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31 maio 2020

Vinte palavras girando ao redor do sol

João Cabral de Melo Neto sabia que a noção de lírica mudara no momento em que a poesia escrita passou a superar a poesia cantada. O corpo e a voz do poeta tinham um modo-de-usar-e-dizer o poético que não será o mesmo no papel. Daí a propagada aversão de Cabral à música, à melodia. Ele quis limpar a palavra escrita de toda reminiscência de um tipo de lirismo próprio à voz. Mas ele sabia também que a música, a entonação implícita persiste nas palavras, mesmo escritas. Seu trabalho foi o de escamotear este impulso vocal externo ao poema escrito e iluminar a palavra no suporte da página. 
É por esta perspectiva que entendemos o que Paul Zumthor escreve em A letra e a voz: "O texto 'literário' é fechado: simultaneamente por causa do ato que, material ou idealmente, o circunscreve e na intervenção de um sujeito que efetua esse fechamento. Mas essa intervenção provoca o comentário, suscita a glosa, de modo que, nesse nível, o texto abre-se, e um dos traços próprios à 'literatura' é sua interpretabilidade. O texto tradicional, em contrapartida, pelo simples fato de que transita pela voz e pelo gesto, só pode ser aberto, numa abertura primária, radical, a ponto de escapar, por lampejos, à linguagem articulada; por isso ele se esquiva à interpretação, pelo menos a toda interpretação globalizante" (1993, p. 283-284).
Se por um lado, e de modo mais comumente praticado, temos cancionistas que cantam poemas escritos, vertendo poesia em letra, permitindo a reminiscência mais rápida do texto; por outro lado há cancionistas que deglutem, torcem, parodiam a poesia escrita antes de torná-la letra de canção. Em ambos os casos a parceria entre poetas e letristas é firmada. Mas o segundo caso exige de quem escuta um trabalho maior, a fim de aprofundar o registro da autoria de quem labora, citando direta ou indiretamente, o poema escrito ao cantá-lo. Ao que parece, nestes casos a leitura da poesia demorou mais, não se esgotou na primeira vez, quando o ímpeto de cantar, dizer o texto em voz alta aparece. Há aqui um processo de devoração do conteúdo de leitura acumulado.
"Meu trabalho é todo pautado em escritores. Eu não me inspiro porque a lua está assim ou assado, porque estou apaixonada ou estou sofrendo. É sempre um lastro, um alicerce que me dá credibilidade e me torna eterna", escreve Cátia de França, por exemplo, no encarte do disco Vinte palavras ao redor do sol (1979). Título inspirado nos versos de João Cabral de Melo Neto: "Falo somente com o que falo: / com as mesmas vinte palavras / girando ao redor do sol / que as limpa do que não é faca: // de toda uma crosta viscosa, / resto de janta abaianada, / que fica na lâmina e cega / seu gosto da cicatriz clara", do poema "Graciliano Ramos:" (Terça feira, 1961). Poeta do livro, João Cabral se empenhou na busca da pura escrita e fundou um público para sua obra e as obras de seus sucessores. Por sua vez, Cátia de França compreende o gesto cabralino e engendra um trânsito do texto da voz à letra e de novo à voz.
Ora, se a dobra sígnica Graciliano/Cabral já indica muito do "espinhaço" dito no poema, a vocoperformance de Cátia de França intensifica o sol "estridente, / a contrapelo, imperioso, / e bate nas pálpebras como / se bate numa porta a socos". Cátia usa o verso cabralino como mote para glosar a própria linguagem de Cabral. A canção gira em torno de "com o que", "do que", "por quem", "para quem" fala o eu do poema. E o Sol não permite repouso. Mesmo quando o acompanhamento musical desacelera, Cátia recusa cabralinamente a passionalização vocal, o lirismo egocêntrico, em benefício do cantado, das palavras que precisam dar conta de contar "quem existe nesses climas / condicionados pelo sol, / pelo gavião e outras rapinas".
Chamo atenção para a flexão "falo" do verbo falar na primeira pessoa do presente do indicativo, mas que também pode ser compreendida como alusão ao protagonismo do sol fálico e determinista: "Falo somente...", repete o poema quatro vezes. "Falo somente com / do / por / para / falo". Começar e terminar o primeiro verso de cada parte do poema com "falo" é diagnosticar a macheza e o androcentrismo entranhados nas narrativas da nordestinidade - Vidas secas, por exemplo. 

