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30 agosto 2012

Não tenho medo da morte



Quando perguntado sobre o que seria o tempo, Santo Agostinho respondia: "Se ninguém me perguntar, eu sei. Se eu quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei". O entrave entre o intuir e o traduzir em palavras levantado por Santo Agostinho nos sugere o quão difícil é definir o tempo de modo a dar conta de sua complexidade natural, psicológica, social. Temos um conhecimento intuitivo do tempo.
Como apontar aquilo que poderia ser o tempo diante da realidade objetiva (o passar sucessivo dos milésimos de segundos do relógio), a intuição individual da intervenção do tempo no humano que somos (e vice-versa) e os acontecimentos específicos do momento histórico em que vivemos? Portanto: A qual tempo me refiro quando quero falar sobre o tempo?
O certo é que nem todos os tempos (e aqui já aparece o plural do termo) são dignos de destaque. Voluntária ou involuntariamente, esquecemos e/ou recalcamos períodos, épocas. Se o passado, que é o único tempo que existe, ou sabemos existir, porque lá já estivemos, está perdido e o futuro deve ser (intuição de desejo) o que no passado era apenas uma promessa, resta-nos lembrar, viver e esperar no presente.
O presente, por sua vez, é um instante tão comprimido que quando acabo de digitar a palavra "presente" ele já se tornou passado. O tempo depende da memória individual e coletiva. E nós precisamos dessa memória para existir no tempo.
Em "A crise da filosofia messiânica" (In: A utopia antropofágica) Oswald de Andrade anota: "A ciência e a técnica procuram produzir na terra o céu longa e demasiadamente prometido pelo Messianismo" (p. 185). Na modernidade, com sua ousadia (coletivamente engendrada) de pensar a realização do futuro desejado não mais no campo da religião (pós) e sim da terra (aqui), mediante a valorização da técnica, tudo passou a contar e a ser valorizado em termos de produção, gerando a aflição da sensação de aceleração do tempo, a fim de que o investidor obtenha retorno rápido.
No conhecido texto "O narrador", a partir da experiência da guerra e do avanço da técnica, Walter Benjamin escreve sobre esta mudança de perspectiva em relação àquilo que importava e que deixa de importar: "Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano".
Benjamin aponta para as mudanças bruscas e repentinas nas referências do indivíduo e mira no capitalismo especulativo da nossa sociedade de consumo (em que poucos podem consumir). As novidades, nem sempre desejáveis, destroem as referências do passado, quando não feitas à vida criativa. O novo pelo novo e a necessidade de ter o "sempre novo" transformam a vida em uma interminável sucessão de meios cujas finalidades estão perdidas em si.
A aceleração que os meios promovem nos acontecimentos (fazemos cada vez mais coisas dentro de uma mesma fração de tempo), as tais técnicas de reprodução criticadas por Benjamin, porque extinguiriam a "aura" dos objetos feitos agora em série, implode a nossa capacidade de esperar e, consequentemente, de desejar. No texto "Experiência e pobreza", Benjamin anota: "Essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade". Daí as depressões, as melancolias, os fatalismos.
Sobre este ponto, Maria Rita Kehl escreveu em O cão e o tempo: "O melancólico benjaminiano vê-se desadaptado, ou excluído, das crenças que sustentam a vida social de seu tempo; mas ao contrário do empenho investigativo e criativo que caracteriza seus precursores renascentistas, sente-se abatido pelo sentimento da inutilidade de suas ações. Daí a relação entre a melancolia (pré-freudiana) e o fatalismo, sentimento de insignificância do sujeito como agente de transformações, tanto na vida privada quanto na política” (p. 100).
As esperanças projetadas no futuro dizem muito do presente, já que aquele traduz as angústias deste. Assim como o presente é o panteão das angústias do passado. Deste modo, se "o futuro já começou", onde fica o presente? Suprimir quaisquer dos tempos causa pane no viver.
