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29 setembro 2011

Musa cabocla

"Quanto mais o tempo passa, mais me afasto, mais vejo outras possibilidades de ser que não são propriamente possibilidades femininas, mas possibilidades limpas, como, por exemplo, intrigar-me neuroticamente com o canto dos bem-te-vis, que não é nada, nem masculino nem feminino, é limpo", anota o narrador do livro Rato, de Luís Capucho.
Parece ser nesse "canto limpo", puro, assemântico que se baseia a tradição filosófica de matriz grega, a fim de definir o lugar da voz em nossas vidas: o lugar onde o semântico (masculino) se perde na sedução vocálica (feminina) e, portanto, deve ser evitado.
Porém, assim como também sugere o narrador de Rato - "mais vejo outras possibilidades de ser que não são propriamente possibilidades femininas" -, tal filosofia esquece que todo canto pressupõe uma audição e que a voz sempre vence. Ora, quem foi que disse que o bem-te-vi diz "bem-te-vi" enquanto canta senão a interpretação humana? Ou melhor, nossa tendência a dar sentido a tudo que nos cerca - eliminando os riscos do desconhecido?
A ideia de um canto limpo (assexuado) tenta recuperar o paraíso materno: o casulo infinitamente abundante que nos abrigou por um tempo e para o qual parecemos estar sempre querendo retornar. O canto do bem-te-vi, ouvido como uma representação de um dos sons da natureza, recupera esse canto ideal: inatingível. Mas é sempre um som vazio, preenchido de sentidos pela lógica de quem escuta. Ou melhor, a voz não comunica nada, a não ser a própria comunicação.
O segredo da canção está no fato de que cada voz é única. É na voz que se encontra a unicidade. "Eu minto, mas minha voz não mente", diria o sujeito de "Drama", de Caetano Veloso. É assim que uma "mesma" canção (mediatizada, massiva) afeta cada ouvinte por lugares diferentes. É assim também que uma "mesma" canção, ao ser cantada por outra voz, ganha novos sons.
"A voz não é apenas som, mas é sempre a voz de alguém que vibra em sintonia com os sons naturais e artificiais do mundo em que vive", registra Adriana Cavarero no livro Vozes plurais. O canto é o nada, que é tudo, poderia dizer o narrador de Rato, a respeito dos bem-te-vis que lhe perturbam o pensamento.
O canto de um pássaro e o canto humano não são, obviamente, a mesma coisa. A voz os distingue. A voz humana carrega a palavra que, por sua vez - phoné semantiké - carrega o humano. Jogando com tais categorias, o sujeito de "Musa Cabocla", de Gilberto Gil e Waly Salomão, por exemplo, cria o efeito de presença de si a partir daquilo que fala.
Para tanto, o sujeito (poeta, cancionista) evoca a musa cabocla, híbrida. Ouvintes comuns que somos, só temos acesso àquilo que ela fala através da mediação do sujeito (cancionista, poeta, cantor). Ele ouve e canta: é sereia que canta sentada na pedra a medrar o marinheiro. Classicamente um híbrido (mulher e animal), a sereia/musa aqui é cabocla.
Gal Costa é a musa cabocla do título da canção: aquela que inspira Gilberto Gil e Waly Salomão a compor um discurso a ser engendrado na voz da própria musa. Por trás da voz (ficcional) do sujeito da canção há a voz de uma pessoa de carne e osso: uma garganta.
Feitas refrão, as afirmativas que serpenteiam a letra - "Sou pau de resposta, jibóia sou eu, canela / Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela" - reforçam o desenho (visão) da "Mãe matriz da fogosa palavra cantada / Geratriz da canção popular desvairada / Nota mágica no tom mais alto, afinada" que Gal Costa (voz) encarna.
A finalidade lúdica (poética) de "Musa cabocla" (Minha voz minha vida, 1982) é restaurar o sentido da significação. Dito de outro modo, o sujeito (sereia), através da proliferação de significantes e comparações, deixa a sereia cantar: engendra um canto sirênico em que "quem" fala é tão importante quanto aquilo que é "falado". Um empenho feliz do primado da voz sobre a palavra.
"Mãe matriz da fogosa palavra cantada / Geratriz da canção popular desvairada / Nota mágica no tom mais alto, afinada". Tais palavras guardam o medo que certa filosofia tem com relação à canção, à voz. Interpreta-se que a sereia é causa da perda da razão do indivíduo. Daí o emudecimento progressivo do logos. Esquecendo-se, deste modo, da unicidade inimitável de cada voz e de que é possível pensar com os pulmões.
Sereia, diferente do bem-te-vi, do sabiá, da cigarra, o sujeito de "Musa cabocla" canta palavras: palavras que ele mesmo (musa que também é) engendra no poeta. Travestindo-se na canção, o sujeito (monstro canoro) se presentifica. "Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela", diz.
 
