São vários e complexos os caminhos que levam à musicalização
de um texto escrito. Sabemos que as palavras tem "musicalidade", mas
esta só é efetivada na voz, na vocalização da palavra. Sentimos esta
musicalidade, já devidamente naturalizada dentro de nós, ao ler silenciosamente
um texto porque estamos infectados pela memória sonora da palavra falada
(cantada), pela sua materialidade vocal.
Encontrar a gestualidade vocal exata, equilibrar texto e
música na voz para "melhor dizer" uma mensagem é tarefa árdua e
prazerosa enfrentada pelo cancionista. O certo é que se não há um "jeito
único" de vocalizar um texto, cabe ao destinador esquentá-lo de modo a transmitir
a mensagem da melhor forma possível à compreensão do destinatário. Do mesmo
modo como fazemos ao falar. Ou seja, as "mesmas palavras" servem a
intenções diversas e para diferenciar as intenções a voz entra em ação. Quando
lemos um texto, entre outros artifícios, os sinais oferecidos pelo narrador são
o que nos auxilia a distinguir as intenções.
Caetano Veloso, por exemplo, opta por uma cama sonora
passional para musicar/vocalizar um trecho do livro Minha formação, de Joaquim Nabuco, incentivado pela constatação do narrador
que diz: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica
nacional do Brasil". Ao falar sobre o permanência fantasmagórica da
escravidão como algo introjetado ao jeito de ser do brasileiro, entre
lembranças, saudades e afirmações, o cancionista recusa qualquer gesto que
nublaria sua introspecção, sua reflexão interna sobre o caso. "É ela o
suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte", Caetano
Veloso finaliza vocalmente melancólico para plasmar a melancolia do sujeito da
canção, do narrador de Nabuco.
Dito isso, podemos começar a entrar no entendimento da
proliferação de sons com a qual Iara Rennó presenteia o ouvinte do disco Macunaíma Ópera Tupi (2008). Tradução
intersemiótica do livro Macunaíma – o
herói sem nenhum caráter, o disco de Iara musica e vocaliza trechos levando
o ouvinte a empreender uma viagem etno-antropo-semio-musicológica tal e qual a organizada pelo musicólogo Mário de Andrade na seminal Missão de Pesquisas Folclóricas. O disco é o resultado das anotações afetivas
a partir da leitura de Iara sobre o livro.
Notas sobre notas, somos convidados a navegar com Macunaíma
pela diversidade do Brasil sonoro. Turistas aprendizes que somos. Justapondo
música erudita e música folclórica, bem como funk, eletrônico, sem juízos de
valor, mas pelo prazer do gesto brasileiro, o disco explicita o vigor plural e
étnico do país. E o conjunto resulta em ritual sincrético: violino e tambor,
eletrônico e cordel, psicodelia e cantigas folclóricas, o Tupi e o alaúde.
Embolada, repente, rap. Difícil definir. Melhor sentir e reconhecer na
(pro)fusão os rascunhos de Brasil.
Ao extrair do livro reconhecidamente importante ao cânone
literário brasileiro os trechos e versos que compõem as canções do disco, Iara
promove, via instinto caraíba, a valorização da antropofagia como signo
estético e artístico. Além de devolver às palavras a vocalização contida nelas
antes de Mário de Andrade as fixar no papel.
Iara revocaliza lendas, mitos e rituais indígenas, africanos
e portugueses com a mesma perspicácia rapsódica engendrada pelo autor do livro.
E, assim, a "ópera tupi", a "odisseia" de Mário se
(re)traduz em veículo da tradição vocal e popular. Como o autor anota ao final
do livro: "Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos,
ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala
impura as frases e os casos de Macunaíma, herói da nossa gente".