Baseadas nas leis constantes da natureza, as técnicas da física possibilitam prever o tempo, mas não a inconstância do humano no tempo. É no esquecimento da tradição que reside a desvalorização do futuro e do presente. Para Benjamin, o progresso promovido pelos meios não engendra, de fato, progresso algum, posto que não promove a emancipação do homem, nem o fim das desigualdades.
Voltando ao texto "O narrador", Benjamin escreve que "a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos".
Claro está que as perdas do tempo social analisado por Benjamin diferem radicalmente das perdas do tempo social brasileiro, basta olhar para a tradição (a relação com o passado) das duas sociologias. Daí também a perplexidade dos teóricos estrangeiros diante de nossa capacidade em transformar "lágrima em canção".
Penso em tudo isso quando ouço Gilberto Gil cantar "Não tenho medo da morte" (Banda larga cordel, 2008). Qual o outro narrador-cancionista para cantar as angústias e os prazeres diante do tempo que não para arrastando-nos ao nosso caminho inevitável à morte?
Em diálogo com o sujeito de outra canção de Gilberto Gil, o sujeito da canção "Não tenho medo da morte" observa que o futuro enquanto dimensão do tempo é sempre o mesmo: "mistérios sempre há de pintar por aí". Por um lado, o futuro é a diversidade de possibilidades, por outro lado, não há como fugir da morte: um presente do futuro - um estranho presente, pois, "a morte é depois de mim".
O medo que assombra o sujeito da canção é o medo de morrer antes de acabar o que lhe cabe viver. Morrer dentro da vida: da morte chegar demasiado cedo. Canta: "A morte já é depois / que eu deixar de respirar / morrer ainda é aqui (...) Não tenho medo da morte / mas medo de morrer, sim / a morte e depois de mim / mas quem vai morrer sou eu / o derradeiro ato meu / e eu terei de estar presente".
Noutro trecho da letra, ouvimos: "A morte já é depois / já não haverá ninguém / como eu aqui agora / pensando sobre o além / já não haverá o além / o além já será então". O sujeito percebe que estamos invariavelmente presos ao presente, mas olhando sempre para o depois. "E quando eu tiver saído / Para fora do teu círculo / Tempo tempo tempo tempo / Não serei nem terás sido / Tempo tempo tempo tempo", canta Caetano Veloso, na sua "Oração ao tempo".
Objetivamente, o aqui e o agora não existem. Como entender o "Obrigada, senhores, obrigada por estarem aqui, hoje", que Maria Bethânia me diz através do disco, senão pela minha disposição ao pacto com o eterno presente das canções que, mesmo mediatizadas, conectam-se à minha memória: lembranças e esperanças. Para que o sujeito cancional surja o tempo de sua existência precisa coincidir com o tempo do ouvinte.
O tempo da "fala presente" do sujeito cancional é o futuro do pretérito: poderia ser, tinha tudo para ser, mas não será, mesmo estando preservado(?) da ação do tempo pela técnica. No ouvinte, no entanto, fica a intuição de que aquilo é e pode ser. Eis o tempo complexo das canções que a canção de Gilberto Gil, ao tematizar a morte, revela.
O tempo exige novos posicionamentos frente ao eterno retorno não do mesmo, mas do diferente. "Não me iludo / Tudo permanecerá / Do jeito que tem sido / Transcorrendo / Transformando", canta Gil noutra canção sua. No modo como Gilberto canta a mensagem de "Não tenho medo da morte" reside a eficácia da canção: calmo, sereno, em ato de espera, de desaceleração - performance de um cancionista que "se quiser falar com Deus" sabe que precisa "calar a voz e encontrar a paz".
A espera é a vontade que se encaminha para o exterior. Não para o futuro, mas para a exterioridade do presente em sua expectativa modelar do acontecimento esperado. "A morte já é depois / que eu deixar de respirar / morrer ainda é aqui / na vida, no sol, no ar / ainda pode haver dor / ou vontade de mijar", canta Gil: cancionista compositor de destinos.

