Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
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26 dezembro 2017
Sons de 2017
"Esú", "Pajubá" e "Galanga livre" foram os discos mais intensos de 2017. Versos, sons e ritmos que abrem possibilidades. Paralelos a estes, eis (em modo aleatório) a seleção dos discos de 2017 com os quais mais convivi:
Juçara Marçal, Rodrigo Campos, Gui Amabis - Sambas do absurdo;
Baco Exú do Blues - Esú;
Linn da Quebrada - Pajubá
Hamilton de Holanda Quinteto - Casa de Bituca
Aláfia - SP não é sopa
Kiko Dinucci - Cortes curtos
Maria Alcina - Espírito de tudo
Otto - Ottomatopeia
Curumin - Boca
Mônica Salmaso - Caipira
Chico Buarque - Caravanas
Rodrigo Ogi - Pé no chão
Gal Costa - Estratosférica ao vivo
Filipe Catto - Catto
Rincon Sapiência - Galanga Livre
Duda Brack, Charles Gavin, Felipe Ventura, Paulo Rafael e Pedro Coelho - Primavera nos dentes
21 dezembro 2017
A voz do morto
Sons de 2017. MENÇÃO HONROSA. Se for para regravar e não reassinar,
recriar, reinventar a canção, melhor nem cantar. Maria Alcina e o
produtor Thiago Marques Luiz
sabem disso e assinaram - tornaram inéditas - canções em que a
antropofagia de Caetano Veloso se revela mais evidente. Exemplo disso é
"A voz do morto", paródia tropicalista caetânica de "A voz do morro", de
Zé Keti. Composta para Aracy de Almeida cantar, "A voz do morto"
dispara: "Eles querem salvar as glórias nacionais
/ Coitados / Ninguém me salva / Ninguém me engana / Eu sou alegre / Eu
sou contente / Eu sou cigana / Eu sou terrível / Eu sou o samba". Estes
versos são apropriados por Maria Alcina naquilo que eles guardam da raiz
difusa do samba, que no Brasil pode unir, na voz de Aracy, Paulinho da
Viola (Viva!) e Roberto Carlos ("Eu sou terrível"). Rainha dos
terreiros, a voz singular de Maria Alcina canta do lado de fora, à
margem, mas na glória de quem compreende as contradições do país -
"feito de ouro e prata e filó de nylon" - que tem o samba (margem da
margem) como ícone. E faz isso com um arranjo de rock pesado, além das
vozes incidentais de Chacrinha, Dercy Gonçalves, Elke Maravilha, Grande
Otelo e Aracy de Almeida - símbolos de carnavalização, de autoironia, de
deboche crítico. Portanto, ninguém melhor do que Maria Alcina, esse
espírito de tudo, para comer - o filme "Terra em transe", o livro
"PanAmérica", a peça "O rei da vela" e a instalação "Tropicália" - e
cuspir na cara dos caretas neste ano do meio século da Tropicália - "a
vez do louco / a vez de tudo".
20 dezembro 2017
Capitães da areia
Sons de 2017. TRÊS. "Capitães da areia" é uma das canções mais
sinestésicas deste ano. Já nos versos da "Intro" - "As luzes da cidade,
batuque, tiro, gemidos, briga é um caos tão bonito" - temos cheiros,
visões, escutas e toques que impregnam todo o disco "Esú" de Baco Exu do
Blues (Diogo Moncorvo). Os versos "Somos argila do divino mangue / Suor
e sangue / Carne e agonia / Sangue quente noite fria" sintetizam a
pretendida e brilhantemente executada harmonização (ruidosa e libertária)
entre bem e mal - essas condições complementares (não opostas) do
Humano. Isso se dá na incorporação de cânticos (ancestrais) de domínio
público ao rap (contemporâneo). De fato, o rapper e o cantador popular
se cruzam naquilo que a oralidade tem de transmissão de um saber
corporal/experimental não domável pela/na escrita. (Mário de Andrade e
Jorge Amado, citados na canção, que nos digam). Aliás, é neste
entre-lugar que Exú - a voz que fala por trás da voz que canta - é e
está: na encruzilhada ética e estética, na travessia. "Vi os prédios
subindo / A mata acabando / Aproveitei e arranhei o céu / (...) / Onde
cidadãos de bem queimam terreiros / E espancam mulheres, odeiam os
pretos / Odeiam o gueto, matam por dinheiro / Eu sou caos, eu sou
vilão", afirma.