***
 
Musa cabocla
(Gilberto Gil / Waly Salomão)
Uirapuru canta no seio da mata
Papagaio nenhum solta um pio
Sereia canta sentada na pedra
Marinheiro tonto medra pelo mar
Sou pau de resposta, jiboia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela
Coração pipoca na chapa do braseiro
Sou baunilha, sou lenha que queima
Que queima na porta do formigueiro
E ouriça o pelo do tamanduá
Mãe matriz da fogosa palavra cantada
Geratriz da canção popular desvairada
Nota mágica no tom mais alto, afinada
Sou pau de resposta, jiboia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela

22 setembro 2011

Yemanjá rainha do mar

Para uma certa linha de pensamento, metade mulheres, metade animais, as sereias - desde os latinos até hoje - guardam o canto puro, absoluto, primordial, assemântico, inarticulado: o canto sem palavras.
Parece ser assim, por exemplo, que O Agente, personagem do livro O natimorto, de Lourenço Mutarelli, percebe a cantora de ópera com quem desenvolve uma relação obsessiva. Ela é toda voz - pureza e beleza - para ele. Não à toa ela é denominada como A Voz. Narrador, só O Agente consegue ouvir A Voz - logo não sabemos se há palavra cantada ali - fazendo a cantora ser um misto de sereia e musa, pois com sua voz inaudível às outras pessoas, A Voz é o impulso necessário à descoberta de Si de O Agente, a fuga do mundo. Mas também promove o ato narrativo dos acontecimentos.
"Desde que ele a ouviu cantar, não fala em outra coisa", diz A Esposa. "É a Voz da Pureza pra lá, é a Voz da Pureza pra cá". "Por que que eu não posso ouvi-la cantar? Por acaso ela é assim tão sofisticada?". Ou seja, ele ouve e fala. Fala porque sente encanto: um encanto intransferível. Só ao ouvido dele cabe a captação da singularidade da voz. O que, por sua vez, também distingue O Agente das outras personagens. Mais adiante é A Voz quem dirá: "Eu não sou tão delicada assim, dá pra aguentar o tranco".
Leitores de Homero, onde o mito ganha seu registro, filósofos como Adorno e Horkheimer parecem, talvez por terem outros objetivos intelectuais, não atentar para o fato de que além de cantar, as sereias contam Ulisses. O caráter narrativo do canto é emudecido. Além disso, como bem observa Adriana Cavarero, no livro Vozes plurais - Filosofia da expressão vocal: "As vestes do sujeito burguês ficam bastante apertadas no herói de Ítaca".
Está lá na Odisseia: "Não passou nosso barco ligeiro despercebido às Sereias, de perto, que entoam sonoras: 'Vem para perto, famoso Odisseu, dos Aquivos orgulho, traz para cá teu navio, que possas o canto escutar-vos.(...) Todas as coisas sabemos'", diz Ulisses.
Ou seja, mais do que som, o canto das sereias entoa palavras, narra cantando: algo audível aos ouvidos humanos. O canto das sereias homéricas contem o passado, o presente e o futuro de Ulisses. Assim são as canções (certas e erradas) que, ao longo de um dia, promovem as alterações de nossos humores.
Deste modo, podemos pensar que as sereias carregam um canto que mata o homem velho e desperta o homem novo: lúcido da cabeça aos pés de sua condição errante. Herói da razão, Ulisses provou que era possível ouvir as sereias (pensar/sentir com outras partes do corpo) sem que isso levasse à morte (ao fim).
