Pelo
menos desde o Pica-flor da famosa décima atribuída a Gregório de Matos
(1636-1696), passando pelo icônico Sabiá de Gonçalves Dias (1823-1864), pelo
Albatroz importado por Castro Alves (1847-1871), até a Asa Branca e o Assum
Preto cantados por Luiz Gonzaga (1912-1989), e o Carcará de João de Vale
(1934-1996), os pássaros canoros povoam o imaginário popular e poético do
brasileiro, dando voz a diagnósticos e a metáforas do Brasil. Dentre eles temos
também as chamadas aves de agouro: "Toda noite no sertão / Canta o João
Corta-Pau / A coruja, a mãe da lua / A peitica e o bacurau", como
registrou Luiz Gonzaga em "Acauã" (Zé Dantas).
O
nome "bacurau" voltou à baila em 2019, devido ao sucesso do filme
dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Na tela, Bacurau é o
lugar e é um modo de agir coletivamente - a ave noturna impregna o ânimo dos
moradores do vilarejo no interior do sertão nordestino, estranhamente retirado
do mapa. O levante coletivo contra um inimigo estrangeiro parece recuperar o
nordeste das revoltas históricas, a partir de 1930, resultado do crescente
urbanismo e da inserção do pensamento marxista.
Para
Durval Muniz de Albuquerque Jr. neste momento do país surge "um Nordeste
que olhava sem saudade para a casa-grande, que sentia o mesmo desconforto com o
presente, mas que também virava as costas para o passado, para olhar em direção
ao futuro. Um Nordeste construído como espaço das utopias, como lugar do sonho
com um novo amanhã, como território da revolta contra a miséria e as
injustiças. Um lugar onde a preocupação com a nação e com a região se
encontrava com a preocupação com o
“povo”, com os trabalhadores e com os operários. Um espaço não mais preocupado
com a memória, mas com o “fazer história”. Um espaço conflituoso, atravessado
pelas lutas sociais, “pela busca do poder”. Um espaço fragmentado, em busca de
uma nova totalização, de um novo encontro com a universalidade. Um Nordeste não
mais assentado na tradição e na continuação, mas sim na revolução e na ruptura.
Um espaço em busca de uma nova identidade cultural e política, cuja essência só
uma “estética revolucionária” seria capaz de expressar. Nordeste, território de
um futuro a ser criado não apenas pelas artes da política, mas também pela
política das artes" (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 207-208).
É
este território auto-gestado e munido de revolta que aparece no filme. A ave é o
emblema do ânimo de quem mora nesse lugar. Foi uma postura semelhante o que
insuflou o espírito messiânico e o engajamento político na canção popular
brasileira, também a partir de 1930/40. Atendendo o chamado ao sacerdócio e ao
dogma, muitos artistas tomaram para si a missão de restituição da identidade
nacional perdida, representada, naquele contexto de grande êxodo rural, pelo
retirante, sertanejo, "nordestino".
O
messias que o sujeito das canções passa a assumir pode ser visto, por exemplo,
evocado e projetado em canções de Geraldo Vandré, na figura do “boi” que se
torna “cavaleiro” e que, travestido de “boiadeiro”, salvará o “nordestino”:
“Bem no fundo do coração / Guardo há tempos um cavaleiro / Que ainda vou mandar
pro norte / Vestido de boiadeiro / (...) / E há um mundo inteiro / Que espera
ouvir falar / De um bravo cavaleiro / Que bem soube se guardar / Para um dia lá
no sertão / E no mar e em teu coração / Sertanejo ou jangadeiro / Trazer paz
para o Norte inteiro” (“O Cavaleiro”, de Geraldo Vandré e Tuca). Lembremos-nos ainda
dos versos “O mundo foi rodando nas patas do meu cavalo / E nos sonhos que fui
sonhando, as visões se clareando / As visões se clareando, até que um dia
acordei” (“Disparada”, de Théo de Barros e Geraldo Vandré). É esse sujeito
esclarecido e desperto que toma para si a tarefa de tocar – aboiar – o levante
popular. Mas isso não é manter o povo “gado”? O povo deixa de ser “gado” só
porque quem está guiando agora é um sujeito “vindo do povo”? Sem esquecer o
antológico “Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar / Aprendi a dizer
não, ver a morte sem chorar”, de “Disparada” (Théo de Barros, Geraldo Vandré).
