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30 abril 2019

Ode II


"A experiência amorosa repousa sobre o narcisismo e sua aura de vazio, de aparência e de impossível, que subentendem toda idealização igualmente e essencialmente inerente ao amor", escreveu Julia Kristeva em Histórias de amor. O que nos ajuda a pensar sobre os versos de Hilda Hilst - "(...) Tu sabes, Dionísio, / Que a teu lado te amando, / Antes de ser mulher sou inteira poeta. / E que o teu corpo existe porque o meu / Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio, / É que move o grande corpo teu." (ode II) - mais como um canto de espelhamento/refração de si no outro, e menos como subalternidade.
Poeta, ela assume o sopro vital e criador - "o teu corpo existe porque o meu / Sempre existiu cantando". Nesta tomada de posição, deus é mulher: Ariana. Estes versos fazem parte da ode II de "Ode descontínua e remota paraflauta e oboé. De Ariana para Dionísio", quarta seção do livro Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974). O foco é Ariana, não Dionísio. Ou melhor, o deus existe porque ela - poeta - existe e tem consciência disso. "Nosso utilitarismo é aquilo que é útil ao espírito. Nossa 'utilidade' é apenas consciência", anotou Marina Tsvetáeva (ver O poeta e o tempo). Ariana atribui a si a autoria do hino a Dionísio. Ela é Musa e sujeito do verbo cantar, simultaneamente. Não há separação entre quem canta (santidade) e o modo de cantar (erotismo). A poesia faz-se um conhecimento de si, do outro.
Para Tsvetáeva, "minha vontade é meu ouvido: não cansa de ouvir até sentir, e não escreve nada que não tenha sentido". Por sua vez, a Ariana hilstiana canta: "É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas. / Voz e vento apenas / Das coisas do lá fora // E sozinha supor / Que se estivesses dentro // Essa voz importante e esse vento / Das ramagens de fora // Eu jamais ouviria. Atento / Meu ouvido escutaria / O sumo do teu canto" (ode I). Hilst recria Ariadne, filha de Pasífae, abandonada por Teseu. Ariana é Ariadne amadurecida. Ela sabe que Dionísio é cúmplice de Teseu. Nenhuma mulher, nem nenhuma deusa, teve tanta morte quanto Ariadne: "Ainda que tu me vejas extrema e suplicante / Quando amanhece e me dizes adeus", canta Ariana, ao fim de cada noite, de cada espera.
Se Ariadne tem destino duplo - é esposa de Dionísio (madura) e é esposa de Teseu (adolescente) -, Ariana é simultânea: "Porque te amo, Dionísio, / É que me faço assim tão simultânea", canta na ode IV; afinal, ela é mulher (vida à mostra) e poeta (vida secreta). Para Tsvetáeva, "a verdade dos poetas é a mais invencível, a menos captável, a mais indemonstrável, uma verdade que vive dentro de nós apenas naquele primeiro instante obscuro da percepção e que permanece dentro de nós como o traço de uma luz ou de uma perda".
Raptada e depois abandonada por Teseu, Ariana canta na ode I composta por Hilst: "Que não venhas, Dionísio. / Porque é melhor sonhar tua rudeza / E sorver reconquista a cada noite / Pensando: amanhã sim, virá". Qual Penélope que tece à espera de Ulisses, Ariana canta porque espera. Este adiamento da chegada - a "sábia ausência" - é o motor do cantar. E a mulher se faz poeta. E prefere este lugar, de quem canta, do que aquele, de quem espera. Embora uma seja também a outra: simultânea.
Ao lado de Dionísio, da alienação de si, Hilst coloca Apolo que responde pela aparência com que Ariana canta e se apresenta: "Não essa que te louva // A cada verso / Mas outra // Reverso de sua própria placidez / Escudo e crueldade a cada gesto" (ode IV). Eis o "ciúme venenoso" que Ariana quer plantar no peito de Dionísio? Descendentes de Zeus, Dionísio é embriaguez; Apolo é o uso da embriaguez (ele usa Teseu para matar Minotauro). Ariana abraça Apolo - dá forma à paixão, cria a aparência do desejo, canta - à espera de Dionísio: "Apenas tu, Dionísio, é que recusas / Ariana suspensa nas tuas águas" (ode IX); "A uma mulher que canta ensolarada / E que é sonora, múltipla, argonauta // Por que recusas amor e permanência?" (ode III).