Ao contrário daqueles que percebem a racionalidade desvocalizada, ou o encanto absoluto, as sereias sabem o que dizem. Elas contam ao homem comum aquilo que a Musa conta apenas ao poeta. Elas nos fornecem a fama: o calor de se sentir cantados.
Devido às suas "competências vocais, a relação imediata [das sereias] era com pássaros, e não com peixes. Quem é mudo como um peixe não pode certamente se prestar a hibridar um monstro canoro", anota Adriana Cavarero. Mas as sereias foram conduzidas ao mar.
"A mudança de morada é crucial. A descida para as águas, isto é, a metamorfose pisciforme é acompanhada pela sua transformação em mulheres belíssimas", como também observa Cavarero. Antes monstros barbudos, cujo poder de sedução estava no canto (logos poético), agora, em um mundo videocêntrico, as sereias parecem seduzir antes pela beleza física.
Seja como for, não são poucas as lendas das sereias. No Brasil elas são as rainhas do mar e cantam. Cantam muito. "Minha sereia é rainha do mar / O canto dela faz admirar / Minha sereia é a moça bonita / Nas ondas do mar aonde ela habita", como diz a canção de Dorival Caymmi. Aqui a sereia canta com dó do penar do sujeito.
Médium da sereia e signo de elemento água, Maria Bethânia (Mar de Sophia, 2006) traduz em um canto (quase) devocional - tons graves e baixos - toda a infiltração do mito sirênico em nossa cultura. E tem na canção "Yemanjá rainha do mar", de Pedro Amorim e Paulo César Pinheiro, a melhor companhia.
Bethânia canta (evoca) os nomes da rainha do mar - "Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá, Inaê, Sereia, Mucunã, Maria, Dona Iemanjá" - elencando a apropriação doce do mito em nosso imaginário.
O sujeito da canção mistura mitos gregos e africanos e coloca o resultado disso para dançar no Brasil ao balanço do mar, ao som da moradora da "loca de pedra": vaidosa, humanizada - íntima do marinheiro (brasileiro) ouvinte.
"O que ela canta? / Por que ela chora? / Só canta cantiga bonita / Chora quando fica aflita / Se você chorar", numa demonstração radical da relação interpessoal que vai da sereia ao ouvinte, e vice-versa. Num jogo lúdico que envolve prazer e dor, encanto e lucidez.

***

Yemanjá rainha do mar
(Pedro Amorim / Paulo César Pinheiro)

Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Quanto nome tem a Rainha do Mar?

Dandalunda, Janaína,
Marabô, Princesa de Aiocá,
Inaê, Sereia, Mucunã,
Maria, Dona Iemanjá

Onde ela vive?
Onde ela mora?

Nas águas,
Na loca de pedra,
Num palácio encantado,
No fundo do mar

O que ela gosta?
O que ela adora?

Perfume,
Flor, espelho e pente
Toda sorte de presente
Pra ela se enfeitar

Como se saúda a Rainha do Mar?
Como se saúda a Rainha do Mar?

Alodê, Odofiaba,
Minha-mãe, Mãe-d'água,
Odoyá!

Qual é seu dia,
Nossa Senhora?

É dia dois de fevereiro
Quando na beira da praia
Eu vou me abençoar

O que ela canta?
Por que ela chora?

Só canta cantiga bonita
Chora quando fica aflita
Se você chorar

Quem é que já viu a Rainha do Mar?
Quem é que já viu a Rainha do Mar?

