Para além do imbróglio entre Raimundo Fagner, que não creditou o nome da autora do poema "Marcha" (cuja quinta estrofe diz: "Quando penso no teu rosto, / fecho os olhos de saudade; tenho visto muita coisa, / menos a felicidade. / Soltam-se os meus dedos tristes, / dos sonhos claros que invento. / Nem aquilo que imagino / Já me dá contentamento") na canção "Canteiros" (Manera Fru Fru, Manera, 1973) e os herdeiros de Cecília Meireles (1901-1964), a escritora teve versos musicados por Alain Oulman, Oscar Lorenzo Fernandez, Xangai, Sueli Costa, entre outros; e cantados por Inezita Barroso, Maria Bethânia, Nara Leão, Sueli Costa. Esta musicou e cantou poemas cecilianos duas vezes: "Retrato" (Sueli Costa, 1975) e "Dorme meu menino dorme" (Vida de artista, 1978; também gravada por Quarteto em Cy - Resistindo, 1977), cuja letra é resultado do arranjo de partes do "Romance V ou da destruição de ouro podre", do livro Romanceiro da inconfidência (1953).
Destaco "Retrato" porque, além de ser um poema bastante conhecido e reproduzido em livros didáticos, a própria poeta registrou seus versos na voz no volume IX da série Poesias (1956), disco dividido com Guilherme de Almeida (1890-1969).
Se a declamação gravada da poeta segue o ritmo imposto pela métrica e pela cesura do texto impresso no livro Viagem (1939) - "Eu não tinha este rosto de hoje" - e lê as palavras tais como dispostas no poema - "assim calmo, assim triste, assim magro"; a canção de Sueli Costa quebra o ritmo do texto-partitura - "Eu não tinha / esse rosto de hoje" - e desloca palavras "assim calmo, assim magro, assim triste", a fim de marcar a coautoria da canção. Mas também para adensar o estranhamento-de-si na imagem refletida no discurso do sujeito cancional.
Nas três estrofes que compõem o poema, temos o embate entre aparência (rosto) e profundidade (coração) da imagem que o retrato fixa. Ao quebrar a simetria do rosto retratado no primeiro verso - o par "magro/amargo" (rosto e coração), do poema, vira triste/amargo (coração e coração), na primeira estrofe da canção -, Sueli aborda tópicas importantes da poética de Cecília, tais como desencanto e mostalgia. Muito embora a cancionista mantenha os pares das outras duas estrofes - "mortas/mostra" e "fácil/face".
A estrutura do poema diz bastante do conteúdo tratado. Três estrofes e repetições rítmicas também em três, causadas por anáforas que reiteram a negação da imagem que o eu-lírico vê no retrato - "Eu não tinha"; "Eu não tinha"; "Eu não dei". Bem como as tríades dos segundos versos de cada estrofe - "assim calmo, assim triste, assim magro"; "tão paradas e frias e mortas"; "tão simples, tão certa, tão fácil".
Também poeta, letrista parceria de Aldir Blanc, Abel Silva, Tite de Lemos e dos poetas Cacaso e Ferreira Gullar, Sueli Costa compreendeu a perspectivação-de-si apresentada pelo eu-lírico, a nos dizer que, entre o que eu vejo no retrato (rosto) e o modo como me percebo (coração), há uma terceira imagem que só o estético, o poema pode acessar: "A vida só é possível / reinventada", anota Cecília em "Reinvenção". Daí porque o sujeito cancional criado por Sueli repete três vezes a irrespondível pergunta dos últimos versos do poema: "- Em que espelho ficou perdida / a minha face?".
Para Silvina Rodrigues Lopes, "a visão configurada no poema não é a mais completa, nem a mais lucrativa, nem a mais perfeita como imagem replicante de um objeto ou do mundo reduzido a objeto (como na expressão 'visão do mundo'). Do que se trata na poesia é da visão que proporciona o incomensurável" (2019, p. 20). Mais adiante a autora anota que "as imagens literárias não são diretamente visíveis, elas resultam da substituição da significação literal por um processo que não seja alheio ao efeito sensível da percepção, ou seja, supõem a substituição de um termo próprio por outro dito figurado que tem o poder de evocar uma apresentação" (p. 21). A procura pela face perdida em algum espelho (que o poema é) é o motor do eu poemático, e cancional. "Uns tem até felicidade / Eu tenho o retrato falante / (...) / Repete palavras esquivas, / sublinha, pergunta, responde, e apresenta, / claras e vivas, as intenções que o mundo esconde. // (...) os retratos / são de natureza mais forte" que a morte, anota Cecília em "Retrato falante".
O tríptico - eu composto de três partes inseparáveis - criado por Cecília Meireles é vocalizado com a passionalização necessária para que o foco mantenha-se no meio: entre o "rosto" da primeira estrofe (assim..., assim..., assim...) e a "face" da terceira estrofe (tão..., tão..., tão...), as mãos da segunda estrofe (tão..., e..., e...). Mãos da poeta: o gesto de escrita deste "coração / que nem se mostra". Para José Miguel Wisnik: "o canto potencia tudo aquilo que há na linguagem, não de diferença, mas de presença. E presença é o corpo vivo; não as distinções abstratas dos fonemas, mas a substância viva do som, força do corpo que respira. Perante a voz da língua, a voz que canta é liberação: o recorte descontínuo das sucessivas articulações cede vez ao continuum das durações, das intensidades, do jogo das pulsações; as ondas menos periódicas da voz corrente dão lugar ao fluxo do sopro ritualizado pela recorrência. (WISNIK apud TATIT, 1996, p. 15).
Cantar um poema é lidar com o anacronismo - da letra à voz; a defasagem do tempo. Tempo que é topos no poema de Cecília. O anacronismo é solapado na contemporaneidade, na era da reprodutibilidade técnica. Solapar o tempo do poema e torná-lo contemporâneo na voz, pela voz é o gesto executado por Sueli. E, como anota Luiz Tatit, "na junção da sequência melódica com as unidades linguísticas, ponto nevrálgico de tensividade, o cancionista tem sempre um gesto oral elegante, no sentido de aparar as arestas e eliminar os resíduos que poderiam quebrar a naturalidade da canção. Seu recurso maior é o processo entoativo que estende a fala ao canto. Ou, numa orientação mais rigorosa, que produz a fala no canto" (TATIT, 1996, p. 9).
"Eu canto porque o instante existe / e a minha alma está completa, / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta", diz Cecília em "Motivo". E a "alma está completa" no tríptico do eu que funde passado, futuro e presente no instante que existe e é cantável. Sueli registra no canto a fala sismarenta do eu poemático de Cecília, a lentidão dos arranjos vocabulares de quem se contempla com acuidade sensorial, tomando consciência da fugacidade do tempo. "Assim compreendo / o meu perfeito / acabamento", diz a poeta em "Auto-retrato".
LOPES, Silvina Rodrigues. A anomalia poética. Belo Horizonte-MG: Chão da Feira, 2019.
MEIRELES, Cecília. Flor de poemas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1972.
TATIT, Luiz. O Cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: EdUSP, 1996.
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(Cecília Meireles / Sueli Costa)
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?