“A
mulher do fim do mundo / Dá de comer às roseiras, / Dá de beber às estátuas, /
Dá de sonhar aos poetas. // A mulher do fim do mundo / Chama a luz com assobio,
/ Faz a virgem virar pedra, / Cura a tempestade, / Desvia o curso dos sonhos, /
Escreve cartas aos rios, / Me puxa do sono eterno / Para os seus braços que
cantam” (Murilo Mendes, “Metade pássaro”, 1941).
Lendo
esse poema de Murilo Mendes e ouvindo o novo disco de Elza Soares, lembramos
das palavras de Octavio Paz em O arco e
a lira: “Poesia e religião são revelação. Mas a palavra poética não precisa
da autorização divina. A imagem se sustenta sozinha, sem necessidade de
recorrer à demonstração racional nem à instância de um poder sobrenatural: é a
revelação de si mesmo que o homem faz a si mesmo”. O sujeito poético de Murilo Mendes
antecede e antever a mulher do fim do mundo que Elza Soares é. O poema de 1941
revela a mulher de 2015, numa dessas torções temporais que só a arte consegue
promover.
Há
canções que parecem que só podem ser entoadas por determinadas vozes. A essas
canções, essas vozes conferem legitimidade. Ou autoridade, para usar o termo
usado por Paz. Seja ao sujeito da canção - à mensagem da letra -, seja ao
sujeito cancional - ao ser que surge na frente do ouvinte durante a audição
daquela canção entoada daquele modo por aquela voz (daquele alguém
cancionista).
O
ano de 2015 gerou duas dessas canções: “Átimo de som”, composta por Zé Miguel
Wisnik e Arnaldo Antunes e gravada por Gal Costa no disco Estratosférica, e “Mulher do fim do mundo”, composta por Romulo
Fróes e Alice Coutinho e gravada por Elza Soares em A mulher do fim do mundo. Que outra voz pode dizer, do modo como
diz, que “um átimo de som / num átomo de ar / pode ser capaz de disparar / o
que sente o pensamento / o que pensa a sensação / antes mesmo de virar canção”,
senão a voz de Gal Costa? Que outra voz pode dizer “na chuva de confetes deixo
a minha dor / na avenida deixei lá / a pele preta e a minha voz / (...) /
mulher do fim do mundo / eu sou / eu vou / até o fim / cantar”, senão a voz de
Elza Soares?
Elza
é a mulher do fim do mundo profetizada e revelada na poesia de Murilo Mendes. A
presença de Elza “tem por bandeira um pedaço de sangue / onde flui a correnteza
do canal do mangue”, como diz “Coração do mar”, poema de Oswald de Andrade,
cantado à capela por Elza Soares na abertura do disco. “É o navio humano,
quente, negreiro do mangue / é o navio humano, quente, guerreiro do mangue”,
completa o poema do poeta antropófago.
Em
seguida entram o instrumental e a narrativa estilhaçada da canção “Mulher do
fim do mundo”. Como se a cada piscar de olhos, a cada esquina essa mulher encontrasse
um novo e desconcertante significante - “Pirata e super homem cantam o calor /
Um peixe amarelo beija minha mão / As asas de um anjo soltas pelo chão”. A
mulher que canta e chora Lupicínio Rodrigues caminha na avenida em dia de
carnaval, revirando os resíduos da festa e revelando o trágico para além da
máscara. A voz de Elza Soares humaniza o ouvinte cujas máscaras sociais querem
esconder a dor, o hedonismo e a hipocrisia, típicas do humano dito
contemporâneo e, mesmo, moderno.
Se,
como escreveu Octávio Paz, “a poesia não é um juízo nem uma interpretação da
existência humana”, a palavra cantada em Elza Soares contra interpreta-se
revelando criticamente o genocídio (de negros) e o feminicídio naturalizados na
cultura brasileira. A vocoperformance de Elza Soares recria o sujeito criado
pelos compositores, ao inserir a cantora no conteúdo. Ou melhor: sua forma de
cantar é conteúdo, porque forma é conteúdo e a artista-humana sabe disso. O que
ela canta é vida, porque é arte, é invenção maturada no/do ser.
Podemos
utilizar o conceito de palimpsesto para tratar da voz de Elza Soares. As várias
camadas de tempo, raspadas para dar lugar a outros tempos (passado, presente e
futuro), do pergaminho servem de metáfora e metonímia à performance vocal. E
podem ser percebidas na condensação plena de arranhões da voz de Elza Soares.
Porém, diferente do papiro que perdia a informação antiga para dar lugar à
informação nova, Elza não apaga o antigo. Sua voz aglutina e deixa tudo à
mostra, à audição do ouvinte. Sua capacidade de reutilização do suporte dá
vida a seres que não medem esforços para cantar.
Nesse
sentido, podemos dizer que Elza raspa a história, sobrepõe significantes
sonoros ao tempo e reinventa-se como pessoa e como cantora. Se é que uma está
apartada da outra. E faz isso conectada com as novas sonoridades, com as
pesquisas de cancionistas que aprenderam muito com ela. Isso é estar aberta à
vida: aprender com aqueles que com ela aprendeu. Afinal, “a mulher do fim do
mundo / dá de sonhar aos poetas”, escreveu Murilo Mendes.
Tudo
dói. E Elza termina o disco evocando a mãe. Elza sabe que faz parte de uma
história que começou há muito tempo e que continua e persistirá tiranizando
toda a existência: “É o navio humano, quente, negreiro do mangue / é o navio
humano, quente, guerreiro do mangue”. Elza Soares é um ser cantante a nos tirar
do sono eterno, do conforto dominical, é sereia do mangue a ameaçar: “cê vai se
arrepender de levantar a mão pra mim”. Dura na queda, ela dá a volta por cima,
devora a dor, faz da dor o motor da luz e vai cantar até o fim: “Lá, lá, lá /
lá, lá, lá”.
***
Mulher do fim do mundo
(Romulo Fróes / Alice Coutinho)
Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qual é
Pirata e super homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor
Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do
Resto
Dessa
Vida
Na avenida
Dura
Até
O fim
Mulher
Do fim
Do mundo
Eu sou
Eu vou
Até o fim
Cantar