"Deixando Dioniso presidir o mundo da esfera acústica, Nietzsche compreende Apolo como o deus da arte figurativa, portanto do olho e da visão, da bela e luminosa aparência, ou seja, da forma", anota Adriana Cavarero ao pensar a "filosofia da expressão vocal" (ver Vozes plurais). Não à toa, Ariana canta na ode II: "Ainda que tu me vejas extrema e suplicante"; na ode IV: "Porque te amo / Deveria a teus olhos parecer / Uma outra Ariana"; e na ode VI: "Três luas, Dionísio, não te vejo". O logos poético é sonoro: Ariana e Dionísio são enquanto dura a canção de Ariana. A voz comanda o sentido; e descentra o pensar do olho para o ouvido, numa atitude pré-platônica de vocalização do conhecimento de si, do outro. 
Ao dizer-se poeta, Ariana engana, encanta e é encantada - simultaneamente: "é centelha e âncora" (ode VIII) - pelo dom de iludir inerente à poesia. Ela é mulher que canta. Se ela é poeta antes de ser mulher, a mulher que ela é é invenção da poeta. Se, de Platão a Derrida, a filosofia se compromete com a surdez, com a palavra escrita, com a visão, a poesia de Hilst vocaliza a Ariadne mitológica muda. Ariana insiste no apuro dos ouvidos a fim de reencantar o que foi descartado: a voz de Ariadne.
Poeta, ou seja, mantendo uma relação privilegiada com a Musa, Ariana sabe que "há um campo da palavra no qual a soberania da linguagem se rende à soberania da voz", como escreve Adriana Cavarero. Para a autora, "o preço da eliminação do caráter físico da voz é, em primeiro lugar, a eliminação do outro, ou melhor, dos outros". E completa: "a desvocalização do logos inaugurada por Platão, além de fixar o primado ontológico do pensamento sobre a palavra, tende, sobretudo, a libertá-la da corporeidade do sopro e da voz". Deste modo, a mulher está a "mover-se pela casa como num texto", diria Maria Gabriela Llansol (ver Onde vais, drama-poesia?).
Note-se também Maria Bethânia em "Drama" cantando: "Eu minto mas minha voz não mente / minha voz soa exatamente / de onde no corpo da alma de uma pessoa / se produz a palavra eu". A voz - o grão da voz - afirma a singularidade do eu que canta. "Sem o prazer acústico, sem a relação de gozo entre bocas e ouvidos, a unicidade da voz corre risco de se transformar em categoria abstrata, descorporificada, manca. A voz é única e a voz canta", escreve Cavarero. "Venha de manso ouvir o que eu tenho a contar / Não é muito nem pouco eu diria / Não é pra rir mas nem sério seria / É só uma gota de sangue em forma verbal", canta Angela Ro Ro em "Gota de sangue".
"Se não há vinho, não há Afrodite, / faltando ao homem, mágico, o deleite.", pergunta Eurípides (Ver As bacantes, trad. Trajano Vieira). Sangue (bios) e vinho (pathos) são essências da criação poética e seu projeto de suspensão do tempo ordinário: é preciso enfrentar Chronos. Daí o diálogo forjado entre Ariana e Dionísio na poesia de Hilst. Ariana é animada pelo deus da vida criativa. "Antes de ser mulher sou inteira poeta", canta. Antes de ser escrita ela é voz, sopro. Cavarero observa que "a voz, de fato, não camufla; pelo contrário, desmascara a palavra que a quer mascarar. A palavra pode dizer tudo e o contrário de tudo. A voz, qualquer coisa que diga, comunica antes de tudo, e sempre, uma só coisa: a unicidade de quem a emite". É deste modo que percebemos a autenticidade - respiração, passionalização, silêncios, repetições, escansão - dada à letra de Hilst nas vozes das cantoras do disco Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio (2005).