19 dezembro 2017
Necomancia
Sons de 2017. DOIS. "Necomancia" é uma das canções mais políticas (e
desbundadas) deste ano. Os versos "Ai, que bixa! / Ai, que baixa! / Ai,
que bruxa / Isso aqui é bixaria / Eu faço necomancia" sintetizam
desbunde e política com a força de quem é "afeminada, bonita e folgada" -
Linn da Quebrada. Sem contar a ironia debochada da pergunta
desconstrutora (aí, Derrida) do "macho alfa": "Pra que eu quero sua pica se eu tenho
todos esses dedos?". Aquilo que oprime, coage e silencia é radicalmente
devorado - antropofagicamente - ao som de funk e demais sons
sintetizados e ameaça o poder do opressor: "deixa sua piroca bem
guardada na cueca / Se você encostar em mim, / Faço picadinho de neca".
Enviadescendo e invertendo a posição de controle do corpo alheio, a voz
que fala ataca justamente naquilo que o outro ostenta como centro de
poder: a "pica" pornografada. "Se tu quiser ficar comigo, boy, vai ter
que enviadescer", canta Linn noutra canção. E completa: "Já quebrei o
meu armário, agora eu vou te destruir / Porque antes era viado agora eu
sou travesti".
18 dezembro 2017
As caravanas
Sons de 2017. UM. "As caravanas" é uma das canções mais emblemáticas
deste ano. Os versos "Não há barreira que retenha esses estranhos
suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho a caminho do Jardim de Alá"
sintetizam tópicas urgentes de nossa atualidade, com o brilhantismo - "o
sol, a culpa deve ser do sol" - próprio de Chico Buarque: caravelas e
caravanas, refugiados e excluídos são sobrepostos tempoespacialmente.
Sem contar a beleza das camadas melódicas instrumentais e vocais:
rap e canção, violão e beatbox. Aquilo que se vê é tão terrível - "Tem
que bater, tem que matar engrossa a gritaria / Filha do medo, a raiva é
mãe da covardia" - que o sujeito da canção duvida e rejeita a visão:
"Doido sou eu que escuto vozes / Não há gente tão insana / Nem caravana
do Arará". Esse avesso do avesso diz bastante do nó em nós neste momento
descortês.
27 julho 2017
Caetano Veloso
A
Tropicália está completando meio século. Suas propostas marcaram profundamente
o modo da Arte no Brasil. Sua "consciência de subdesenvolvimento"
afirmava a ruptura entre cool e popular, vanguarda e primitivismo, cultura de
massa e de elite economicamente privilegiada. Sua utopia inconfessa mirava na
queda do muro entre a senzala e a casa grande, diante de nossa histórica
condição de colônia e periferia do capitalismo.
Como
disse Caetano Veloso, a Tropicália negava "folclorizar o subdesenvolvimento
["se intimidar diante de si mesmo"] para compensar dificuldades
técnicas. Ora, sou baiano, mas a Bahia não é só folclore. E Salvador é uma
cidade grande. Lá não tem apenas acarajé, mas também lanchonetes e hot
dogs" (entrevista, 1967). E completou: "rechaço o que me parecem
tentativas ridículas de neutralizar as características esquisitas desse monstro
católico tropical, feitas em nome da busca de migalhas de respeitabilidade
internacional mediana" (Verdade
tropical, 1997).
Essa
abertura à recepção e ao contato com o outro, estes lances de alteridade, esse
tornar-se outro, base de nossa "tradição da ruptura", faz-nos
destacar que a Tropicália pode ser interpretada como uma revisão crítica da
Antropofagia oswaldiana: "Só me interessa o que não é meu", anotou
Oswald de Andrade em seu "Manifesto Antropófago" (1928).