***

 Não tenho medo da morte
(Gilberto Gil)

não tenho medo da morte
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar

a morte já é depois
já não haverá ninguém
como eu aqui agora
pensando sobre o além
já não haverá o além
o além já será então
não terei pé nem cabeça
nem fígado, nem pulmão
como poderei ter medo
se não terei coração?

não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte é depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou

então nesse instante sim
sofrerei quem sabe um choque
um piripaque, ou um baque
um calafrio ou um toque
coisas naturais da vida
como comer, caminhar
morrer de morte matada
morrer de morte morrida
quem sabe eu sinta saudade
como em qualquer despedida

23 agosto 2012

Navegador de canções


O sujeito da canção é aquele que, em teoria da poesia, ainda chamamos de eu-lírico, uma categoria complexa que, em síntese, é a voz que fala de dentro do poema a "mensagem" do poema. É a voz insuspeita que diz "eu navegava canções", por exemplo, na canção de Tom Zé; ou "minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá", no poema de Gonçalves Dias. É o eu-lírico que fala o verso, distinguido, mas ligado por sutis relações autoficcionais, com o autor da obra.
Diverso, mas engendrado também ao sujeito da canção, o sujeito cancional é aquele que é quando a canção está em execução. É quando o ouvinte escuta Tom Zé cantando o verso acima citado que o sujeito cancional é localizado. Mas, principalmente, é quando o ouvinte coincide seu estado de espírito com aquilo que o sujeito da canção diz - está dizendo - que o sujeito cancional se apresenta em sua totalidade estética à apreciação.
O sujeito cancional brinca entre a carência e a saturação das experiências e vivências tanto do cancionista emissor vocal da canção, quanto do ouvinte. É o sujeito cancional quem, no indivíduo adulto, transforma a angustia em sono e sonho, como as canções de ninar maternas fizeram na infância.
Talismã contra a desventura, o sujeito cancional, claro está, é utópico e irrenunciável. Se embalar e cuidar de alguém exige tempos longos, maternais, no tempo contemporâneo veloz, o sujeito cancional toca exatamente na necessidade de laços de afeto. Coincididos, sujeito e indivíduo se embalam, sutilizam a dor, freiam o novo sempre igual do cotidiano sem futuro.
Voz mediatizada vinda do turbilhão moderno, o sujeito cancional breca os estímulos, fluxos e intensidades do mundo moderno porque "cuida" do indivíduo. Ou melhor, estimula o indivíduo ao cuidado de si, que é transformador, porque não recusa o passado, ao contrário, lembra ao indivíduo que este não está solto do saber viver do passado. O sujeito cancional não busca a inovação, nem entra no jogo da monotonia que se alimenta do novo, como nos alerta Walter Benjamin.
Do lugar da experiência estética, o sujeito cancional instiga a formação do ouvinte, posto que convida este à contemplação. Ele sabe que a pressa aniquila o conhecimento, mas faz dela uma aliada, quando pode ser posto à disposição do ouvinte nos fones de ouvido, em qualquer lugar. Ele faz da recepção distraída uma cúmplice no engenho de transmitir a sua experiência de sujeito estético, valorizando o presente do ouvinte.
O sujeito cancional reconhece a incompetência da realidade. É dela que ele se alimenta. Ele afronta o tédio ideológico das classes tidas como superiores e o cansaço de existir das classes desabonadas de bens de consumo. O sujeito cancional, quando engendrado no ouvinte, recupera o esmero do artesão. Ele faz com que uma mensagem dada ao coletivo possa ser digerida nietzscheanamente por cada indivíduo.
O sujeito cancional respeita a individualidade e imprime a originalidade de ser do ouvinte. Por isso cada audição de uma "mesma" canção é sempre uma repetição em diferença, pois vai depender do estado de espírito do ouvinte o exercício espiritual que o sujeito cancional promoverá.
O sujeito cancional criado por Tom Zé em "Navegador de canções" (Tropicália lixo lógico, 2012) não é o expert que, treinado, mas sem conhecimento, dá conselhos sem experiências. Ele é o intelectual que, carregado de traços mnemônicos, defende uma tese: “Aquilo que os meninos do Nordeste jogavam fora quando travavam contato com Aristóteles escapulia do córtex, se alinhava no hipotálamo e ali adormecia. Tornava-se lixo, só que um lixo dotado de lógica própria. (...) Um lixo lógico!” (Tom Zé, revista Bravo! 179, jul/2012).
O sujeito cancional é o narrador: ponte entre passado e presente, apontando o pensar do esquecimento das diferenças. Pensar no presente é sempre rememorar e mirar no futuro. Nem as trevas da ignorância, nem as luzes da verdade. Utópico, o sujeito cancional mostra que sem utopia estamos condenados à irrelevância.
Ao cantar os versos "Longe, sozinho, / Ventos marinhos, / Eu navegava canções", acompanhado por uma melodia montada essencialmente por instrumentos de cordas (violão, violino, cello, rabeca) cujo conjunto lembra os provençais, o mítico cantador nordestino, Tom Zé rejeita o desaparecimento do passado e convida o ouvinte a com ele navegar na trama melódica. Isso sem contar a recuperação da presença do coro - muitas vozes - em momentos pontuais da canção.
O sujeito da canção "Navegador de canções", narrando sua experiência, abre o leque das possibilidades sonoras e vocais que compõem a brasilidade, algo que Tom Zé reconhece disparado na Tropicália: ápice estético da valoração da mistura, do resgate das culturais orais.
Ao ritmo da gavota (dança francesa) e do fado, o sujeito da canção narra sua dança particular, porque coletiva-Brasil, entre os bordões (palavras e cordas de instrumentos) que alimentam as canções nossas de cada dia. O narrador-cancionista afirma que canta, que chegou "ao porto dos bordões, / onde botam ovos as canções" ao navegar, ao se permitir correr o risco de se deixar ser afetado por diversos extratos sonoros.
Condenado à civilização ocidental e à liberdade da utopia tropical, o sujeito da canção de Tom Zé ancora no ninho, no centro, no núcleo duro da questão: berçário dos analfatóteles (analfabetos em Aristóteles) "onde botam ovos as canções". Ele descobre na confiança na dança "das cardeais direções" o seu lugar de cancionista brasileiro não comportado: tropicalista. 

