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17 julho 2014

Órbita

O pessoal do Les Pops já avisara: "A canção cansou de dizer coração / A canção cansou de sofrer por paixão / A canção cansou de chorar no refrão / A canção nem quer mais tocar / Cansou de não ter o que falar", retomando um tema lançado por Caetano Veloso em "Canção de protesto": "Por que será que fazem sempre tantas canções de amor e ninguém cansa e todo o mundo canta?".
Penso nessas questões enquanto ouço Órbita (2010), de Ana Clara Horta, um disco que investe mais no drama coletivo do amor, do que nas relações amorosas pautadas pelo "amor cortês", romântico. E com isso passeia pela contramão da indústria mercadológica, pois não repete o enfadonho esquema das queixas lírico/individuais.
Como amar depois de Shakespeare? Como amar depois da liberação sexual, quando os limites das manifestações do amor foram implodidos? Amar tornou-se complexo, pois, entre outras evocações, requer a predisposição de deixar o(s) outro(s) "livre para amar". Obviamente, por comodismo e conservadorismo, o processo de extroversão dessa mudança demora a chegar (chegará?) à efetuação coletiva. E o excesso de canções cantando a mesma coisa e de modo igual impera.
Enredada nos fios de náilon que tramam a rede-objeto retratado na capa do disco, Ana Clara Horta começa convidando o ouvinte: "Anda / Solta o que ainda lhe prende / Anda / Pra que o pé atrás? / (...) Deixa o amor correr ao léu". E seduz a imaginação: "Deixa / Me pegou na veia / Canto de sereia / Bote de cascavel / Vou lhe aquecer os pés / Cuidar do seu sono". 
Não é à toa que a maioria das letras das canções do disco orbite em torno do próprio gesto cancional - "Quero música na veia", "Ter um lugar pra mim / E querer visitar / Meu canto / Um som de concha do mar", "Desligando os nós / Religando os trens das ideais / Das brincadeiras, fez canção". Se musicalmente o disco parece não se diferenciar muito da tradição da canção-MPB, é na temática das letras e na voz justa de Ana Clara Horta que ele ganha em ruptura e proposta de renovação.
Todos esses versos parecem ser recolhidos na derradeira canção, "Culpe meu vício" (Ana Clara Horta), que diz: "A gente vai vivendo essa vida que vem / Descobre sem querer a vida real". É quando o cancionista investiga seus processos de composição que ele pode oferecer ao ouvinte essa "vida real", "vida em suspensão" só possível na arte, na experimentação, no devir do canto de alguém cantando.
Ana Clara Horta compreende isso e faz de seu disco uma fonte de canções sirênicas, uma ilha de conchas do mar, uma rede sonora onde os nós são firmados com carinho e atenção. Mesmo quando flerta com o amor romântico, caso de "Melodrama", faz isso ironizando a situação amorosa, haja visto o título da canção. Antes já havia cantado, autorrefletindo-se : "E se for disfarce esse meu disparate / De ser cantora / Quero ir dar voltas na lua".
Por isso, talvez esteja na canção que dá nome ao disco, "Órbita", assinada pela própria cancionista, o núcleo que condensa o projeto de fazer a canção cantar sem a necessidade de evocar velhas fórmulas das "canções de amor" que empesteiam nossos rádios. Ouvindo os versos "Vou pra bem longe daqui / Aonde as lágrimas de chuva / Não encontrem com as minhas / Não mais" temos a confirmação dessa recusa ao fácil, ao palatável, ao consolo. Aqui a água "benze o tormento". Afinal, a voz de Ana já tinha sugerido que canta movida pelo "canto da sereia" e pelo "bote de cascavel".

***

Órbita
(Ana Clara Horta)

Vou pra bem longe daqui
Aonde as lágrimas de chuva
Não encontrem com as minhas
Não mais

Quero música na veia
O mesmo ingrediente o centeio de pães
Matinais
E se for disfarce esse meu disparate
De ser cantora

Quero ir dar voltas na lua
Pra ver minha alma se situar
Chegar à ilha desconhecida
Que é pra ver se saio de mim
E quem sabe me encontro
Numa outra órbita
Órbita
Órbita