Aliás,
foi também Caetano Veloso quem escreveu que "a ideia do canibalismo
cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos
"comendo" os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a
atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e
exaustiva." (Verdade tropical).
Para Caetano, a Antropofagia "é antes uma decisão de rigor do que uma
panaceia para resolver o problema de identidade do Brasil. (...) A
antropofagia, vista em seus termos precisos, é um modo de radicalizar a exigência
de identidade (e de excelência na fatura), não um drible na questão."
(idem).
Para
o professor Benedito Nunes, "como símbolo da devoração, a Antropofagia é,
a um tempo, metáfora, diagnóstico e terapêutica: metáfora orgânica, inspirada
na cerimônia guerreira da imolação pelos tupis do inimigo valente apressado em
combate, englobando tudo quanto devemos repudiar, assimilar e superar para a
conquista da nossa autonomia intelectual; diagnóstico da sociedade brasileira
como sociedade traumatizada pela repressão colonizadora que lhe condicionou o
crescimento, e cujo modelo terá sido a repressão da própria antropofagia ritual
pelos Jesuítas, e terapêutica, por meio dessa reação violenta e sistemática,
contra os mecanismos sociais e políticos, os hábitos intelectuais, as
manifestações literárias e artísticas, que, até à primeira década do século XX,
fizeram do trauma repressivo, de que a Catequese constituiria a causa exemplar,
uma instância censora, um Superego coletivo". ("A antropofagia ao
alcance de todos").
Parece-nos
que o movimento orientado por Caetano compreendia bem isso. Seja no gesto
dessacralizador e demolidor (satírico), bem como nos comportamentos criativos
sobre a tênue linha entre o óbvio e o exótico, a Tropicália devolveu a poesia
ao corpo. Recalcados por anos de imposição grafocêntrica e patriarcal, a poesia
e o corpo foram liberados numa catarse terapêutica tonificante e, portanto, perigosa. Ao causar pane no sistema,
armada sobre o ser e não ser, na ambiguidade, na indefinição, na transvaloração
dos gêneros, dos sexos, das etnias, a Tropicália incomodou. Nossa convalescença
intelectual não soube lidar com tamanha ousadia. A rebelião estava - como
sempre está - na linguagem, no modo de usar, na transformação permanente do
tabu em totem.
Vale
lembrar o causo narrado por Ney Matogrosso: "Eu fui na única sorveteria de
Brasília, dentro do único hotel de Brasília, e quando estou na sorveteria, o
Caetano sai inteiro vestido de cor de rosa. Rosa era uma cor que jamais um
homem colocaria na viradinha da meia do pé esquerdo. Ele estava de rosa do
pescoço ao pé, porque ele saiu com o figurino do show. Eu nunca tinha visto.
Era uma afronta! Mas o impacto que ele provocou dentro de mim foi positivo,
então o que eu pensei foi "poxa, se eu fosse artista, queria provocar
isso". Fiquei todo tocado, mexido, estimulado. Se eu fosse artista, queria
provocar algo assim. Eu não queria copiar aquilo, mas fui aceso por aquilo".
O ano era 1964, ditadura militar. O que aconteceu desde então, todos sabemos:
verdade e ação contra o messianismo patriarcal fascista.
Faço
essas considerações prévias para comentar a canção intitulada "Caetano
Veloso" de Johnny Hooker (Coração,
2017). Não é preciso muito esforço para perceber que se trata de uma homenagem
ao organizador da Tropicália. A pergunta "Você já foi a Bahia?"
glosada por Dorival Caymmi é respondida por Hooker já na abertura da letra:
"Eu nunca fui a Bahia / Eu nunca fui a Salvador". O sujeito da canção
de Hooker não precisa ir a Bahia, Caetano Veloso é a síntese da Bahia que
interessa.