Note-se, porém, que, diferente da Rosinha da canção do exílio "Asa branca", de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, que fica condenada ao horror da seca, limitada à metáfora que seu nome carrega, enquanto o sujeito da canção migra em busca de paisagens amenas, no livro de Graciliano Ramos, Sinhá Vitória tem voz e protagonismo: não assume "seu papel de mamulengo", conforme a letra da canção fala. Podemos ler Sinhá Vitória como a "Chuva feminina / Num sertão bem masculino", conforme canta Cátia na embolada "Vem vai, quem vem", no mesmo disco. Canção em que os versos "O que vejo é nossa sina / Enxergo a caatinga / Branco hospital" e "Onde o sol é um fuzil" reverberam o ethos do sertão cabralino.
Ainda em "Quem vai, quem vem", Cátia canta "Casebres 'tão caindo / Na porta vejo uma muié / Saco vazio mas que se tem de pé / Nas calçadas sonolentos / No cochilo e cusparada". Seca, "boca sem saliva", cusparada, "vocação de caliça", palavreado... É no capítulo "Sinhá Vitória" que Graciliano Ramos trata do desejo da personagem por uma cama de verdade, "igual à de seu Tomás da bolandeira. Vale a pena reler o trecho: "Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a boca de saliva, inclinou-se - e não conseguiu o que esperava. Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta. Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia" (1970, p. 79).
Cancionista multinstrumentista, toda a obra de Cátia de França é marcada pela leitura. Sua criação artística está amalgamada à cultura da voz que fala por trás da voz que canta. Canção crítica, antropófaga, do "vencido [que] absorve" o vencedor, a obra oferece possibilidades de compreensão do universo, da vida, do ser. Cátia sugere que cantar é ler em voz alta Graciliano, Cabral. Autores que ensacam nas palavras o sol que a "boca sem saliva" de Cátia arrebenta. "Segure a barra, requente / o caldo da sopa fria / vá cultivando a semente / até que um dia arrebente / o saco cheio de sol", ela canta na canção "Ensacado" (Cátia de França / Sergio Natureza), do mesmo disco. Da letra à voz que arrebenta o sol, eis o movimento de Cátia - "Secando as coisas quase tudo ao espinhaço". Assim como as boas poesias, as canções de Cátia não se esgotam numa primeira leitura/audição. É preciso reler, reouvir "essa luta contra o deserto / luta em que o sangue não corre / em que o vencedor não mata / mas o vencido absorve".
No livro Iniciação na cultura literária medieval, o professor Segismundo Spina registra que "proclamada a superioridade e a anterioridade da letra em relação à melodia musical, surge então o POETA; e a fase do TROVADOR e do TROVEIRO entra em declínio. Há agora uma especialização de funções: o poeta compõe a letra, ficando a cargo do músico a melodia. A poesia deixa de ser cantada para se tornar cantável" (1973, p. 24). E se, como disse Riobaldo "tudo, nesta vida, é muito cantável", a "boca sem saliva" deixa explícita seu comprometimento com o cantado - "na insistência de quem sabe o que quer"; impõe-se - é despertador que, "num protesto estridente", desperta "quem padece sono de morto"; e convoca - "chegou a hora mostre seu palavreado / ou então assuma seu papel de mamulengo". Isto é, não seja Rosinha.
Se Cabral compreendera a fala por trás da escrita - "Falo somente..." -,Cátia de França lembra ao leitor de poesia de livro que a canção é uma arte originária, no sentido de que, nos primórdios, texto e canto estavam imbricados. Executada no papel ou na voz, a poesia questiona o ser e o estar no mundo, expande o instante de reflexão do Humano, seus comportamentos "nesse clima" de "gavião e outras rapinas". A canção de Cátia universaliza o conteúdo geográfico e fica "feito goteira picando no quengo" do ouvinte.
A assinatura autoral de Cátia embaralha as categorias poeta - ela assume a missão sugerida pelo eu poético cabralino ("Falo por quem"); trovadora - ela canta a economia vocabular ("bagaceira", "espinhaço", "estridente", "estrebucha", "caliça", "seca"); e voz coletiva - presentifica na vocoperformance quem vai, quem vem - "Zé Ferreira com sua roupa domingueira e "Dona Tereza arriba lá da bagaceira". O apelo valorativo dado à poesia escrita em detrimento da letra de canção entra em crise, tamanha a força da canção, da voz que fala por trás da voz que canta em Cátia. O timbre potencializa o cognitivo, o ouvinte é instado à ação.
Cabral sabia que o público "com o que", "do que", "por quem", "para quem" Graciliano escrevia era exigente, em resposta à própria exigência da vida "secando as coisas quase tudo ao espinhaço". Cátia sabe que o público de sua canção não é menos exigente, por isso limpa a voz "do que não é faca" e "bate numa porta a socos", não se presta à diversão. A voz cancional criada por Cátia, em consonância com o eu poético de Cabral, e com o ímpeto de Sinhá Vitória, não espera a chuva, não guarda consigo o coração do homem ("Adeus, Rosinha!"). Esta voz ressignifica a potência negativa do sol, a fim de aprofundar o estado estridente do eu.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. São Paulo: Martins Fontes, 1970.