Essa
evasão messiânica e consoladora da “canção de protesto” brasileira é irmã das
protest songs estadunidenses e da nueva canción latino-americana, mantendo o
caráter de resistência cultural. Alinhada ao fortalecimento da identidade
latino-americana promovida pela Revolução Cubana de 1959, no Brasil, tendo como
artífices Carlos Lyra, Nelson Lins e Barros, Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo, a
“canção de protesto” vai propor a valorização da brasilidade e a união nacional
e latino-americana em torno da defesa e da salvaguarda desta identidade, que
naquele momento significava o encontro com a “música de raiz” e a “fé no povo”.
Por exemplo, depois de saldar “Quechuas, Tamoios, Mapuches, Tabajaras, Guaranis
/ Incas, Astecas e Maias, Aimarás e Tupis”, o sujeito da canção “De América”
(Geraldo Vandré), canta: “Si es quien seguir al mismo fin / Llega a sentir a la
unidad / Hay que buscar, hay que seguir / Y repartir la soledad / De américa,
de américa”. A primeira canção assumidamente politizada no Brasil parece ter
sido “Canção do subdesenvolvido” (1961), composta por Carlos Lyra e Chico de
Assis, ambos ligados às atividades do CPC da UNE. Nessa canção, as referências
e críticas à dependência econômica e cultural do Brasil com relação aos Estados
Unidos ganham tons explícitos em vários trechos da canção.
No
caminho dessa valorização da brasilidade e desse desejo de união nacional,
Sergio Ricardo encontra no texto de Joaquim Cardozo (1897-1978), O coronel de
macambira (1963), a voz parceira. Na orelha do livro, Moacyr Félix destaca que com "este 'bumba-meu-boi'" Cardozo participa
"nas interrogações históricas em que se formam a sua terra e o seu povo".
Segundo Félix, sem "os chavões, a inovação formal que não inova nada, o
fraseado fácil e insincero dos que escrevem movidos por circunstâncias outras
que a que impulsiona o coração do poeta, o esquematismo, o sectarismo tão
próprio da pequena burguesia apenas revoltada ou ressentida"; e que a
palavra de Cardozo, verso após verso, estrofe após estrofe, estruturou no ar de
sons assim formados a invenção de uma única e inefável Fala, que é o conteúdo
deste poema, deste bumba meu boi" (CARDOZO,
1963).
Esta
"fala" inventada interessa aqui, pois queremos compreender as
estratégias de Sergio Ricardo para verter o texto de Cardozo na canção
"Bichos da noite", composta para uma montagem da
peça O Coronel de Macambira e registrada no disco A grande música de
Sérgio Ricardo (1967), e que figura na trilha do filme Bacurau. Sendo um texto
poético-dramático, um drama falado O coronel de Macambira imprime em suas
páginas uma partitura vocal, evidenciada em versos como "hô hó hó ho
hauuau", em que alturas e extensões dos sons silábicos são sugeridos. Fala
e partitura da peça-poema de Cardozo são solidárias com as dificuldades do povo
brasileiro, pois critica os exploradores e dá voz às vítimas.
A
respeito da participação social de sua arte, Cardozo anota que: "A maioria
das críticas e observações contidas nestes versos agora publicados foram
ouvidas e vividas: conheci na Baía da Traição, ao norte da Paraíba, um chefe de
cangaceiros que se chamava 'Chico Fulô', e de quem ouvi grande parte das
expressões contidas no papel do 'Valentão'; na linguagem do Mateus, Catirina e
Bastião procurei transmitir a linguagem de certos tipos populares do meu tempo,
que usavam, em meio a expressões dialetais ou coloquiais, frases como:
'filosofia positiva', 'certeza física e matemática', 'estio sublime' e muitas
outras; esses tipos eram quase sempre oradores populares como 'Bochecha',
'Budião de Escama' e 'Gravata Encarnada' que procuravam imitar outros oradores
mais escolarizados frequentes nos comícios políticos de então, oradores que,
naquele tempo, pretendiam ser sucessores de Joaquim Nabuco" (CARDOZO,
1963, p. 162).
Por
sua vez, não é à toa que o texto, o "Boi" de Joaquim Cardozo é
dedicado a Ascenso Ferreira (1895-1965). Quem justifica a dedicatória é o
próprio Cardozo: "Tomei como base para compô-lo, a versão folclórica
coligida pelo poeta Ascenso Ferreira, e publicada nos números 1 e 2 de 1944, da
revista Arquivos da Prefeitura de Recife; não utilizei, entretanto, todas as
figuras, mais ou menos fixas, que fazem parte desse espetáculo. Trata-se, aqui,
de uma obra inteiramente original, no texto, mas obedecendo às regras
características desse drama falado, dançado e cantado - espécie de auto
pastoril quinhentista, de onde, certamente, proveio" (CARDOZO, 1963, p.