Se
em "Vamo comer Caetano", pela ambiguidade dos versos e mistura de
ritmos, Adriana Calcanhotto resgatava o tom erótico, jocoso e corrosivo da
Tropicália - "Vamos comer Caetano / Pela frente / Pelo verso / Vamos
comê-lo cru" -, em "Caetano Veloso" a mensagem direta e laudatória - pouco antropófaga, nada canibal - não exige a imaginação do
ouvinte. Talvez a agoridade exaltada da Tropicália esteja presente em versos
como "Dançar contigo me dá Caetano / Amanhã cedo a gente pode
esquecer". Vê-se que, diferente de Calcanhotto, que se apropria da
vitalidade criativa de Caetano, Hooker mantem o cânone caetânico sagrado, intocável,
tabu.
Com
um pouco mais de atenção (e boa vontade) até poderíamos relacionar os versos de
Hooker - “Mas um dia que a gente não troca calor / Não me preocupa / Alguém por
aqui me mostrou / Caetano Veloso” - com os versos do sujeito exilado em
“Itapuã” (1991): "Itapuã, quando tu me faltas, tuas palmas altas / Mandam
um vento a mim, assim: Caymmi". Portanto, Caymmi seria para Hooker o que
Caymmi é para Caetano: calor, presença, pertencimento. Porém, sem outros
elementos de uma canção do exílio, tal interpretação soa forçada.
Se
para Caetano Veloso "o tropicalismo começou dolorosamente". E foi
"o desenvolvimento de uma consciência social, depois política e econômica,
combinada com exigências existenciais, estéticas e morais que tendiam a pôr
tudo em questão" (Verdade tropical),
para o sujeito da canção de Hooker o banzo - esse "sentimento de
melancolia em relação à terra natal e de aversão à privação da liberdade
praticada contra a população negra no Brasil na época da diáspora
africana", como diz Wikipedia - é enfrentado com toques de ijexá.
De
fato, a canção "Caetano Veloso", o personalismo que o título sugere,
insere-se no projeto “narciso pintado em ouro” de Hooker. Sua fossa solar, tão
bem apresentada no disco anterior - Eu vou
fazer uma macumba pra te amarrar, maldito! (2015) -, cheia de pragas, juras
e ex-votos do amor romântico em primeira pessoa do singular, finda espelhar
demais. Sem refração crítica tropicalista e caetânica.
Nesse
sentido, Hooker é mais eficaz antropofagicamente na derradeira canção do disco.
"Escandalizar", assim como "Desbunde geral", do disco
anterior, é uma ode à felicidade urgente e devora "Chuva, suor e cerveja"
(1977), de Caetano Veloso. Além de evocar a “bruta flor do querer”, citação de “O
quereres” (1984).
Ao
escrever aqui sobre "Desbunde geral", observei que
"no Brasil, desbundar é resistir, é engendrar gestos antiprovincianos e
ser contra a mentalidade conservadora e domesticadora dos corpos. É ainda a
recusa dos discursos populistas, é criticar os projetos de tomada de poder,
diante da certeza da falência do sistema. O desbundado faz do desbunde a
crítica como resistência, a resistência como desvio, o desvio como
enfrentamento". É aqui que Hooker consegue dá o salto crítico
carnavalizante (o exótico óbvio) que a Tropicália impulsionou.
***
(Johnny Hooker)
Eu nunca fui a Bahia
Eu nunca fui a Salvador
Mas um dia que a gente não troca calor
Não me preocupa
Alguém por aqui me mostrou
Caetano Veloso
Eu tô chegando
Tira aquele pé de trás
Bate aquele banzo
Que eu já vou me levantar
Que eu já tô me levantando
Dançar contigo me dá Caetano
Amanhã cedo a gente pode esquecer
Eu nunca fui a Salvador
Mas um dia que a gente não troca calor
Não me preocupa
Alguém por aqui me mostrou
Caetano Veloso
Eu tô chegando
Tira aquele pé de trás
Bate aquele banzo
Que eu já vou me levantar
Que eu já tô me levantando
Dançar contigo me dá Caetano
Amanhã cedo a gente pode esquecer
04 maio 2017
Canção amiga
Texto de Camila Novaes Maia, graduanda em Letras (ILE/UERJ), voluntária PIBIC no Projeto de Pesquisa Poesia e Transdisciplinaridade: a vocoperformance, de responsabilidade do professor Leonardo Davino de Oliveira (CULT/ILE/UERJ).