Cada ode escrita por Hilda Hilst é cantada por uma intérprete. Na sequência: Rita Benneditto, Verônica Sabino, Maria Bethânia, Jussara Silveira, Angela Ro Ro, Ná Ozzetti, Zélia Duncan, Olívia Byington, Mônica Salmaso e Angela Maria revocalizam a entonação embrionária dos versos hilstianos. Produzido por Swami Jr., Walter Costa e Zeca Baleiro, foi deste a idealização do projeto e o trabalho de construção da melodia vocal dos poemas.
A "extensa e difícil dialética lírica" de Hilda Hilst está alinhada numa tradição de ruptura das mulheres que cantam, pelo menos, desde Safo e compõe uma poética que afirma: "Canção e liberdade não se aprendem", conforme Ariana canta na ode VII. Ariana, esta Sereia - monstro canoro - que, tendo "meditado e sofrido / Irmanada com esse corpo / E seu aquático jazigo", pensa: "Que se a mim não me deram / Esplêndida beleza / Deram-me a garganta / Esplandecida: a palavra de ouro / A canção imantada / O sumarento gozo de cantar / Iluminada, ungida". Canção que "apenas tu, Dionísio, é que recusas / Ariana suspensa nas tuas águas".
Sobre as Sereias, Cavarero anota que "elas cantam palavras, vocalizam histórias, narram cantando. E sabem o que dizem. (...) O que as distingue da Musa, além do corpo monstruoso ["não me deram esplêndida beleza", canta Ariana], é principalmente uma voz audível para ouvidos humanos". O canto é feminino. Ao anotar que "Antes de ser mulher sou inteira poeta" Hilst aponta a questão em torno da poesia feita por mulher, poesia feminina, poesia feminista. Três categorias distintas mas, talvez, complementares nos versos da ode V: "A mim me importa, / Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido / E o que tu dizes nem pode ser cantado / Porque é palavra de luta e despudor. / E no meu verso se faria injúria // E no meu quarto se faz verbo de amor". Hilst e Cixous se aproximam quando esta intenciona não "criar uma escrita feminina, mas de deixar transparecer na escrita o que até hoje sempre foi proibido, ou seja, os efeitos da feminilidade" (apud Cavarero).
Cantar é ler o poema, criando a ilusão enunciativa que está contida nas palavras mortas (sem sopro) no papel. Cada intérprete do disco, portanto, assina na voz o "poema do livro". A sereia de papel que Ariana era ganha vida. Para Cavarero, "a mulher que canta é sempre uma Sereia, ou seja, uma criatura da ordem do prazer, estranha à ordem doméstica de filhas e esposas. Indomesticável, a voz feminina do canto abala o sistema da razão e nos arrasta para outro lugar".
Suicida (para Plutarco) ou vítima de Artemis (para Homero), Ariadne busca a harmonia: mulher e poeta. Mais poeta do que mulher quando canta. E por isso canta. A mulher é traída. A poeta trai. Ariana é Ariadne que "sempre existiu cantando". É preciso cantar para existir. E Hilst dá canto à mulher, reconduz Ariadne à condição de ninfa, de Sereia. Este projeto é completado quando as odes são cantadas por mulheres, pois assim há a concretude da mensagem, sua materialização por trás do ouvido do ouvinte. O sujeito cancional - Ariana - é essa imagem plasmada por trás dos olhos de quem ouve. A voz que canta passa a carregar a mitologia do ouvinte, que, por sua vez, se reconhece plasmado no modo sirênico (das Sereias) de dizer da cancionista Verônica. E de todas as mulheres cantoras do disco. Para Cavarero, "o primeiro passo para liberar a voz de seu gendarme noético, o primeiro gesto contra os cânones desvocalizantes da filosofia, passa por uma tematização privilegiada do falar". E é isso que Hilda faz: trabalha a fala da mulher, da poeta. Esta fala cantada potencializa o trabalho de arte de Hilst.