Pescador e marinheiro
que escuta a sereia cantar
é com o povo que é praiero
que dona Iemanjá quer se casar

15 setembro 2011

Filosofia

No livro Vozes plurais - Filosofia da expressão vocal, Adriana Cavarero investiga como a filosofia tem trabalhado na promoção da própria "surdez", à deriva dos cancionistas, poetas e filósofos que investem no apuro do ouvido.
Para a autora, agindo deste modo, a filosofia nega a unicidade de cada voz, negando por sua vez a especificidade de cada indivíduo. Ou seja, só quando nos distraímos da "obsessiva vigilância" que tal filosofia engendra acessamos particularidades inimitáveis de cada humano de "carne e osso", emissor e destino do som.
Cavarero anota que "a voz de quem fala é sempre diversa de todas as outras vozes, ainda que as palavras pronunciadas fossem sempre as mesmas, como acontece justamente no caso de uma canção". Cantar apresenta a verdade de um vocálico - "é ter o coração daquilo" - e isso desestabiliza as formas generalizadoras - "universalidades abstratas e sem corpo" - do modo como temos desenvolvido o pensamento.
No Brasil, não é à toa que "nossa gente era triste amargurada, inventou a batucada pra deixar de padecer", como diz a canção, dando uma amostra daquilo que uma cultura híbrida, mestiça e miscigenada como a latino-americana pode oferecer ao mundo em contribuição ao pensamento. Talvez isso explique em parte não termos aqui uma escola filosófica forte frente às culturas hegemônicas e tenhamos desenvolvido o ensaio como espaço de reflexão daquilo que (possivelmente) somos.
Cantando juntos mandamos a tristeza embora. Aquela tristeza que quer tomar conta do sujeito da canção "Filosofia", de Noel Rosa - "O mundo me condena, e ninguém tem pena / Falando sempre mal do meu nome / Deixando de saber se eu vou morrer de sede / Ou se vou morrer de fome" -, e que logo cede lugar a outra afirmativa: "Não me incomodo que você me diga / Que a sociedade é minha inimiga / Pois cantando neste mundo / Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo".
Movido por uma filosofia íntima, alicerçada no seu jeito de corpo, o sujeito vai da defesa autopiedosa ao ataque: "Quanto a você da aristocracia / Que tem dinheiro, mas não compra alegria / Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente / Que cultiva hipocrisia". "É, por assim dizer, a 'phoné' que determina a fisiologia do pensamento", como diria Cavarero. Pensar com o corpo inteiro, a plenos pulmões, não com o cérebro.
Livre das amarras que o dinheiro impõe, artista, cantor, sambista, o sujeito da canção exalta a alegria, que, por sua vez, não denega a dor. "Um porto alegre é bem mais que um seguro", ele poderia dizer. Cantada por Mart'nália no disco Pé do meu samba (2002), "Filosofia" ganha valores novos. Afinal, quem melhor do que uma mulher que guarda em si - voz e corpo - os signos do malandro (fingidor de rico) para cantar os emblemas de uma nova filosofia?
Aqui, corpo e palavra cantada mostram como o 'logos' perdeu a voz, a escuta. E se empenham na vocalidade do sujeito afastado das ideias gerais, platônicas. Há portanto uma sabedoria singular na voz do sujeito de "Filosofia": cantar é estar vivo, pensar a plenos pulmões. Lúcido de sua condição (humana) de escravo, através da voz o sujeito faz a sua escolha entre o samba e a hipocrisia: forja uma verdade.
Como Adriana Cavarero atesta: "A voz, qualquer coisa que diga, comunica antes de tudo, e sempre, uma só coisa: a unicidade de quem a emite". Urge criar dispositivos que nos possibilite entender tamanha força historicamente negada: ter ouvidos para ouvir.