SPINA, Segismundo. Iniciação na cultura literária medieval. Rio de Janeiro: Grifo, 1973.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a "literatura" medieval. Trad. Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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Vinte palavras girando ao redor do sol
(Cátia de França / João Cabral de Melo Neto)

Vinte palavras girando ao redor do sol

Na insistência de quem sabe o que quer
Vem Zé Ferreira com sua roupa domingueira
Vem inté Dona Tereza arriba lá da bagaceira

Vinte palavras girando ao redor do sol

Secando as coisas quase tudo ao espinhaço
Falo somente por quem, eu sei que falo
Gente vive nesse clima
Gavião e outras rapinas

Quem padece sono de morto
Precisando d'um despertador
Sol a pino sobre o olho
Num protesto estridente
Estrebucha, cerra os dentes

Vinte palavras girando ao redor do sol

Feito goteira picando no teu quengo
Chegou a hora mostre seu palavreado
Ou então assuma seu papel de mamulengo

Essa luta contra o deserto
Luta em que o sangue não corre
Em que o vencedor não mata
Mas o vencido absorve
Essa luta contra a terra
É uma boca sem saliva
Os intestinos de pedra
Vocação de caliça

Que se dá de dia em dia
Que se dá de home a home
Que se dá de seca em seca
Que se dá de morte em morte

Vinte palavras girando ao redor do sol

22 maio 2020

RESENHA: Da voz à letra


Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o texto “Da voz à letra”, de Eduardo Sterzi. 