Traindo a tradição para manter a beleza da tradição, Iara
copia, recorta, cola, mistura a "fala impura". Vejamos o exemplo de
"Bamba querê. A canção incorpora a cadência das aliterações presentes no
texto de tal modo que fica difícil para o ouvinte imaginar outra rítmica senão
a criada e inventada por Iara. É na dança do orixá Iemanjá no terreiro que Iara
se mira para construir a canção e plasmar a imagem do cavalo possuído diante do
ouvinte. Vejamos o trecho do livro de onde a cantora capturou a canção:
No outro dia o tempo estava inteiramente frio e o herói
resolveu se vingar de Venceslau Pietro Pietra dando uma sova nele pra
esquentar. Porém por causa de não ter força tinha mas era muito medo do
gigante. Pois então resolveu tomar um trem e ir no Rio de Janeiro se socorrer e
Exu diabo em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia.
Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata, feiticeira como não tinha outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas Macunaíma chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão de pinga obrigatório. Já tinha muita gente lá, gente direita, gente pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos, todas essas gentes e a função ia principiando. Macunaíma tirou os sapatos e as meias como os outros e enfiou no pescoço a milonga feita de cera de vespa tatucaba e raiz seca de assacu. Entrou na sala cheia e afastando a mosquitada foi de quatro saudar a candomblézeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita. Ninguém mais não enxergava olhos nela, era só ossos duma compridez já sonolenta pendependendo, pro chão de terra.
Vai, um rapaz filho de Ochum, falavam, filho de Nossa Senhora da Conceição cuja macumba era em dezembro, distribuiu uma vela acesa pra cada um dos marinheiros marcineiros jornalistas ricaços gamelas fêmeas empregados-públicos, muitos empregados-públicos! Todas essas gentes e apagou o bico de gás alumiando a saleta.
Então a macumba principiou de deveras se fazendo um çairê pra saudar os santos. E era assim: Na ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadistas de profissão, se chamando Olelê Rui Barbosa. Tabaque mexiamexia acertado num ritmo que manejou toda a procissão. E as velas jogaram nas paredes de papel com florzinhas, sombras tremendo vagarentas feito assombração. Atrás do ogã vinha tia Ciata quase sem mexer, só beiços puxando a reza monótona. E então seguiam advogados taifeiros curandeiros poetas o herói gatunos portugas senadores, todas essas gentes dançando e cantando a resposta da reza. E era assim:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Tia Ciata cantava o nome do santo que tinham de saudar: v. ...
— Ôh Olorung!
E a gente secundando:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Tia Ciata continuava:
— Ô Boto Tucuchi!
E a gente secundando:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Docinho numa reza mui monótona.
— Ô Iemanjá! Anamburucu! e Ochum! três Mães-d'água!
— Va-mo sa-ra-vá!...
Assim. E quando a tia Ciata parava gritando com gesto imenso:
— Sai Exu!
porque Exu era o diabo-coxo, um capiroto malévolo, mas bom porém pra fazer malvadezas, era um tormento na sala uivando:
— Uuum!... uuum!... Exu! Nosso padre Exu...!
E o nome do diabo reboava com estrondo diminuindo o tamanhão da noite fora. O çairê continuava:
— Ôh Rei Nagô!
— Va-mo sa-ra-vá!... Docinho na reza monótona.
— Ôh Baru!
— Va-mo sa-ra-vá!...
Quando sinão quando tia Ciata parava gritando com gesto imenso:
— Sai Exu!
porque Exu era o pé-de-pato, um jananaíra malévolo. E de novo era o tormento na sala uivando:
— Uuuum!... Exu! Nosso padre Exu!...
E o nome do diabo reboava com estrondo encurtando o tamanho da noite.
— Ôh Oxalá!
— Va-mo sa-ra-vá!...
Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata, feiticeira como não tinha outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas Macunaíma chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão de pinga obrigatório. Já tinha muita gente lá, gente direita, gente pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos, todas essas gentes e a função ia principiando. Macunaíma tirou os sapatos e as meias como os outros e enfiou no pescoço a milonga feita de cera de vespa tatucaba e raiz seca de assacu. Entrou na sala cheia e afastando a mosquitada foi de quatro saudar a candomblézeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita. Ninguém mais não enxergava olhos nela, era só ossos duma compridez já sonolenta pendependendo, pro chão de terra.