Na ode cantada por Verônica Sabino, é sensível a aparição da voz que canta o desejo de energia dionisíaca. Verônica arfa, alonga as vogais, repete o verso "sempre existiu cantando" duas vezes a fim de figurativizar tanto a mulher-cantante, quanto o trabalho sisífico de cantar, de estar à espera. Os tons baixos, os suspiros sutis, o violão de 7 cordas de Swami Jr., o bandolim de Milton Mori e o corne inglês e a flauta de Carlos Ernest plasmam a imagem do sensível, a voz por trás da voz que canta. Se a utilidade da poesia é a consciência, o cancionista transforma as coisas em espírito ao mesmo tempo em que torna as coisas mundanas, isto é, mais próximas da percepção e da apropriação criativa do ouvinte. Mundana, a existência se expande.
Ariana existe enquanto canta. Ao encerrar as odes cantando "Se todas as tuas noites fossem minhas / Eu te daria, Dionísio, a cada dia / Uma pequena caixa de palavras" ela revela a construção consciente de sua vida. Afinal, "inteira poeta", ela faz das odes esta "pequena caixa de palavras". "Coisa que me foi dada, sigilosa", ela diz, encerrando o ciclo (o canto): "Porque tu sabes que é de poesia / Minha vida secreta". Sigilo e segredo perdem as forças diante das razões da desrazão: o vinho da embriaguez, o sangue da poeta (ver Jean Cocteau), o delírio da linguagem - Dionísio. 
Portanto, os versos metapoéticos, ou seja, a poesia que se auto-pensa, as odes que tratam do fazer poético, ganham novos sentidos quando cantados. "Entre os antigos gregos e romanos, [a ode] ligava-se à música, passando depois a um poema lírico em que se exprimem os grandes sentimentos da alma humana", registra Norma Goldstein (ver Versos, sons, ritmos). Tanto o título do livro de Hilda Hilst, quanto o título da parte cantada lembra-nos que estas odes são epitalâmios, cânticos nupciais: casamento do desejo de cantar (Dionísio) com a canção (Apolo). O corpo da poeta - "palavra de luta e despudor" - presentifica os cônjuges no grão da voz de Verônica Sabino.
"Noivo feliz, agora chegou o dia de teu casamento, e tens a noiva que queria". Os versos de Safo parecem dar o mote das odes de Ariana. Ela: simultânea. Ele: deus do vinho, da vinha, do delírio, que só dura enquanto dura a canção. Por isso o gerúndio "cantando", pois é preciso se manter em movimento mítico: "Ariana pode estar sozinha / Sem Dionísio, sem riqueza ou fama / Porque há dentro dela um sol maior: // Amor que se alimenta de uma chama / Movediça e lunada, mais luzente e alta" (ode VI). Ariana (presente na voz das cantoras do disco) e Dionísio (o noivo por vir) se completam como o sentido de cada verso precisa do encadeamento no verso seguinte para se fazer formal e melodicamente hilstianos.
"Porque é melhor sonhar tua rudeza / E sorver reconquista a cada noite"; "Quando amanhece e me dizes adeus"; "A mim me importa, / Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido"; "Três luas percorro a Casa, a minha, / E entre o pátio e a figueira / Converso e passeio com meus cães"; "Chama movediça e lunada"; "E refrescar tuas noites / Com teus amores breves"; "Se todas as tuas noites fossem minhas / Eu te daria, Dionísio, a cada dia / Uma pequena caixa de palavras / Coisa que me foi dada, sigilosa". São muitos os significantes espalhados ao longo das dez odes cujo significado recupera o mito: Ariadne transformada em constelação após sua morte. A promessa de Dionísio. A eternidade à espera de ser a melodia (Apolo: ponderação, modelar) das palavras do deleite (Dionísio: excesso, perda de si). "Esquecer a si próprio é, antes de mais nada, esquecer sua fraqueza", escreveu Marina Tsvetáeva.