***

Navegador de canções
(Tom Zé)

Longe, sozinho,
Ventos marinhos,
Eu navegava canções,

Ia na dança,
Na confiança,
Das cardeais direções.
Eu navegava canções.

O fado ministrava meu noivado
Com duetos, minuetos,
Corais, corais.
Uma gavota me guiou
Ao porto dos bordões,
Onde botam ovos as canções.
Canções, canções.

Ô ô canção

10 agosto 2012

A dor e o poeta


O sujeito cancional é um complexo de categorias. Ele só se permite ouvir no instante-já da canção. Ele amalgama a voz do compositor, a voz do sujeito da canção (a voz que "fala" a mensagem da letra da canção) e a voz do desejo do ouvinte. E se descola de todos estes quando permite a fruição, bem como a possível significação, pessoal e intransferível da canção.
Noutra e complementar perspectiva, podemos dizer que o sujeito cancional reúne em si "as três vozes da poesia" identificadas por T. S. Eliot (ver De poesia e poetas), a saber: a do poeta (indivíduo) que fala consigo mesmo, a do poeta (sujeito) que fala como um outro e a da personagem criada pelo poeta (indivíduo e sujeito). Eliot reconhece que elas não se excluem, ao contrário.
Porém, a estas, no caso do sujeito cancional, temos ainda a presença decisiva da voz do desejo do ouvinte: o espaço entre aquilo que é cantado e aquilo é ouvido. O sujeito cancional, portanto, é um lugar. É neste lugar que as canções deixam de ser promessas e passam a ser canção, como aponta o sujeito de "Nossa canção", de José Miguel Wisnik e Mauro Aguiar. E é deste lugar lamacento e nada asséptico que o compositor canta, transmutado em cancionista: "As canções / só são canções / quando não são / mais nossas" (versos da canção citada).
É através do sujeito cancional que podemos dizer que, ao cantar uma "mesma" canção, diferentes intérpretes também são autores daquela canção, singularizando-a em suas gestualidades vocais; e que, ao tomar a canção para si, o ouvinte se apropria da mensagem para "entender" o mundo à sua volta e a si mesmo, imerso no mundo. É o sujeito cancional, coincidido com o estado do ouvinte naquele momento de execução da canção, quem faz o convite para o canto compartilhado. "De voz em voz / de par em par" (idem).
 No caso das canções de amor, ou quando há na letra da canção um destinatário aparente, por exemplos, é o sujeito cancional quem permite que uma canção dirigida a uma pessoa possa ser ouvida e apropriada, pela empatia, por outras pessoas, quando do momento de sua vocalização. Nela o ouvinte entra em intimidade com o que lhe é apresentado. O ouvinte não conhece o sujeito, mas tem nele um cúmplice.
Ou seja, o sujeito cancional é performatização sirênica. Ele apresenta em som (tensão entre corpo e alma) algo que até então o ouvinte e o próprio compositor só tinham uma vaga ideia do que seria: a coisa em si - tão fluida e fugidia quanto a própria canção que (não) morre no ar. E aqui está o drama do sujeito cancional.
Em sua vasta e rica pesquisa sobre os medievais, provençais Paul Zumthor aponta que é preciso se concentrar "nos efeitos da voz humana, independentemente dos condicionamentos culturais particulares" (Performance, recepção, leitura p. 12) quando analisamos textos outrora oralizados e que nos são transmitidos como manuscritos. E reclama do silêncio profundo que nos cerca quando lidamos com as canções hoje tidas "apenas" como poesia.