Em 2015,
o cantor, compositor e poeta Tibério Azul participou do projeto Mil Tom,
uma coletânea de artistas brasileiros interpretando canções de Milton
Nascimento. A “Canção amiga” foi escolhida exatamente por ser um poema de
Carlos Drummond de Andrade musicado por Milton, inserindo-se na pesquisa
desenvolvida por Tibério da relação entre música e poesia
Na versão
de Tibério, destacam-se os elementos de frevo na melodia. Um frevo – maracatu atômico
– mais lento, remetendo-se a sua terra natal Pernambuco. Pode-se notar pelos
instrumentos utilizados uma grande diferença da versão de Milton Nascimento: enquanto
na versão deste a combinação do violão, flauta e violoncelo tornaram o canto
mais melodioso, o uso de bateria, baixo, teclado e violão da versão de Tibério
tornam o canto mais falado e com muitos ataques consonantais, tematizando a
canção do título. Ainda assim, há a passionalização na interpretação de
Tibério, mesmo que ela surja aos poucos, à medida que as estrofes vão sendo vocalizadas,
até sua quase predominância no final.
Os
ataques consonantais durante a canção tematizam o preparo da canção, o seu
fazer poético, materializando a própria ideia da “Canção amiga”, o próprio
fazer cancional. Enquanto na interpretação de Milton o destaque é o sujeito
cancional poeta-cantor, cantando sobre o preparo íntimo e lírico de sua canção
e sua meta, na interpretação de Tibério o destaque é a própria canção, o seu
preparo, o embate entre cantor e meta, a “canção amiga” em si dizendo seu
objetivo.
Na
primeira estrofe podemos sentir os ataques das consoantes p, c, ç (com
som de s), q, m e r tematizando o trabalho da construção da “Canção
amiga”. Enquanto na interpretação de Milton, a ênfase na primeira estrofe era
na palavra “minha” – no verso “em que minha mãe se reconheça”, na interpretação
de Tibério, a ênfase está na expressão “como dois olhos” – no verso “e que fale
como dois olhos”.
Ou seja,
a ênfase aqui é na meta da canção, uma canção que traga identificação
universal, e para isso ela deve ser tão expressiva a ponto de dispensar
palavras, com a imagem sinestésica auditivo-visual – “fale como dois olhos”. Destaca-se
a passionalização nesse verso, podendo se sentir a vogal o na frase
“fale como dois olhos”, enfatizando ainda mais sua meta: trazer a mensagem de
amizade e união.
Na
terceira estrofe, Tibério Azul canta Eu distribuo segredos em vez de Eu
distribuo um segredo, não sendo a única mudança que ele faz nessa estrofe.
Ele canta De um jeito mais natural em vez de No jeito mais natural;
e dois caminhos se procuram em vez de dois carinhos se procuram. Como a
ênfase não está no sujeito cancional (“Eu preparo”) e sim o processo (“Uma canção”),
aqui temos a ideia de generosidade da própria canção, que distribui palavras,
seus segredos mais íntimos, com a meta de unir os povos (ouvintes). Não à toa o
desejo de união é mais uma vez presente nessa estrofe com a troca de
carinhos por caminhos.
A
construção da poesia e a ideia de união persistem na quarta estrofe: com a
primeira pessoa do singular (minha) dando lugar a primeira pessoa do
plural (nossas) e ambas “formam um só diamante”. As palavras se tornaram
mais belas, depois de sua construção durante toda a canção; a fala foi se tornando
mais melodiosa no decorrer de cada estrofe, com os ataques consonantais se
tornando menos frequentes sendo sobrepostas pelo alongamento das vogais.
Noutras
palavras, ao longo da interpretação, temos um jogo entre tematização (ataques
consonantais) e passionalização (prolongamento das vogais). Essas oscilações de
tessitura estruturam a ideia de união sendo confirmada na construção da própria
canção, onde aos poucos a construção das palavras se une com a melodia,
construindo assim a poesia em si.
