: o amante torna-se a coisa amada. Como no caso do sujeito de "Poeira de estrelas".
A imagem provocada pelo título da canção, lírica e terna, por sua vez, também tematiza o quão frágil e radical é uma canção, são os tais fios (de contato) por onde trafega o sujeito cantado por CássiaEller, a dialogia mãe/bebê. É na voz que tudo se sustenta e existe. Isso porque, ciclicarmente, "Morre no ar / Um resto de canção / Um resto tão sereno / Tão quieto de paixão". E é a paixão, que só as canções conhecem, que nos move: eis o nosso lugar.

***

Poeira de estrelas
(Lula Queiroga)

Foi quando você dormiu
Profundo
E eu passei a vigiar
Seu mundo
Fiz essa canção
Que é só pra mim
Naquela hora
Um jeito assim de não deixar
O tempo
Ir embora

Foi quando seu olho abriu
Bom dia
Que eu achei que o sol queria chegar
E aquela canção
Fugiu de mim
Nem lembro agora
Foi com as estrelas
Na pequena noite
Sem fim

05 abril 2012

Mamãe no Face

Qual é a função da crítica de arte? Essa pergunta inquieta a nossa história deste sempre. A princípio, a crítica serve para (re)apresentar um obra artística: traduzi-la, inventá-la em palavras para o público em geral, analisa-la e fazer um convite à apreciação. Ao crítico cabe imprimir a pertinência de uma obra diante da cultura em que ela se forja.
Por princípio, toda crítica deve ser isenta do gosto pessoal do crítico. E fazer uso de mecanismos objetivos, para que o leitor possa sentir-se convidado. Criticar é ouvir, ler, ver a obra de modo instrumentalizado. Mas, ao mesmo tempo, estar sempre aberto às sonoridades, gramáticas, sintaxes, morfologias internas da obra que se apresenta nova. A crítica é um acontecimento social: linguagem que critica linguagem.
Como podemos ver, a função do crítico não é tarefa fácil de ser desempenhada. Nem juiz, nem fã, o crítico de canção ainda precisa lidar em um campo nebuloso da cultura: ser especialista onde todos se sentem credenciados a criticar, onde o que pesa é o frenesi da quantidade de visitas que o vídeo do artista recebeu na internet. Ser "O hype dos ringstone / O megahit no youtube".
Parafraseando Gilberto Gil, na canção tudonada cabe. Ciências sociais, Linguística, Semiótica, Musicologia, Filosofia, História, Antropologia, Comunicação, Letras. Por seu caráter transdisciplinar - não é (só) literatura, não é (só) música, não é (só) técnica vocal - a canção ainda não achou seu lugar dentro da universidade, não é uma disciplina. Apesar dos trabalhos e dos empenhos seminais de bravos pesquisadores. Não falo de uma substituição do rodapé pela cátedra. Longe disso, penso no convívio frutífero de ambos, na colaboração dos pensamentos para se investigar teoricamente as poéticas e as estéticas da canção.
Portanto, quem tem a autoridade para criticar canção? De todos e de ninguém, aliada à forte penetração no cotidiano, a (linguagem) canção vive e sofre a mercê do gosto de quem lhe comenta, resenha, critica. E nem podemos dizer que, diferente do que acontece com a literatura, haja uma querela entre crítica acadêmica e crítica de periódicos e blogs. Em canção, há uma ensurdecedora ausência de espírito crítico. Pior para a canção.
Claro, graças às musas e às sereias, temos cancionistas que, vira-e-mexe, através de procedimentos críticos, inflamam uma discussão ou outra, mas sempre fadada a ser repercutida mais na "cultura das celebridades" do que no debate cultural, do conhecimento.
Foi observando esses cancionistas-críticos, ou melhor, o cancionista como intelectual da cultura, que a pesquisadora Santuza Cambraia Naves (ler Canção popular no Brasil) chegou àquilo que ela chamou de "canção crítica". Ou seja, há canções que desenvolvem "um componente crítico". Ainda segundo a autora, "principalmente após a bossa nova, a canção popular tornou-se um espaço crítico em relação ao seu meio de produção, consumo e circulação. (...) Não se trata de uma crítica que se restringe à participação do intelectual na vida pública, como de fato ocorre, mas também de operar com o pensamento crítico no próprio processo criativo, lidando com procedimentos intertextuais e metalinguísticos".
Em tempos de download rápido, da emergência necessária dos cancionistas independentes, da multiplicação de vozes e de suas críticas impressionistas e celebratórias, da democratização promovida pela internet, urge uma crítica que aponte as noções de seus mecanismos de investigação, para além do mero comercial. E, consequentemente, pensar que a cultura cancional está implodida na disseminação sem controle de seu objeto, via internet.
O problema é que uma crítica especializada, mesmo baseada em critérios de análise, por vezes é recebida como ataque pessoal. Ainda é comum confundir criticar com "falar mal". O crítico, quando está exercendo sua função, não é fã deste ou daquele cancionista. A visão contrária, o embate teórico, do pensamento, só faz o objeto - no caso, a canção - enriquecer. Hoje vivemos uma contradição terrível: se por um lado há a emergência de várias vozes, por outro lado há uma busca infrutífera e fatal por UMA verdade.
Além disso, a confusão metodológica com que alguns críticos trabalham faz o leitor desacreditar da crítica. Intuição (paixão) e raciocínio (lucidez) devem estar tencionadas na mesma medida em toda crítica que se quer honesta, pós-colonial, além do furo-de-reportagem, trans-dialética entre o bom e o mau gosto.