161).
E
o bacurau? No poema "Catimbó" (1927), Ascenso Ferreira anota:
"Ela há de me amar... / - Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o
luar" (FERREIRA, 2008, p. 13). Na canção popular, entre outras aparições,
o bacurau é cantado e canta em: "Pássaro bacurau" (Jackson do
Pandeiro e Raimundo Evangelista), na voz de Jackson do Pandeiro (Tem mulher, tô
lá, 1973) - "Não é tão bonito / Como é gozado / Passo o dia cochilando / E
a noite acordado // Nem que me dê mal / Ou gaste o meu dinheiro / Ainda vejo em
meu viveiro / Aquele bacurau"; "A coruja e o bacurau" (Duda
Santos e Ulisses Silva), na voz de Clemilda (A coruja e o bacurau, 1976) -
"Minha avó tem uma coruja / Meu avo um bacurau / Todo dia os dois velhos
discutem / Dizendo o meu é bom, o seu é mal"; e na instrumental "Quadrilha
do bacurau" (Sivuca e Afonso Gadelha), no disco Forró e frevo vol. 4
(1984).
Responsável
pelos cálculos matemáticos para a construção de Brasília, Joaquim Cardozo
arquiteta uma canção em que os bichos da noite ressoam nas assonâncias do coro.
Na peça O coronel de Macambira, as personagens se recostam na cerca de
"ramos trançados" para esperar o dia nascer, "neste momento
começa a 'dança do bichos da noite'; estes avançam, recuam, ameaçam o grupo
agachado junto à cerca. As cantadeiras, durante a dança, cantam em voz surda e
apagada" (CARDOZO, 1963, p. 86):
Compositor
das canções, “Zelão”, “Calabouço”, “Esse mundo é meu” e “Conversação de paz”,
Sérgio Ricardo compõe em 1967 o hino da localidade de Bacurau de 2019. O
repente de viola e as redondilhas do cordel dão o tom e o ritmo da peça e do
clima no filme. Responsável pela trilha dos filmes Deus e o Diabo na terra do
sol (1964), Terra em transe (1967) e Dragão da maldade contra o santo guerreiro
(1969), de Glauber Rocha, Sergio Ricardo cria uma melodia de cortejo, passional
(alongamentos vocálicos climáticos do medo e do espanto, de soluço e de
lamento: "au, au, au, aaau") aproveitando sobremaneira as rubricas
melódicas do texto.
Das
treze (número da morte!) estrofes/quartetos da canção da peça, Ricardo utiliza
sete: as cinco primeiras e as duas últimas. Ficam de fora versos como "Há
um pio agourento: / E mãe da lua: urutau". Se as rimas dos primeiros e
terceiros versos de cada quadra variam - "noite/dançando",
"espanto/noite", "ar/feita", etc -, as rimas dos segundos e
quartos versos sempre terminam em "au", desde a primeira estrofe, em
que o pássaro surge - "bacurau/babau", até a derradeira
"vau/perau", o canto e o cantar encaminham-se para a figuração sonora
do bacurau; cujo núcleo imagético está na terceira quadra "andam feitiço
no ar / de um feitiçeiro marau, / mandingas e coisas feitas / do xangô de
Nicolau". O orixá como metonímia da celebração e do quebranto sustenta a
dança dos bichos da noite no ar. A rima em "au" funciona como uma
assonância onomatopeica estentida por todo o poema, espalhando o canto do
bacurau, do pica-pau, do urutau - "uauau, uauau, uauau" - ao longo de
todo o encantamento poético que o texto fixa. "As águas giram seus discos
/ até o funil de um perau" e adensam o estado de espanto e poesia das personagens
do bumba-meu-boi.
Na
peça Marechal, boi de carro, Joaquim Cardozo apresenta melhor o bacurau. Em
resposta a Mateus que, "olhando para um pássaro meio esquivo na
gaiola", pergunta "e este aqui, como se chama?", o passarinheiro
diz: "Esse é o bacurau: está aí / Assim esquivo e escondido / Porque, como
rodos sabem, / Bacurau não tinha penas, / Mas roubou dos outros pássaros / As
penas que agora tem / Por isso só sai à noite / Com medo de ser pegado / Como
ladrão. Este aí / Custou-me muito apanhá-lo / Agora aí está; ficou / Sob a
minha proteção / E goza de
liberdade..."; ao que Mateus comenta: "Também essa liberdade... / Que
o diabo a leve pro inferno" (CARDOZO, 2018, p. 302).