O sujeito cancional criado por Verônica é o tempo-espaço de intimidade concreta entre a voz que sai da sua boca, desse alguém-cantor (ou das caixas acústicas, mediadoras da voz humana) e o entendimento (a imagem, o sensível) que entra pelos ouvidos de outro alguém-ouvinte. Verônica lê Hilst e traduz sua mensagem. Verônica amalgama a voz de Hilda, a voz de Ariana (a voz que "fala" a mensagem da letra da canção, outrora poema de livro), a voz de Ariadne, porque acompanhada de instrumentos clássicos de sopro e corda, e a voz do desejo do ouvinte. O ouvinte entra em intimidade com o que lhe é apresentado. O ouvinte não conhece Ariana, mas tem nela uma cúmplice. Ouvir é ler. Cantar é ler.
"O amor é um daimon criador, e é por isso que o filósofo, em falta e em busca de belo e de obra, é um amoroso tanto quanto é um criador", anota Julia Kristeva. A Ariana hilstiana é filósofa ("tenho meditado e sofrido") e poeta ("mulher que canta ensolarada"). Ela reconstitui os saberes separados pela imposição da escrita. Este devir da completude, das núpcias é o motor da vida de Ariana. O eu-lírico é eu-participante, pois, ao atuar na performance de si, reflete sobre a performance poética: temos a poesia cantando a poesia. E perguntando ao ouvinte contemporâneo: "Por que recusas amor e permanência?".

***

 (Hilda Hilst)

Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.

15 abril 2019

Mulher barriguda

O que une a poética de Solano Trindade (1908-1974) à poética dos Secos & Molhados? O contexto histórico - 1973 é o ano em que o poema "Mulher barriguda" de Solano é cantado e registrado no primeiro disco do grupo formado por João Ricardo, Gerson Conrad e Ney Matogrosso; o tema da liberdade individual (ser o que se é) e coletiva (o despertar das consciências), presente nos dois projetos artísticos; e a tensão crítica entre tradição e ruptura. Eis algumas respostas possíveis, a priori, da aproximação entre artistas que cantaram a alma coletiva em tempos de crise: Solano Trindade com a tópica do racismo estrutural e os Secos & molhados com a tópica do machismo tirano.
A relação de Solano Trindade com várias linguagens artísticas, à semelhança do que fará os Secos & molhados, é desde sempre uma marca de sua poética. Ele foi o primeiro ator a protagonizar a peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Morais, em 1956. Como ator, Solano atuou também no cinema. Multiartista e produtor cultural, Trindade tem papel fundamental na reflexão crítica da cultura brasileira. Ele participou da criação da Frente Negra Pernambucana, do Centro de Cultura Afro-Brasileiro, do Comitê Democrático Afro-Brasileiro, do I Congresso Afro-Brasileiro, do Teatro Experimental do Negro, do Teatro Folclórico Brasileiro, do Teatro Popular Brasileiro.
A exemplo de Luiz Gama (1830-1882), a poesia de Solano Trindade é participativa. Ao invoca a "Musa de Guiné, cor de azeviche, / Estátua de granito denegrido", Gama escreveu: "Quero que o mundo me encarando veja, / Um retumbante Orfeu de carapinha". Por sua vez, disse Solano: "Eu canto aos Palmares / sem inveja de Virgílio de Homero / e de Camões / porque o meu canto é o grito de uma raça / plena luta pela liberdade!" ("Canto dos Palmares"). "Ainda sou poeta / meu poema / levanta os meus irmãos. / Minhas amadas / se preparam para a luta, / os tambores / não são mais pacíficos, / até as palmeiras / têm amor à liberdade", diz o eu-lírico, cuja missão é despertar.