E como é na ousadia que a nossa herança cultural se mostra mais coerente, eis que surge uma canção como "Mamãe no face", de Zeca Baleiro (O disco do ano, 2012). Aqui, Baleiro canta um olhar crítico não só de fora do objeto, mas também de fora da crítica. E causa mal estar ao elencar nomes de pessoas e entidades responsáveis por engendrar consagrações na área da canção.
Para ficar apenas em um dos citados, um cancionista-crítico, Caetano Veloso deu razão a Lobão quando este cantou, em "Para o mano Caetano" (2001: Uma Odisséia no Universo Paralelo): "Chega de verdade!". Uma crítica tanto ao título do livro Verdade tropical, publicado em 1997, pelo mano, quanto à confessada "ânsia permanente de manter a transparência, uma honestidade pública", nas palavras de Caetano.
À época, em entrevista à revista Trip (#91), Lobão declarou: "Eu queria mesmo sacanear o Caetano". Ao que o outro respondeu: "Achei isso tão profundo, tão certo pra mim e bem pensado! (...) Diz muito a respeito da minha biografia pessoal e artística. (...) Achei um conselho vindo de alguém que está me vendo sinceramente". Em 2009, Caetano retribuiria a canção com "Lobão tem razão" (Zii e zie).
Deste modo, "Mamãe no face" se desassemelha de "Paratodos", de Chico Buarque, "Pra ninguém", de Caetano Veloso e "Todas elas juntas num só ser", de Lenine e Carlos Rennó, por exemplo, apenas pelo fato de que, enquanto estas são leituras (quase) acríticas do gosto de cada cancionista, aquela mira na crítica da crítica. Porém, todas indiciam sujeitos amantes de canção, do fazer cancional.
Importa lembrar ainda que em 2009 Marcela Bellas lançou um disco cujo título é Será que Caetano vai gostar?, em mais uma menção à filosofia do gostar de gostar usada por Caetano Veloso. E que o irônico e calculadamente pretensioso título do álbum de Zeca Baleiro lembra o título A melhor banda de todos os tempos da última semana (2001), disco do grupo Titãs. Ambos tematizando a efemeridade da recepção do fazer canção em tempos de reprodução e de mobilidade técnicas facílimas.
É bom lembrar também que não é a primeira fez que a língua de Zeca Baleiro desagrada o coro dos contentes. Em "Bienal" (Vô imbolá, 1999), ele focou na artes plásticas para criticar o tom apoteótico e incensado da crítica de arte: "Pra entender um trabalho tão moderno / É preciso ler o segundo caderno, / Calcular o produto bruto interno, / Multiplicar pelo valor das contas de água, luz e telefone, / Rodopiando na fúria do ciclone, /Reinvento o céu e o inferno", cantou. E evocou a mãe: "Minha mãe certa vez disse-me um dia, / Vendo minha obra exposta na galeria, / "Meu filho, isso é mais estranho que o cu da jia / E muito mais feio que um hipopótamo insone".
"Mamãe, não sou mainstream, nem sou cool / Eu sou assim vaptvupt / Caiu na boca do povo // Mamãe, é bom ser experiente / Ainda mais independente / Não ser nem velho nem novo // Mamãe, o fato é que eu tô na moda / Mamãe, fiz um disco foda / Faz um download / Ouve aí", canta agora Zeca Baleiro. É deste lugar pós-nacional, híbrido, de fluxos, crítico que ele fala. E é a partir daí que deve ser ouvido.
Ao artista cabe sair (ou não) da sombra dos antecessores e desestabilizar a verdade, as certezas. Assim fizeram os tropicalistas. E é isso que, de modo enviesado, o sujeito que canta em "Mamãe no face" faz: desacomoda para acomodar-se - "Mamãe, eu fiz o disco do ano".
A auto referencialidade, evocando a mãe, talvez sua única ouvinte diante da profusão de "novos" cantores ("as cantoras que há de sobra"), faz do sujeito de "Mamãe no face" um malicioso e lúcido pensador de seu tempo, das polêmicas requentadas e das mornas rebeldias. Ele canta e critica "o ido o tido o dito, o dado o consumido, o consumado". "Mamãe no face" é uma canção crítica do cânone e das estratégias de consagração.
"Mamãe no face" é uma crítica à cultura cancional. Com isso quem ganha é a própria cultura. Enquanto fãs de Zeca e de Caetano brigam, quem ganha com o espírito crítico do primeiro, importa dizer, herdado, de viés, do segundo de tempos tropicalistas, é a canção. O pensamento da canção. Homenagem ou puro sarcasmo, pouco importa. "Mamãe no face" mexe com os afetos (agrados e desagrados) da crítica cancional. E isso é muito bom. Melhor para a canção.

***

Mamãe no Face
(Zeca Baleiro)

Mamãe
Eu fiz o disco do ano
E até mesmo Caetano
Parece que aprovou

Mamãe
Eu sigo na minha rota
Veja só o Nelson Motta
Disse que o disco é show

Só falta
Que a Folha de São Paulo
Comece a incensá-lo
Dizer que eu sou o cara
Ou então
Que os rapazes da Veja
Me chamem pruma cerveja
Veja só que coisa rara

Mamãe
Não sou mainstream nem sou cult
Meu som assim vapt vupt
Caiu na boca do povo

Mamãe
É bom ser experiente
Ainda mais independente
Não ser nem velho nem novo


Só falta
Ser capa da Rolling Stone
O hype dos ringtones
O megahit no youtube
E as
Cantoras que há de sobra
Festejarão minha obra
Não saio mais desse clube

Mamãe
Eu fiz o disco do ano
Parece até q o Hermano
Falou bem na Piauí

Mamãe
O fato é que eu tô na moda
Mamãe fiz um disco foda
Faz um download e ouve aí