Ao mesmo tempo, Zumthor anota que os meios eletrônicos "abolem a presença de quem traz a voz" e que "os media tendem a apagar as referências espaciais da voz viva". Salvo engano, o sujeito cancional como tenho aqui desenvolvido chama para si a responsabilidade de sustentar o mito, o arcaico vocal em tempos líquidos de reprodução técnica da voz.
Prismático, sujeito cancional é permanência (da certeza de que uma voz de alguém de carne e osso emitiu algo) e fluidez (momento luminoso feito um flash de compartilhamento de experiências). Corpórea e incorpórea, a canção é apreendida no corpo, que reage.
Pensando nestas vozes e em suas ações chegamos à canção "A dor e o poeta", de Moraes Moreira (A revolta dos ritmos, 2012). Nela, o sujeito da canção canta os motores que alimentam o poeta e a poesia. Retomando como mote o poema "Autopsicografia", de Fernando Pessoa, o sujeito diz: "A dor atinge / O peito do poeta / Mas ele finge / Que nada sente / e até se delicia". O foco aqui é na dor que o poeta "deveras sente". "É solidão / E ele dá outro nome: / Inspiração".
Há, no caso das canções, dos poemas vocalizados, entre a dor fingida (do campo da ficção) e a dor sentida (da inspiração), aliadas à dor vivida (no corpo) por quem ouve a canção, uma outra instância: o sujeito cancional, ligando tudo, entretendo a razão e tensionando as categorias no calor da voz que dura enquanto dura a canção.
De viés, "A dor e o poeta" chama atenção para o sadismo do ouvinte: "A dor destrói / Mas o poeta em si / É um herói / Diz que é feliz / E a plateia aplaude / E pede bis". O sujeito dessa canção parece chamar atenção para algo semelhante ao que experimenta o sujeito de "Bastidores", de Chico Buarque, na voz de Cauby Peixoto, que se constrói e se inventa diante dos ouvidos de quem lhe ouve cantar: "Cantei, cantei / Jamais cantei tão lindo assim / E os homens lá pedindo bis", apesar e além da dor.
A dor que atinge o peito do cantor se traduz em beleza trágica e satisfaz quem lhe ouve, satisfazendo a ele próprio por conseguir fingir (tornar arte/ficção) uma dor que deveras sente nesse "comboio de corda / que se chama coração", como anota Pessoa.
O texto de "A dor e o poeta" é cantado duas vezes: Na primeira a voz de Moreira declama os versos acompanhada de violões e sanfona, tal e qual acreditamos acontecia com a poesia medieval, provençal. Na segunda, no bis, com o poeta já devidamente deliciado na própria dor, Moreira canta: modaliza o texto na voz e na linha melódica dada pelos instrumentos. E vice-versa. E "o poeta faz / Um carnaval / Deixa doer / Até o fim / Ao bel prazer".
E a entrega no instante-já - "Em cada canção que vivo / motivo é que não me falta / Pra ir do começo ao fim", canta Moreira noutra canção do mesmo disco - se realiza. E o sujeito cancional surge e impregna de prazer a caixa acústica do ouvinte: "A dor é fria / Se não se transforma / Em poesia / Sofreguidão / Se não compõe os versos / De uma canção".