Eduardo Sterzi aborda o momento em que a poesia predominantemente oral transita à poesia predominantemente escrita. A transição se dá a partir do século XIII, na Itália, com o surgimento do soneto e a produção poética de Dante. “O soneto tem papel fundamental na superação do forçoso nexo música-poesia característico do trovadorismo e, portanto, na emergência de uma nova noção de lírica” (p. 165). Ainda oscilando entre a oralidade e a escritura, esta nova forma inaugura uma nova concepção de lírica: exclusivamente literária, interiorizada e reflexiva, em que não mais a música, o corpo e seu movimento são referências. Deste modo, a lírica moderna não revela o fim da voz, mas sua sobrevida na escritura. Fato é que, a despeito dessa sobrevida, é a poesia escrita, e não a poesia cantada, que se impõe. Importante para a superação do modelo característico do trovadorismo, rompendo com a relação música e poesia, o sonetto (isto é, pequeno som) carrega em sua designação que “a música, afinal, persistirá como arte secreta a pulsar por baixo – ou mesmo no cerne – de toda a lírica moderna (nesta revolução poética que o soneto pontua, a poesia, como bem disse Segismundo Spina, “deixa de ser cantada para se tornar cantável”).” (p. 166). Eco de um paradoxo anterior, impresso na denominação do gênero lírico, nascido do canto e a ele subordinado muitas vezes. Assim, a lírica moderna, cada vez mais autônoma, ainda é nostálgica por sua relação com a música. Para Sterzi, “pode-se mesmo suge¬rir que o típico poema lírico moderno é sempre uma espécie de alegoria formal da passagem da poesia musical-vocal para a poesia escrita, e, sendo assim, carrega sempre em si a tensão entre um código musical e um código gráfico” (p. 167). 
Na “tensão entre um código musical e um código gráfico” (p. 167), o corpo ausente do poeta faz com que se reivindique uma coincidência entre poesia e vida (p. 172). Isso gera um “movimento rumo a uma crescente autonomia do texto poético” (idem). Sterzi destaca a questão da leitura, feita de forma diferente da que se faz hoje. No séc. XIV, a leitura era “a ruminação de uma sabedoria”, segundo Zumthor, era lenta, separada, devido aos recursos de escrita precários, e, até o séc. XVI, a leitura em voz alta acontecia. Com o surgimento das universidades, a partir do séc. XV, a leitura silenciosa passou a ser uma exigência.
É importante destacar como os contextos sócio-históricos, político-filosóficos fazem a literatura de sua época e influenciam para mudanças, superações e uma nova forma de fazer arte. Foi o que contribuiu relevantemente para a necessidade de superação do trovadorismo e gerou a poesia escrita.Se Dante priorizava as palavras na música, mas ressaltava a importância da harmonização musical delas. Sterzi destaca a diferença entre canção e modulação no que diz respeito a “fabricação de palavras harmonicamente dispostas”. Ou seja, discute-se se melodias se configuram canções ou não, e conclui: “a canção não é nada senão uma ação em si completa de quem diz palavras harmonizadas por modulações”.
O texto de Sterzi reflete sobre o papel de Dante na transição de uma tradição de poesia provençal cantada (a poesia cortês registrada em cancioneiros, a poética de trovadores e jograis) para uma poesia “escrita”, isto é, uma poesia que levaria em conta este novo suporte, suporte da solitude mental e da potência (o vir-a-ser) de voz, que existiria independentemente do corpo e da música. Essa transição da voz à letra marcaria uma elevação filosófica da poesia, um passo adiante das convenções para explorações do pensamento subjetivo e coletivo. Não parte mais da repetição do lugar-comum, do entendimento cristalizado do lugar-comum, mas de retomadas das explorações e investigações temáticas. Outro ponto importante a ser destacado é a experiência na obra, “do indivíduo humano é súbito transportada ao homem em geral” (p. 176). Essa experiência conduz o eu, como homem delimitado de sua ação ao como o homem universalmente considerado. A partir disso, cria-se um processo de personificação que leva a simbolismos presentes em sua obra.

STERZI, Eduardo. “Da voz a letra”. Revista ALEA. Rio de Janeiro, vol. 14/2, p. 165-179. jul-dez 2012.

14 maio 2020

RESENHA: As três vozes da poesia


Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o texto “As três vozes da poesia”, de Thomas Stearns Eliot.