Sobre "Canto dos Palmares", Carlos Drummond de Andrade escreveu: "A leitura dos seus versos deu-me confiança no poeta que é capaz de escrever "Poema do Homem" e "Canto dos Palmares". Há nesses versos uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva" (em carta a Solano, 02/12/1944).
Destaque-se que este canto a Palmares foi motivo de ataque ao projeto de Solano Trindade. Em maio de 1945, o Teatro Experimental do Negro (TEN) foi assim descrito em editorial do jornal O Globo: "um grupo palmarista tentando criar um problema artificial no País". E talvez aqui identifiquemos mais uma vértice entre Solano e os Secos & molhados: a permanência crítica do "princípio-esperança", ou seja, a crença num futuro mais luminoso, apesar das sombras do presente censurado; a resiliência; a reexistência, apesar do sufoco histórico. O "princípio-esperança" mistura-se ao "princípio-realidade", diria Haroldo de Campos. Mesmo os "desbundados" Secos & molhados - "entre os sacis e as fadas" - incorporam às suas performances vocovisuais a tropical melancolia, a consciência da crise socioeconômica e, principalmente, ética.
Esta lírica participante move os versos de "Mulher barriguda", poema melodizado por João Ricardo: "Mulher barriguda / Que vai ter menino / Qual o destino / Que ele vai ter, / Que será ele / Quando crescer". Ao rimar "menino" e "destino", o poema de Solano Trindade faz do menino a semente de um futuro possível. Esta relação de dependência é fundamental à consciência. "O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente", ensina Tierno Bokar.
A questão do poema de Trindade é: este menino por nascer enfrentará as mesmas guerras do presente? "Haverá ainda guerra?", pergunta o poema. "Haverá guerra ainda?", pergunta a voz de Ney Matogrosso. Para "crescer" o menino precisa "ter" (outra rima luminosa de Solano) as condições necessárias. Na vocoperformance dos Secos & molhados um coro sagaz canta, junto à bateria, "lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá láááá". Seria a onomatopeia da metralhadora da guerra em desenvolvimento ao redor do sujeito cancional? Seria a sombra que põe em suspeição o futuro do menino e, consequentemente, da sociedade, do saber? A guerra mata o futuro ainda semente. "A bomba explode lá fora / E agora, o que vou temer?", perguntara Torquato Neto em "Marginália II".
Mas se a proposta era figurativizar o barulho da metralhadora exterminando a possibilidade de futuro do menino da mulher barriguda, porque não usar o recorrente efeito sonoro "tá tá tá tá tá tá tá tá tá tá tá tááá"? Talvez porque a ironia corrosiva esteja exatamente nisso. Ou seja, o "lá lá lá" incorpora o pouco caso que a sociedade dá à justiça social, ao futuro do menino. "Eu vi a mulher preparando outra pessoa / O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga", cantaria Caetano Veloso em "Força estranha" anos mais tarde. É este tempo de atenção e escuta do outro que a "Mulher barriguda" de Solano na voz e no corpo de Ney convoca.
"Entendamos por poesia esta pulsão do ser na linguagem, que aspira a fazer brotar séries de palavras que escapam misteriosamente, tanto ao desgaste do tempo, como à dispersão no espaço: parece que existe no fundo dessa pulsão uma nostalgia da voz viva. Toda palavra poética aspira a dizer-se, a ser ouvida, a passar por essas vias corporais que são as mesmas pelas quais se absorvem a alimentação, a bebida: como meu pão e digo meu poema, e você escuta meu poema, da mesma forma que escuta ruídos da natureza. E essas palavras que minha voz leva entre nós são táteis", escreve Paul Zumthor em Escritura e nomadismo.
Antecipando o rap e o slam, a poesia escrita de Solano Trindade pede vocalidade ("aspira a dizer-se") e ganha no corpo dos Secos e molhados a vitalidade discursiva necessária ao Brasil de 1973. "A vida é amiga da arte", completa a canção de Caetano Veloso, atento ao jogo entre lírica e sociedade. E política e arte são indissociáveis na poesia de Solano Trindade. O tom festivo da canção "Mulher barriguda", contra a alienação, reforça a crítica social, pois incorpora a dor delirante do sofrimento histórico (sempre mascarado) da nossa sociedade cordial.