***

A dor e o poeta
(Moraes Moreira)

A dor atinge
O peito do poeta
Mas ele finge
Que nada sente
e até se delicia
Mas ele mente
A dor é tanta
No seu limiar
Mas ele canta
É de partir
O coração
Mas ele ri

A dor é fria
Se não se transforma
Em poesia
Sofreguidão
Se não compõe os versos
De uma canção
A dor invade
E o poeta diz
Que saudade
É solidão
E ele dá outro nome:
Inspiração

A dor é fina
O aço de um punhal
Não há morfina
Que traga alívio
Em sua permanência
Em seu convívio
A dor é tal
Mas o poeta faz
Um carnaval
Deixa doer
Até o fim
Ao bel prazer

A dor insana
Vai forjando as cenas
De um drama
E sobre o tema
Ergue a estrutura
Do seu poema

A dor destrói
Mas o poeta em si
É um herói
Diz que é feliz
E a plateia aplaude
E pede bis

03 agosto 2012

Blues


"Sócrates, Platão e Aristóteles construíram as bases do pensamento ocidental ou, se você preferir, os alicerces do racionalismo. Entretanto, no interior do Nordeste, consumíamos uma prosódia, um saber oral, uma visão de mundo que não advinha dos gregos, e sim dos árabes. (...) O importante é que a meninada do Nordeste bebia daquele caldo não aristotélico até entrar na escola. Por isso, costumo dizer que a creche tropical acolhia uma porção de analfabeto, os analfabetos em Aristóteles. Com 7 ou 8 anos, a garotada enveredava pelo colégio e, só então, tomava conhecimento da cultura ocidental. Calcule a surpresa, o fascínio. Descobrir os livros, as ciências e todo um palavreado diferente! Hipnotizadas por tamanho tesouro, as crianças jogavam fora o aprendizado anterior e deixavam que Aristóteles assumisse as rédeas em definitivo. (...) Nada desaparece, bicho! Nada! (...) Aquilo que os meninos do Nordeste jogavam fora quando travavam contato com Aristóteles escapulia do córtex, se alinhava no hipotálamo e ali adormecia. Tornava-se lixo, só que um lixo dotado de lógica própria. (...) Um lixo lógico! Na década de 1960, Caetano e Gil (...) perceberam que tinham de resgatar o aprendizado do interior, a herança dos árabes, a tradição oral e uni-los à cultura pop do ocidente, filha direta do pensamento aristotélico. Conseguiram, assim, engendrar um ser inteiramente original, a dona Tropicália". Tom Zé (Revista Bravo! 179, jul/2012).
"A civilização ocidental foi mesmo uma obra-prima da Humanidade, mas demonstra cansaço. (...) Devemos ser dignos de seus melhores ensinamentos. Não podemos ser otários para insistir em seus impasses. (...) Quero o bom, misturar o melhor de todos os lugares. (...) Virar país desenvolvido não é chegar ao lugar onde o Ocidente está (...). Houve e há aqui, por exemplo, o encontro entre duas tecnologias do êxtase: o xamanismo indígena e a possessão africana. A convivência íntima entre essas visões de mundo incompatíveis pode nos dar um jogo de cintura metafísico (e criativo) realmente espantoso. (...) podemos copiar Gil. Ele disse: 'Para mim, raiz só de mandioca'." Hermano Vianna (Jornal O Globo - 27/07/2012).