***

Filosofia
(Noel Rosa)

O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome

Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim

Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim

Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo

Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia

08 setembro 2011

À meia voz

Tenho tratado aqui muitas vezes da canção enquanto consolo e sustentáculo da vida. Isso pode levar à equivocada conclusão de que a canção, ao cantar o ouvinte, é sempre uma promessa de felicidade, e/ou uma certeza de alegria.
Para além disso, penso a canção como uma intervenção na comodidade dos significantes, no cotidiano vazio dos significados e no lugar - "lenho oco" - que ocupamos no mundo. Ou seja, ao dizer e tocar sentimentos, a canção pode ser (também) o incômodo que mobiliza: que tira o ouvinte do lugar confortável onde a segurança sedutora nos coloca. Ela impulsiona o pensamento sobre a vida.
Dito de outro modo: a canção entoada pelas neosereias (cancionistas modernos) leva à suspensão do juízo sobre a vida, desloca a ideia de segurança. Sim, ao impedir a movimentação do indivíduo, ao paralisar a busca do não-cais, a segurança é pura sedução destruidora da subjetividade.
Cantantes e carentes de canção, a neosereia não se compraz com o desenho forçadamente bonito do outro. Ela mostra ao ouvinte - porque observa a si mesma - as várias pontas da estrela: canta o inseguro dos fantasmas da voz.
É desde modo, diante de uma sereia cúmplice do ouvinte, que podemos entender os versos da canção "À meia voz", de Marina Lima e Antonio Cícero: "Meu bem não lhe darei / Um céu sem dor nem lei / Mas aceite esta canção / Que fiz pra te alegrar / Debaixo desse véu / Assim à meia-luz / Só há você e eu".
O sujeito da canção, efeito que só se dá durante a execução da canção, faz do canto - da afirmação da vida, o que implica a carta de aceite à dor e à alegria - um ato de amor. Aqui, sujeito e ouvinte compactuam do mesmo (e humano) desejo de ser cantado.
Regravada para o excelente disco Literalmente loucas (2011), onde recebeu uma bonita interpretação de Anelis Assumpção, a canção "À meia voz" começa com um pedido: "Me diz o que é que foi / Pra você se magoar assim / Confessa aqui pra mim / Me diz onde é que dói". E é a partir de uma não-resposta, do significativo silêncio do outro (nós não temos acesso à resposta, mas a supomos), que o sujeito da canção trabalha: colando suas inquietações aos sintomas antevistos no outro.
Mais adiante o sujeito cai na dúvida mortal de todo cantante: "Será que ainda vou ser / Seu ninho de prazer?". Para concluir: "Melhor pagar pra ver". Certo de ter feito algo que motivou a dor no outro - o silêncio, talvez -, o sujeito da canção encontra no canto o melhor modo de remissão.
O núcleo desta metacanção está nos versos: "Me diz o que é que eu fiz / Pra te fazer infeliz assim / Soletra aqui pra mim / Me diz à meia-voz / Prometo não contar / Promessas não dão mais / Confessa e sela a paz". A confissão do outro, dita de modo que nós (ouvintes-voyeurs da canção) não podemos ouvir, selando a cumplicidade das duas personagens, plasma o caráter fundamental de toda canção: tocar de forma individual e intransferível cada ouvinte.
Agindo assim, o sujeito cria a Nossa canção: a canção dos dois. Como diz o sujeito de "Nossa canção", de Zé Miguel Wisnik e Mauro Aguiar: "as canções / só são canções / quando não são / promessas". É no instante-já, no momento luminoso do ato de cantar, pagando pra ver, que o sujeito toca o outro: engendra sua música invisível - ilumina o afeto.
A canção é o veneno-remédio, o paraíso-inferno que une cantor e cantado: promove a amizade entre as partes desejantes de permanência no mundo. O sujeito pede a (meia) voz do outro - um segredo íntimo dos dois - para sobre ela cantar: selar a paz, manipular curativos. Ambos errantes tentando acertar o tom do amor.

***

À meia voz
(Marina Lima / Antonio Cícero)

Me diz o que é que foi
Pra você se magoar assim
Confessa aqui pra mim
Me diz onde é que dói
Será que ainda vou ser
Seu ninho de prazer?
Melhor pagar pra ver

Me diz o que é que eu fiz
Pra te fazer infeliz assim
Soletra aqui pra mim
Me diz à meia-voz
Prometo não contar
Promessas não dão mais
Confessa e sela a paz

Meu bem não lhe darei
Um céu sem dor nem lei
Mas aceite esta canção
Que fiz pra te alegrar
Debaixo desse véu
Assim à meia-luz
Só há você e eu