Ao estipular três "vozes" para a poesia, Thomas Stearns Eliot classifica: a primeira, não-dramática, como aquela que fala para si mesmo e mais ninguém, ensimesmada, que "expressa os pensamentos e as emoções do poeta" (p. 133); a segunda, quase dramática, como a voz "que se dirige a uma plateia"; e a terceira como a voz dramática, a voz que subsome no personagem, o qual passa a cantar a partir de seu próprio universo, malgrado este tenha sido criado pelo poeta; ou seja, ocorre a partir da comunicação de personagens imaginárias criadas pelo poeta para recitar seus versos, como acontece nas peças de Shakespeare. Essas personagens constroem um mundo no qual o criador está presente em toda parte, e em toda parte oculto (p. 139), pois uma personagem quando está no palco não pode dar a impressão ao público de que está ali apenas como uma porta-voz do autor da obra.
Aparentemente, as três vozes elencadas por Eliot correspondem aos três gêneros clássicos: o lírico, o épico e o dramático. Contudo, ao longo da leitura do texto fica evidente que a questão é mais ampla, transpassando velhos debates teóricos, menos unívocos, sobre intenção/vontade e recepção estéticas. A distinção entre a primeira e a segunda voz seria o que conduz ao problema da comunicação poética, ou seja, a diferença entre o poeta que cria uma linguagem na qual as personagens imaginárias falam entre si, marcando para o problema de diferenciação entre o verso dramático, quase-dramático e não-dramático.
Como o autor eventualmente afirmará, não é o caminho ideal, por mais didático que este seja, buscar a existência independente dessas vozes. Eliot está interessado em refletir sobre a natureza da voz poética. Além da coexistência das vozes, elas não existem como categorias opositivas, mas sim na forma mais harmônica de degraus ou estágios da feitura poética. Assim seguiria o processo de criação: de um primevo momento de gestação, quando o poema se encontra em estado-dicionário ou ainda anterior a isto, pura potência conceitual, e ainda está agrilhoado às raias da consciência de seu criador, passando pela fase em que adquire linguagem, tornando-se discurso; até o canto/publicação, quando o poeta delega sua autoridade ao sujeito lírico, sua persona poética. Poderíamos dizer que o poeta se sacrifica para dar à luz sua persona ou seus personagens, mas Eliot nos mandou deixar o autor em paz.
T.S. Eliot chega à conclusão de que existe diferença entre poemas escritos para serem lidos e declamados e os que são escritos para o palco (p. 124). Ele destaca ainda a diferença entre o fazer poético sob encomenda daquele para satisfazer a si próprio. Além disso, o verso produzido para um coro não era o mesmo que aquele desenvolvido para uma pessoa (p. 125). É preciso não somente atentar aos propósitos do texto, mas também às vontades e potências de cada uma das "vozes" presentes em um discurso. Ou seja, mesmo destrinchando as recorrências, os arquétipos, a voz e o estilo, no fim das contas, a sua unidade pode mesmo se resumir à sua identidade, o nome que vincula toda a sua produção: do poeta. Qualquer poema, pessoal, épico ou dramático, tem mais de uma voz a ser ouvida (p. 136-137). O poema, mesmo pessoal, não é só para o autor, nem é o autor. No poema dramático, ouve-se a voz dos personagens, e muitas vezes, a voz do autor junto com a de alguns deles (p.137).
Para Eliot, a poesia tem um "propósito social consciente", pretende divertir ou instruir, contar uma história, pregar ou sugerir uma moral, uma sátira, também forma de doutrinação, remetendo à poesia épica, de Homero, que se destina a um público; e o drama, a uma plateia (p. 132). Ele considera o poema lírico como de segunda voz (p. 132-133). Na análise de um poema, ressalta que tentar explicá-lo é tomar cada vez mais distância dele (p. 135).
           
ELIOT, Thomas Stearns. “As três vozes da poesia”. In: De poesias e poeta.