Os contatos culturais nos países latino-americanos não foram pré-programados, posto que esses países se forjaram no meio do redemoinho da mistura, tendo o lastro ocidental colonizador empunhado, pela razão que a tudo quer dominar, as armas cerceadoras. Palimpsestos, enquanto rascunhos de ocidentais nós quisermos aplicar os saberes não-ocidentais às regras capitalistas, eles não encontrarão solo fértil para brotar, simplesmente porque são sementes de outros e para outros tipos de solo.
Os textos de Tom Zé e de Hermano Vianna se complementam na certeza cada vez mais pungente de que ouvir o Brasil apenas com os ouvidos ocidentais não dá conta de ensaiar aquilo que o Brasil é, ou pode vir a ser. O modo forçado e pretensamente lógico, porque racional, com que temos feito o Brasil caber dentro dos encaixes de certas teorias dá sinais de desgaste e cansaço. Sempre deu, mas também sempre foi mais cômodo pensar o Brasil assim, por estes vieses claros, lineares.
Ora, se em sua liberdade diante das dívidas morais "a creche tropical" se difere ontologicamente das outras, como querer entender o Brasil - "devorador universal" - sob os mesmos paradigmas? Onde colocar "os pés da Índia e a mão da África" do Brasil construído e adotado?
O verso da canção "Blues", de Péricles Cavalcanti (Blues 55, 2004), desperta a atenção para outras "novas" incorporações da brasilidade. Ou seja, se sincretizados, os santos católicos que aqui chegaram e dominaram o imaginário não são mais os mesmos de quando da chegada, há também nas traduções brasileiras de Krishna e Iemanjá uma devoração que distingue e transforma os mitos.
Nem Iemanjá é mais (apenas) o rio geográfico africano, nem Krishna é mais (apenas) um ente hindu. Do culto hidrolátrico Iemanjá passa a ser grande mãe africana do Brasil: é ela o rio que passa sem que possamos domar. Da posição de lótus, Krishna passa a ser referência de meditação: é ele a concentração dentro da estrela azulada.
Há uma intimidade tropical, solar, corporal e vocal interligando as várias pontas da estrela. Ou seja, no Brasil "o lixo dotado de lógica própria" significa-se a todo instante, para além da compreensão imediata, fixa, fechada. Ou seja, se o conceito ocidental de revolução está em crise, geneticamente o Brasil é sendo crísico - "Os pés no céu e a mão no mar".
Penso nestas questões enquanto ouço Péricles Cavalcanti, um cancionista burilador de canções, cantando "Blues", como um mantra, um ponto para orixá, uma devoção acústica ao gesto de fazer canção no Brasil: menos superações, acomodações e mais incorporações, fissuras. Por aqui, o que se devora está se conservando.
No Brasil, a pele azul-escura-celeste de Krishna se "harmoniza" aos tons de azul de Iemanjá: tão íntimos quanto dessemelhantes. Amalgamados no canto de Péricles, ele e ela - "Azul no sangue à flor da pele" - são forças transcendentais e instrumentos de mobilidade. Assim como blues é cor e gênero, pluralidade e ritmo, melancolia solar. Mistura que existe enquanto ficção e realidade, para além da razão puramente ocidental.

***

Blues
(Péricles Cavalcanti)

Tem muito azul em torno dele
Azul no céu azul no mar
Azul no sangue à flor da pele
Os pés de lótus de Krishna

Tem muito azul em torno dela
Azul no céu azul no mar
Azul no sangue à flor da pele
As mãos de rosa de Iemanjá

Os pés da Índia e a mão da África
Os pés no céu e a mão no mar