Essa
liberdade cerceada do texto desliza para a tela de cinema. A certa altura do
filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles uma estrangeira pergunta “E
quem nasce em Bacurau é o que mesmo?", "é gente”, responde um garoto
do vilarejo. E não é "de assombrações um sarau" dos bichos da noite a
rebelião do filme? "A consciência do subdesenvolvimento é posterior à
Segunda Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950.
Mas desde o decênio de 1930 houvera mudança de orientação, sobretudo na ficção
regionalista, que pode ser tomada como termômetro, dada a sua generalidade e
persistência" (CANDIDO, 1979, p. 345). Nesse movimento, Cardozo nega o
exotismo transformando-o em estado de alma de sua poética teatral de inspiração
revolucionária; supera o otimismo patriótico e paternalista; e foca na
espoliação econômica do "pobre". O eu-lírico e o eu-participante se
equilibram no mesmo parâmetro semântico que o bacurau é, e sem redundância retórico-sentimental
sondam o humano: "Um caçador esquecido / que espreita de alto girau / não
vê cotia, nem paca, / só vê jaguara e babau"; "Finge que fuma e
defuma / fumando o seu catimbau / 'medo da noite' com o rosto / Pintado de
colorau".
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2011.
CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: MORENO, César Fernández (org.). América latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.
CARDOZO, Joaquim. O coronel de Macambira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
CARDOZO, Joaquim. Teatro de Joaquim Cardozo. Recife, CEPE, 2018.
FERREIRA, Ascenso. Catimbó: cana caiana; xenhenhém. Introd., org., e fixação de texto Valéria Torres da Costa e Silva. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
RICARDO, Sérgio. Bichos da noite. In: A grande música de Sérgio Ricardo. Rio de Janeiro: Philips, 1967.
CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: MORENO, César Fernández (org.). América latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.
CARDOZO, Joaquim. O coronel de Macambira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
CARDOZO, Joaquim. Teatro de Joaquim Cardozo. Recife, CEPE, 2018.
FERREIRA, Ascenso. Catimbó: cana caiana; xenhenhém. Introd., org., e fixação de texto Valéria Torres da Costa e Silva. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
RICARDO, Sérgio. Bichos da noite. In: A grande música de Sérgio Ricardo. Rio de Janeiro: Philips, 1967.
***
Bichos da noite de O coronel de Macambira
(Joaquim Cardozo / Sergio Ricardo)
São muitas horas da noite
São horas do bacurau
Jaguar avança dançando
Dançam caipora e babau
Festa do medo e do espanto
De assombrações num sarau
Furando o tronco da noite
Um bico de pica-pau
Andam feitiços no ar
De um feiticeiro marau
Mandingas e coisas feitas
No xangô de Nicolau
"Medo da noite" escondido
Nos galhos de um pé de pau
A toda dança acompanha
Tocando seu berimbau
Um caçador esquecido
Espreita de alto jirau
Não vê cotia nem paca
Só vê jaguara e babau
Alguém soluça e lamenta
Todo esse mundo tão mau
Picando a sombra da noite
Pinica o pinica-pau
Alguém no rio agoniza
Num rio que não dá vau
Alguém na sombra noturna
Morreu no fundo perau
(Joaquim Cardozo / Sergio Ricardo)
São muitas horas da noite
São horas do bacurau
Jaguar avança dançando
Dançam caipora e babau
Festa do medo e do espanto
De assombrações num sarau
Furando o tronco da noite
Um bico de pica-pau
Andam feitiços no ar
De um feiticeiro marau
Mandingas e coisas feitas
No xangô de Nicolau
"Medo da noite" escondido
Nos galhos de um pé de pau
A toda dança acompanha
Tocando seu berimbau
Um caçador esquecido
Espreita de alto jirau
Não vê cotia nem paca
Só vê jaguara e babau
Alguém soluça e lamenta
Todo esse mundo tão mau
Picando a sombra da noite
Pinica o pinica-pau
Alguém no rio agoniza
Num rio que não dá vau
Alguém na sombra noturna
Morreu no fundo perau