Márcia
Nascimento não é uma estreante. Longe disso, data de 1984 o lançamento do LP Avião de combate da banda Sempre livre –
formada só por mulheres, com Márcia Gonçalves na guitarra, violão e vocal.
Podemos dizer sem erro que Márcia NG adotou os versos de liberdade e
desenvolveu desde então uma carreira empenhada no estudo das cordas vocais e do
seu violão. Participou de importantes trabalhos, seja como produtora,
arranjadora e há anos investiga e desenvolve pesquisas sobre música barroca.
Agora Márcia Nascimento lança seu primeiro trabalho solo e autoral, oferecendo
ao público o mel do melhor. Independente, Oito
temas (2014) inscreve a violonista no esperado lugar de artista que
percorreu longo caminho de maturação estética e pessoal. Na linhagem de Rosinha
de Valença, de Lucinha Turnbull.
A
beleza dos temas tocados por Márcia encontra-se no lugar da tensão entre afeto
e tradução musical desse afeto. Explico-me: as oitos faixas do disco são temas
dedicados à personagens da vida da artista: “Uma canção é um encontro, uma
amizade”, diz. Portanto, de “Um tema para Lucina” até “Um tema para o Sergio”,
Márcia dedilha os caminhos do conhecer diante do outro, de alguém a quem se
deve devolver amor em forma de música. Os temas são emblemas dos modos de usar
o sobrenome – Nascimento, Gonçalves, NG –, sugerindo as experimentações de si,
marca determinante para uma artista não adaptada ao fácil. Fazer o fácil é
difícil. Transformando-se em outras no embate com seus temas, Márcia mantém seu
eixo cancional, musical.
O
repertório marcado pelo afeto presentifica uma intimidade singular: “Há
momentos nos quais essa presença torna-se imprescindível. Por vezes é presença
que se perde no tempo e que se acende rápido, nas primeiras notas ou versos que
dela se escute”, afirma Márcia. Essa suspeita facilidade só se sustenta porque
há por trás de cada tema um trabalho rigoroso de transcriação dos sentimentos.
A delicadeza ouvida é resultado de labuta, de rigor. Ou seja, mais que sons, Oito temas acende sentidos. Sem voz, as
notas do violão encenam um teatro da intimidade. Eis o erotismo e a linguagem
adensada que a estética barroca oferece à obra de Márcia Nascimento: dualismo
entre a experiência do mundo, exercido no trato artístico, e a lírica amorosa das
relações íntimas. É desse modo que Oito
temas surge como o lugar de tensão: ouçam-se os torneios de “Um tema para
Lucina”, por exemplo, quando o violão de Márcia dialoga com o violão de Lucina,
violon-vocalizando um agradecimento à mestre e estendendo o acolhimento de inventora-aprendiz
também a Luhli – ambas musas de uma geração que fez da vida arte, gesto
artístico.
Frente
ao falatório contemporâneo, o silêncio, o recolhimento, a concisão, a ironia. Melodias
fraturadas – “Um tema para Juliana” – e delicadas linearidades – “Um tema em
be” – justapõem-se em mashups distendendo
o prazer de tocar. Oito temas é esse
responder às demandas da existência polifônica. Fazer música é ouvir música,
ensina a instrumentista. A leveza é alcançada na transpiração, no trabalho
cotidiano com o parceiro violão. O ouvinte percebe-se enredado entre luzes
brandas e paisagens tão melancólicas quanto amorosas. Lembro de Angela Melim e
seus versos: “A solidão é um navio. / Só o que me move é a pá da solidão / o
leme”. Risco enfrentado por Márcia Nascimento.
Por
que temer o feminino? Parece ser essa a questão-chave que Márcia vem ensaiando
responder desde sempre, desde o Sempre. Do desejo contraventor de empoderamento
em território tradicionalmente masculino ao caminho à margem do mercado, a
artista se afirma no toque entre minuetos, sarabandas, prelúdios. Sob seu som
revelam-se belezas, calor, presença. Ao final da escuta de Oito temas fica a certeza de que, venha de onde vier, a inspiração
sempre encontrará Márcia Nascimento trabalhando em seu exercício de liberdade.