01 setembro 2011

Duas namoradas

No livro Performance, recepção, leitura, Paul Zumthor anota que poesia é “uma arte humana, independente de seus modos de concretização e fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas”.
A partir disso, podemos lembrar – para além da definição aristotélica - que a poesia antecede à literatura e à escrita e nasce junto com a música nos rituais da antiguidade. Desde sempre, portanto, poesia e música se equilibram, dialogam: engendram canções de manutenção da vida do humano na terra.
"Minha música vem da música da poesia de um poeta João que não gosta de música / Minha poesia vem da poesia da música de um João músico que Não gosta de poesia", diria o sujeito dividido de "Outro retrato", de Caetano Veloso.
Já a canção "Duas namoradas", de Itamar Assumpção e Alice Ruiz, guardada no disco Pelo sabor do gesto em cena (2011), tematiza tais questões ao apresentar um sujeito (poeta/músico: cantor) às voltas com o desassossego que as duas formas de linguagem criam nele.
É no refrão - "Tenho duas namoradas / A música e a poesia / Que ocupam minhas noites / Que acabam com meus dias" - que Zélia Duncan compatibiliza melodia e letra. Seja no modo "natural" de entoar os versos a fim de destacá-los da fala, seja no modo de equilibrar na canção o namoro com as duas musas: valor nas durações vocálicas sobre um sambinha enviesado.
Dito de outro modo: Zélia só "canta" (impõe controle às entoações, distinguido-as das da fala cotidiana) na hora do refrão. Isso marca um contraponto com as outras partes da canção, quando Zelia Duncan investe no canto falado.
Nestes momentos a melodia natural da letra curva-se sobre a intenção do sujeito em ser claro, objetivo: dizer (mais do que cantar) de seu caso com a música e a poesia. Há um investimento na mudança (na permuta) das modulações entoativas. O que torna significativa cada parte da canção. Aquilo que é dito casa com o modo de dizer.
Ou seja, no modo de dizer das estrofes, Zélia investe na entoação da linguagem oral com o intuito de melhor presentificar o desejo do sujeito. Isso sem que o acompanhamento melódico sofra nenhuma mudança radical no andamento: plasmando uma cama sonora onde a voz (fala) do sujeito da canção se apoia e mantem a empatia passional com o ouvinte.
Na performance de Zelia, narrativa e canto dialogam: condensam e agradam às duas namoradas. Texto e música tornam-se inseparáveis na canção (na tensão) que o sujeito compõe para as duas. "Uma fala sem parar / A outra nunca desliga", diz o sujeito.
Zélia percebe que o elo está canção, evoca as características intrínsecas a cada uma e traduz a fusão em seu modo de assinar a canção: na voz. Em "Duas namoradas" a forma entoativa (poesia) e a forma musical (música) se mantem suspensas no ar que a canção (poesia e música) realiza.
No meio, ou melhor, equilibrando as duas formas está a voz. Dividido entre as duas, unido pelas duas, é na canção que o sujeito encontra a harmonia necessária para o fato de que elas em "nenhum segundo me largam / também eu não largo delas". Afinal, "cantar é saber juntar", como diz o sujeito.
Intérprete do amor, é na voz de Zélia - no instante-já da emissão - que as duas namoradas encontram a sereia que lhes canta a vida. "Vida que não é menos minha que da canção", diria outro sujeito.

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Duas namoradas
(Itamar Assumpção / Alice Ruiz)

Tenho duas namoradas
A música e a poesia
Que ocupam minhas noites
Que acabam com meus dias

Uma fala sem parar
A outra nunca desliga
Não consigo separar
Duvido d o dó que alguém consiga

Cantar é saber juntar
Melodia, ritmo e harmonia
Se eu tivesse que optar
Não sei qual eu escolheria

Tem vez que o caso é comigo
Tem vez que sou só sentinela
Xifópagas, caso antigo,
Tem vez que é só entre elas

Nenhum instante se deixam
Grudadas pelas costelas
Nenhum segundo me largam
Também eu não largo delas