Vai, um rapaz filho de Ochum, falavam, filho de Nossa Senhora da Conceição cuja macumba era em dezembro, distribuiu uma vela acesa pra cada um dos marinheiros marcineiros jornalistas ricaços gamelas fêmeas empregados-públicos, muitos empregados-públicos! Todas essas gentes e apagou o bico de gás alumiando a saleta.
Então a macumba principiou de deveras se fazendo um çairê pra saudar os santos. E era assim: Na ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadistas de profissão, se chamando Olelê Rui Barbosa. Tabaque mexiamexia acertado num ritmo que manejou toda a procissão. E as velas jogaram nas paredes de papel com florzinhas, sombras tremendo vagarentas feito assombração. Atrás do ogã vinha tia Ciata quase sem mexer, só beiços puxando a reza monótona. E então seguiam advogados taifeiros curandeiros poetas o herói gatunos portugas senadores, todas essas gentes dançando e cantando a resposta da reza. E era assim:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Tia Ciata cantava o nome do santo que tinham de saudar: v. ...
— Ôh Olorung!
E a gente secundando:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Tia Ciata continuava:
— Ô Boto Tucuchi!
E a gente secundando:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Docinho numa reza mui monótona.
— Ô Iemanjá! Anamburucu! e Ochum! três Mães-d'água!
— Va-mo sa-ra-vá!...
Assim. E quando a tia Ciata parava gritando com gesto imenso:
— Sai Exu!
porque Exu era o diabo-coxo, um capiroto malévolo, mas bom porém pra fazer malvadezas, era um tormento na sala uivando:
— Uuum!... uuum!... Exu! Nosso padre Exu...!
E o nome do diabo reboava com estrondo diminuindo o tamanhão da noite fora. O çairê continuava:
— Ôh Rei Nagô!
— Va-mo sa-ra-vá!... Docinho na reza monótona.
— Ôh Baru!
— Va-mo sa-ra-vá!...
Quando sinão quando tia Ciata parava gritando com gesto imenso:
— Sai Exu!
porque Exu era o pé-de-pato, um jananaíra malévolo. E de novo era o tormento na sala uivando:
— Uuuum!... Exu! Nosso padre Exu!...
E o nome do diabo reboava com estrondo encurtando o tamanho da noite.
— Ôh Oxalá!
— Va-mo sa-ra-vá!...
Como vemos, Iara Rennó antologiza, em tom mario-andradiano,
exatamente os versos vocalizados para montar a canção "Bamba querê".
A querência de Iara desterritorializa, remelexe, bambeia extratos sonoros para
(re)apresentá-los encapsulados em forma de uma canção una, núcleo duro do país
de semiologia macunaímica. E, assim como Haroldo de Campos anotou sobre o
livro, “no coquetel, porém, havia método” (em Morfologia do Macunaíma, 1973, p. 79), no canto de Iara – ou seria
da Iara (sereia)? – há a aplicação do método daquilo que podemos chamar, juntos
com José Celso Martinez Corrêa, de “macumba antropofágica”. Desse modo, a
"linhagem rabelaisiana" presente no livro é restaurada por Iara na
canção, no disco: do cruzamento de várias sintaxes ao protagonismo da voz,
passando pelo além do bem e do mal nietzschiano.
***
Bamba querê
(Mário de Andrade / Iara Rennó)
Bamba querê
Sai Aruê
Mongi gongo
Sal Orobô
Êh!
Ô mungunzá
Bom acaçá
Vancê nhamanja
De pai Guenguê
Êh!
Ôh Olorong!
Boto Tucuchi!
Ô Iemanjá!
Anamburucu!
Oxum!
três Mães-d'água!
- Va-mo Sa-ra-vá!
(Mário de Andrade / Iara Rennó)
Bamba querê
Sai Aruê
Mongi gongo
Sal Orobô
Êh!
Ô mungunzá
Bom acaçá
Vancê nhamanja
De pai Guenguê
Êh!
Ôh Olorong!
Boto Tucuchi!
Ô Iemanjá!
Anamburucu!
Oxum!
três Mães-d'água!
- Va-mo Sa-ra-vá!