A canção
cumpre sua meta: “acordar os homens” para a possibilidade de inseri-los nesse
mundo solidário e cheio de comunhão entre todos; e “adormecer as crianças”
permitindo que a próxima geração nunca deixe de sonhar, de ter esperança.
***
(Carlos Drummond de Andrade)
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
27 abril 2017
Sereia
"O
canto das Sereias é um grau superior da poesia, da arte do poeta. (...) [Mas] de
que trata o canto irresistível, que inevitavelmente faz morrerem os homens que
o escutam, tamanha sua força de atração? É um canto que fala dele mesmo. As
Sereias narram uma só coisa: que estão cantando!", anota Tzvetan Todorov
em As estruturas narrativas (2006).
Ao
longo do tempo, o aspecto narrativo do canto das Sereias foi eliminado.
Obrigaram-nas a transmutar dos seres alados (sim, vários bestiários dão conta de que
as Sereias já foram mulheres-pássaros) e narradores ao confinamento na fábula e
na lenda da mortífera beleza da mulher-peixe. Ou seja, o rabo de peixe e a
beleza física surgem na transformação do mito em lenda na Idade Média.
Criaturas híbridas, para o Cristianismo, elas significavam também a alma
dividida entre os dois mundos e o mal na sua ambiguidade: sedução e pecado.
A
ênfase no aspecto físico em detrimento da voz impõe a ordem de calar as
mulheres que cantam: belas por fora e terríveis por dentro. Por isso a
transição da ave com busto de mulher barbada para a sereia pisciforme. Aglutinando
o monstruoso e a ninfa, o canto da sereia foi reduzido ao grito de alerta das
sirenes policiais, dos bombeiros e das ambulâncias.
É
essa sereia domesticada que Roberto Carlos canta. Seja nos arranjos
harmoniosos, seja na letra que diz "Pelas estradas por onde eu andei /
Alguém igual eu nunca encontrei", seja na voz dominical do intérprete, a
canção "Sereia" (2017) atende à demanda televisiva, calcada num
"sereísmo" de mercado pretensamente inspirado nas lendas e cultura do
estado do Pará.
A
questão posta é: se era para homenagear a cultura paraense, melhor não seria
colocar na trilha sonora da novela a "Morena sereia" (2001), de
Wanderley Andrade? Embalado por uma melodia singular da região, pouco
conformada com o mercado sudestino de música, tal e qual um Ulisses homérico
que depois do contato com as Sereias tornou-se narrador de si, o sujeito da
canção de Wanderley pede: "Me ensina tua canção / Estou enfeitiçado pelo
seu encanto". Essa sereia que canta e transmite o cantar é pouco comum nas
representações sirênicas atuais. Por isso merece destaque.
Por
sua vez, mais dentro do previsto, a "Sereia" de Roberto Carlos
reforça imagens cristalizadas e docilizadas da pulsão erótica. Lampejos de
desejo, tais como "Eu quero olhar nos seus olhos / Sem duvidar do que
faço" e "Eu quero estar com você / E não me importo o que é
certo" se diluem em clichês de rimas fáceis - "A noite eu sonho
dormindo / De dia eu sonho acordado / Que um dia, todos os dias / Eu estarei do
seu lado" - e em arranjo conformista, apaziguador. Não há tensão. Tão
pouco tesão. E quem acredita nesse desejo sem conflito?
A sereia cantada por Roberto reforça o estereótipo da mulher a ser dominada – afônica – em detrimento da afirmação do ser indomável que as Sereias já representaram e que, de alguma forma, está presente no ritmo brega pop e na letra de Wanderley.
A sereia cantada por Roberto reforça o estereótipo da mulher a ser dominada – afônica – em detrimento da afirmação do ser indomável que as Sereias já representaram e que, de alguma forma, está presente no ritmo brega pop e na letra de Wanderley.