O "lá lá lá" dos Secos e molhados faz do tabu um totem. A metaforização sonora de nosso horror social convida (provoca no) o ouvinte à reflexão engajada, faz do ouvinte um cúmplice crítico: gesto contracultural em contexto de ditadura militar; grito e desabafo de quem "assume os pecados, rompe tratados e trai os mitos". Revelar a desigualdade e a injustiça na vida social urbana brasileira teve seu preço. Exemplares do livro Poemas de uma vida simples (1944) de Solano foram apreendidos e tirados de circulação. O poeta-griot foi preso por causa do emblemático "Tem gente com fome". Em 1964, seu filho Francisco foi assassinado numa prisão.
Note-se que em 1975 "Tem gente com fome" também foi melodizado por João Ricardo. A gravação, no entanto, foi censurada. Ney Matogrosso só conseguiu registrar a canção no disco Seu tipo (1979). Os versos crísticos "Se tem gente com fome, / Dai de comer..." cuja carga semântica é adensada por "Mas o freio de ar, / Todo autoritário, / Manda o trem calar: / Psiuuuuu..." certamente não agradavam os aparelhos ideológicos ditatoriais. O "Trem  sujo  da  Leopoldina", parodiando o poema "Trem de ferro" - "Café com pão / Café com pão / Café com pão" - de Manuel Bandeira, sujava a imagem da pátria feliz imposta pelo regime.
Calcada na ancestralidade das raízes negras do griot, a pulsão ético-poética de Solano Trindade encontrou na vocoperformance dos Secos e molhados o suporte pop/tropicalista para afetar a classe média brasileira e sua "leve esperança / a aérea esperança... / aérea, pois não!", conforme diz o poema "Rondó do Capitão", de Manuel Bandeira, também cantado pelos Secos e molhados. No livro O doce & o amargo do Secos e molhados, Vinicius Rangel analisa as estratégias do trio cuja obra revolucionou para sempre o experimentalismo na canção popular brasileira. Rangel anota que "ao inserir a poesia de forma original na cultura de massas, o Secos e molhados potencializou o alcance da palavra poética na sociedade brasileira. Devido às condições precárias da educação no Brasil, o grande público apenas teria acesso a estes textos caso se aproximasse do universo livresco, possibilidade mais do que remota hoje em dia".
Ainda para o autor, "a partir da reinvenção da relação do público com a palavra poética na contemporaneidade, conclui-se que o reencontro de muitos brasileiros com a palavra poética em tempos de ditadura não permitiu que a consciência crítica perene a cada brasileiro se dissipasse pelo ar". E completa: "Ao apresentar a figura de uma grávida, este boogie woogie [a canção "Mulher barriguda"] pontuado pela harmônica de João Ricardo, pela linha de baixo de Willie Verdaguer e pelo piano de Emílio Carrera tem a missão de questionar a direção dos novos tempos em um ambiente social tomado pelo poderio militar, pela falta de perspectivas para quem estava do lado dos oprimidos e, acima de tudo, pelos combates permanentes travados por quem ocupava o poder".
"Nem eu próprio à festança escaparei", escreveu Luiz Gama; "Quando deixarei de prantear?", perguntou Solano Trindade. Foi deste modo lúcido e crítico que o saber da poesia de Solano Trindade - saber que é herança de tudo aquilo que seus ancestrais vieram a conhecer e que se encontrava latente em tudo o que lhe transmitiram - tentou romper as diversas formas de autoritarismo no comportamento antirrepressivo dos Secos e molhados. 

***

Mulher barriguda
(Solano Trindade)

Mulher barriguda
Que vai ter menino
Qual é o destino
Que ele vai ter,
Que será ele,
Quando crescer...

Haverá guerra ainda?
Tomara que não
Mulher barriguda
Tomara que não