09 maio 2020

Sem fronteiras


A canção tem uma magia capaz de levar o ouvinte a sentir-se íntimo de quem canta. Essa intimidade surge pelo que se é cantado, pelo modo que se é cantando, pela voz de quem canta. Logo, quanto maior a intimidade entre cantor e ouvinte, maior a eficácia da canção.
Pensando no dito e no modo de dizer, para que uma canção tenha o efeito pretendido, é preciso intimidade também com o que é cantado. E a intimidade com as palavras do texto da canção “Sem fronteiras” autoriza Chico Oliveira a dizer o que diz, no modo como diz. Um “músico militante” dizem as várias notas sobre a partida de Chico. Mas não deveriam ser militantes todos os músicos? Se não de partidos políticos, ao menos da música? Chico era dos dois. Isso legitima versos como “Eu sou do Sul e do Norte / Do ocidente, do oriente / Não tenho visto nem passaporte”. Se, como é comum pensar, as manifestações estéticas respondem à urgência expressiva de artistas, a letra de “Sem fronteiras” seria apenas edificante se Chico não fosse um militante político. Ou seja, Chico queria intervir tencionando ética e estética e para isso precisa-se de técnica, intimidade: a integração espontânea, “natural” entre artista e obra.
Não basta o dito, a voz de Chico se amalgama aos acordes de seu violão percussivo. A canção tem tom e ritmo de convite, uma trincheira de alegria em tempos de pandemia. Alegria carnavalesca, que não nega a tragédia do cotidiano: a enorme quantidade de preconceitos criadores de fronteiras entre os seres. Essa tropical melancolia pode ser percebida na performance vocal pouco festiva, quase passional, de Chico. Ao cantar as duas primeiras partes da letra, sua voz, em harmonia com o que é dito, diagnostica nossa identidade coletiva. Essa proposta entoativa é executada contrastivamente com o ritmo acelerado do violão, figurativizando um sujeito cancional em trânsito, caminhando e percebendo o mundo.
Sendo uma trama de ritmos brasileiros porque universais, a toada do violão de Chico presentifica a alegria compartilhada. E o ouvinte vê-se instado a agir para que o mundo mude. Não é à toa que Chico tenha tocado em grupos e blocos cujo ímpeto venha da rua, dos encontros que o carnaval de rua proporciona: Cordão do Boitatá, Rio Maracatu, Orquestra Itiberê, Monobloco, Noites do Norte, Forró sem Fronteiras. Chico estava interessado em agregar seu virtuosismo musical à massa: onde ninguém (ou cada qual) é protagonista.
Só na terceira parte da letra, que funciona como refrão, quando canta e pede “Liberdade pra pensar os rumos do mundo / Paciência pra junto poder navegar / Amizade pra ver o que é mais profundo / E coragem pra fazer o mundo mudar”, é que a voz e a toada se encontram tematizando a celebração do que está por vir: o projeto utópico resultado da vivência e que contagia quem ouve. Só na utopia criada pela canção é que o verbo – “eu sou” – tem a mesma indicação significativa, arranjada e cantada por alguém que vive o que diz. Ora, utopia não é alienação, nem o carnaval é fuga. Pelo contrário, ambos impõem o adensamento da mirada no espelho. O sujeito cancional criado por Chico sabe que a utopia é resultado tanto do olhar retrospectivo, haja vista que o sujeito conhece bem a história da nossa cultura, no caso, cita as mulheres negras, indígenas e subalternizadas, quanto de uma experiência renovada possível: liberdade, paciência, amizade, coragem, que, por sua vez, ele, pela via da empatia, aprendeu a crer e exercitar com estas mulheres. Novamente, é a intimidade cancional, essa abertura ao outro, o que está em ação aqui.
Do primeiro verso negativo “Meu canto não tem fronteiras”, ao derradeiro “coragem pra fazer o mundo mudar”, passando pelo “Eu não me dou por satisfeito”, a canção “Sem fronteiras” trata do caminhar na estrada, do ir indo, da observância do ritmo histórico que trouxe o sujeito cancional até aqui: ao canto. Assim, “Sem fronteiras” é metacanção, é Chico Oliveira afirmando o que é seu canto e, de viés, sugerindo o que é ser humano no meio (não no centro narcísico), na massa: “Já não me importa o sotaque que me / espera no fim da estrada de sotaques”. Perder-se para encontrar-se, eis o ímpeto.
Num Brasil cada dia mais avesso ao outro, a canção de Chico canta um projeto utópico – “Enquanto as águas não forem claras / Eu não me dou por satisfeito” – de manutenção da convivência empática: “Eu sou a escrava vendida / Eu sou a índia caçada / Eu sou os desesperados ao ver a casa debaixo d'água / O Rio Doce é meu leito”. O repertório pessoal é compartilhado e afeta o outro com uma intimidade singular. Nesta perspectiva cria-se uma rede lírica de afetos partilhados, como cada um sendo o que é: qualquer coisa, joia.
Não conheci Chico Oliveira (1986-2020) pessoalmente, embora tenha visto o músico integrar (misturado em) alguns dos grupos e blocos nos quais tocou. Mas há uma intimidade profunda entre o artista que canta “Sem fronteiras” num vídeo caseiro e o pesquisador de canção que sou.

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Sem Fronteiras
(Chico Oliveira)

Meu canto não tem fronteiras
O mundo é minha morada
Já não me importa o sotaque que me
espera no fim da estrada
Eu sou do Sul e do Norte
Do ocidente, do oriente
Não tenho visto nem passaporte

Eu sou a escrava vendida
Eu sou a índia caçada
Eu sou os desesperados ao ver a casa
debaixo d´água
O Rio Doce é meu leito
Enquanto as águas não forem claras
Eu não me dou por satisfeito

Liberdade pra pensar os rumos do mundo
Paciência pra junto poder navegar
Amizade pra ver o que é mais profundo
E coragem pra fazer o mundo mudar