10 julho 2014

Vidraça



Demorei a escrever sobre Praia, disco que Mariano Marovatto lançou em 2013, por pura incapacidade de verbalizar o que sinto e penso a cada audição. Digo isso para afirmar a caoticidade desse texto constipado, mas urgente para sair.
Desde o primeiro contato, percebi que o disco precisava de muitas escutas. Como sempre faço, seja com um livro (um poema), seja com um disco (uma canção), tentei ouvir Praia em vários momentos, em diferentes situações - também de frente para o mar - e todas as vezes o disco me diz ter vindo do fundo escuro de um coração tropical. De outra margem possível e mais real, entre o solar e o lunar, entre a tristeza e a felicidade, porque o rigor formal e o experimento sonoro de Praia ao mesmo tempo nega e expõe algo profundo do Brasil, de nossa genética e contemporaneidade.
Marovatto decalca experimentos sonoros, a fim de compor um cântico íntimo e internacionalizante, roçando outras línguas. Para os sujeitos cancionais criados por Marovatto, a praia é um lugar entre o mar (aberto, sem cais) e o asfalto (opressor, sem salvação). A praia é ilha, como bem observou Ismar Tirelli Neto: "A Praia, aqui, é claustrofóbica. Mesmo que fosse imensa, mesmo que fosse a perder de vista – estaria toda ela contida em seus “botões”. Praia de ilha, praia de náufrago – uma solidão populosa de vozes espectrais, chiados fantasmáticos, dissonâncias, sons cuja procedência não conseguimos muito bem situar".
É bonito perceber como que sujeitos estranhos, que tinham tudo para "nadar e morrer na beira da praia" pairam a milímetros da areia (cama sonora), sem que isso indique redenção e/ou finitude. Tal resultado é obtido, tanto no procedimento de decalque sonoro já mencionado, quanto no apagamento da voz do cancionista. Assim, como um gesto de contra-selfie, ou um selfie por dentro do olho da câmera (sempre lenta), Mariano está e não está nos sujeitos das canções.
Cada espectro vocal que aparece em Praia está movido por uma paixão que reapropria os sujeitos cancionais com um vigor abstrato pouco habitual em canção. Abstrato e geométrico, naquilo que esse conceito tem de rigor, de exatidão, de movimento em direção à certeza.
Ouça-se o exemplo de "Vidraça", de Mariano Marovatto e Romulo Fróes. Aqui, a canção é pedra. Pedra é palavra escrita na palma da mão, essa "epiderme da alma", como Arnaldo Antunes cantou. Há um convite à audição da rua, das tais "vozes das ruas". "Pega essa pedra, leva pro colchão", diz o sujeito. A pedra-canção é eco e silêncio dessas vozes. Mas a rua é preciso ser escutada no cotovelo, ou seja, na espera, no devir, assim como o ciúme que "dói nos cotovelos, na raiz dos cabelos, gela a sola dos pés", como canta Elza Soares.
O sujeito de "Vidraça" tem ciúme da rua? Ele sugere que se "não tem vidraça no cemitério", esse campo santo povoado de vozes, só resta levar a pedra pro colchão. A pedra atravessa a voz e a melodia. E intimida: "Me conta agora / o teu segredo / sai dessa banda / derruba o prédio / desliga o rádio / me dá remédio / deságua logo essa constipação".
Que banda é essa mencionada pelo sujeito da canção? Banda musical, constipada e urgente de soltar o som? Outra banda da terra, oposta à banda em que ele vive? Essas questões são intensificadas na estrutura formal da canção. Tudo é dito/cantado numa quase-vinheta em câmera lenta. "E nunca o ato mero de compor uma canção / Pra mim foi tão desesperadamente necessário", cantaria Caetano Veloso.
A antena parabólica de Praia capta videoclips que testemunham e interrogam a melancolia tropical dos sujeitos das canções, sujeitos presos na praia-ilha à espera de vozes marinhas, sirênicas. Marovatto dilui esse aglomerado na água poluída do sangue poético-cancional. E o segredo dói pra fora na paisagem, arde ao sol do fim do dia. E mais não ouso dizer.

***

Vidraça
(Mariano Marovatto / Romulo Fróes)

É bem mais fácil
não tem mistério
palavra escrita na palma da mão

Escuta a rua
no cotovelo
deserto, asfalto, latido de cão

Não tem vidraça
no cemitério
pega essa pedra, leva pro colchão

Me conta agora
o teu segredo
sai dessa banda
derruba o prédio
desliga o rádio
me dá remédio
deságua logo essa constipação