Como
sabemos, os mitemas que constituem o mito das Sereias não chegam para nós
brasileiros apenas vindos da mitologia grega, onde habitavam os rochedos entre
a ilha de Capri e a costa da Itália. A semiologia sirênica precisa ser
entendida a partir do complexo semiótico que a constitui hoje. Amazônia (Iara),
África (Iemanjá) e Europa (Ondina) nos fornecem os cantos do mundo ancestral em
permanente estado tensivo.
Hoje
a sereia simplesmente adoça o mar salgado da vida do rei cantor. Todorov
observou que "aquele que ouve o canto das Sereias não pode sobreviver:
cantar significa viver, se ouvir é igual a morrer". E que "as Sereias
fazem perecer aquele que as ouve porque, de outra forma, devem perecer elas
próprias". Talvez seja por isso que um rei à escuta das Sereias será
sempre um rei, ou seja, as regras não o deixarão perder-se, gesto primordial de
quem as escuta.
***
Sereia
(Roberto Carlos)
Quero nadar nas suas águas
Nas ondas dos seus cabelos
Sentir seu corpo molhado
A deslizar nos meus dedos
Eu quero olhar nos seus olhos
Sem duvidar do que faço
Quero beijar sua boca
E te prender nos meus braços
Sereia, te amo, te quero comigo
Pelas estradas por onde eu andei
Alguém igual eu nunca encontrei
Você é tudo que eu quero pra mim
Jamais amei assim
Eu quero estar com você
E não me importa o que é certo
Pois mesmo às vezes distante
Me sinto ainda mais perto
A noite eu sonho dormindo
De dia eu sonho acordado
Que um dia, todos os dias
Eu estarei do seu lado
(Roberto Carlos)
Quero nadar nas suas águas
Nas ondas dos seus cabelos
Sentir seu corpo molhado
A deslizar nos meus dedos
Eu quero olhar nos seus olhos
Sem duvidar do que faço
Quero beijar sua boca
E te prender nos meus braços
Sereia, te amo, te quero comigo
Pelas estradas por onde eu andei
Alguém igual eu nunca encontrei
Você é tudo que eu quero pra mim
Jamais amei assim
Eu quero estar com você
E não me importa o que é certo
Pois mesmo às vezes distante
Me sinto ainda mais perto
A noite eu sonho dormindo
De dia eu sonho acordado
Que um dia, todos os dias
Eu estarei do seu lado
14 abril 2017
O que é canção? Makely Ka
Makely Ka
- O que é canção para você? De onde vem a canção? Para que cantar?
Canção é uma forma
de expressão. Uma forma de pensamento. Talvez a forma mais adequada à língua
portuguesa falada no Brasil. É uma adequação do pensamento ao nosso corpo. Uma
maneira permeável de ligar a ideia ao movimento da língua. Nosso acento verbal encadeado
em frases melódicas determina o jeito como nos colocamos diante do mundo. Traz
nossa memória ancestral, dos cantos indígenas e dos lamentos africanos. Nossa
canção vem da poesia galego-portuguesa, das cantigas de amigo, de amor, de
escárnio e mal-dizer. Talvez seja uma das nossas grandes contribuições à
humanidade. Um sistema de pensamento fragmentado. Tão disperso em pílulas
melódicas de poucos minutos que sequer é considerado um sistema. Sequer é
considerado um pensamento. Mas é nossa forma particular de encarar a
complexidade das coisas. De traduzir em palavras a produção vertiginosa da vida.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que
estes?
Três referências
importantes para o meu trabalho são o Guinga, pelo que ele representa para a
canção brasileira hoje, sua concepção melódica e harmônica em diálogo com a
tradição mais clássica da música brasileira, de Villa-Lobos a Tom Jobim; o Arto
Lindsay pelo que ele representa de desconstrução, de estranhamento dessa mesma
tradição, seu olhar estrangeiro, sua concepção de som e de ruído como
componente da canção; Elomar pela reconstrução de uma tradução perdida, que
remete à nossa herança ibérica, mas incorporando elementos brasileiros, da
tradição nordestina, contemporânea.
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