Há alguns modos de exílio. Todos dolorosos. Na malha do texto polifônico que compõe o romance Exílio (2012), por exemplo, a escritora Marcela Tagliaferri cria um personagem que passa quinze anos exilado em um manicômio, vítima da obsessão de um sogro afeito ao golpe militar brasileiro e desejante de que a filha lhe seja (só e apenas) objeto de caprichos sádicos.
A poética do exílio é a do não-pertencer mais que não-pertencer. É o altíssimo grau de complexidade do estranhamento da identidade. Estranho a tudo, estrangeiro, "forasteiro do que vê e ouve", o exilado se estranha. Por sua vez, se comumente o artista é sempre um cantante localizado no exílio de si mesmo, porque submerso na gravidade do pertencer-não-pertencer ao mundo, o artista exilado opera com a potencialização da vulnerabilidade da subjetividade: a morte de Narciso.
"Os dias daquela semana na solitária da Polícia do Exército às vezes são lembrados por mim como um só dia que pareceu durar uma eternidade. Depois de muito tempo - mas o que era “muito tempo”? -, comecei a procurar por mim mesmo na pessoa que dormia e acordava no chão daquele lugar odioso cuja imutabilidade impunha-se como prova de que não havia - nunca houvera - outros lugares. Se nunca ver ninguém era um fato que contribuía decisivamente para criar essa impressão, uma outra limitação - que se perpetuou por todo o período da prisão – a intensificava: não ter acesso a espelhos", anota Caetano Veloso em Verdade tropical (1997).
No exílio, o indivíduo afastado de sua Língua, é obrigado a usá-la em conflito com a Língua do lugar onde ele se refugia. O exilado segura uma pedra em brasa nas mãos. Cantor-de-si e estranho aos cantos ao redor, ele canta a vida segurando essa pedra pesada e acesa: a própria (des)identidade? É por isso que as canções de exílio - em geral - são doídas, de tons baixos, voz despida de brilho e calor: uma quase não-voz, porque cantada de um quase não-lugar.
Exemplo disso são as canções do exílio de Caetano Veloso. Compostas em inglês sobre um palimpsesto - pergaminho cujos manuscritos foram apagados para dar lugar a outros manuscritos - brasileiro, tais canções explicitam, na voz de Caetano Veloso, não apenas o estado singular dos sujeitos cancionais, mas também do artista, do indivíduo.
Os movimentos vocais de Caetano inflamam aquilo que as letras dizem e as melodias sugerem. A quase não-voz é entoada para que a conexão com o seu lugar - perdido com o exílio - se mantenha: "Eu não vim aqui / Para ser feliz / Cadê meu sol dourado / E cadê as coisas do meu país?", pergunta o sujeito de "If you hold a stone", de Caetano Veloso, enquanto é amparado e mimado pelo coro (sabiá que melhor gorjeia) cantando "marinheiro só".
Importa lembrar que o canto do sabiá como símbolo de sustentação do indivíduo retorna mais explicitamente na obra de Caetano quando ele grava "Sou seu sabiá" (Noites do Norte, 2000): "Se o mundo for desabar sobre a sua cama / E o medo se aconchegar sob o seu lençol // (...) // Você pode estar tristíssimo no seu quarto / Que eu sempre terei meu jeito de consolar // (...) // Eu sou / Sou seu sabiá / Não importa onde for / Vou te catar / Te vou cantar". Sem o sabiá simbólico, o exilado arranha autocantos: as canções de exílio.
Não é à toa que "If a hold a stone" tenha sido dedicada a Lygia Clark, artista cujo projeto estético singulariza a produção de presença do corpo, da fisicalidade da subjetividade na arte. A participação, a penetração (para usar um termo caro à obra de Hélio Oiticica) do, agora, não-espectador mas parte do objeto, diz muito ao sujeito da canção que vem do exílio.
Unindo a imagem da pedra cantada nos versos em inglês e do arranhar que marca os dias passados na "cela de uma cadeia", o designer Claudio Rocha traduziu, transcriou "If you hold a stone" na pedra-dor onde a letra da canção foi gravada e grafada, fixando os anseios do sujeito no objeto-ícone cantado.
A poética do exílio é a do não-pertencer mais que não-pertencer. É o altíssimo grau de complexidade do estranhamento da identidade. Estranho a tudo, estrangeiro, "forasteiro do que vê e ouve", o exilado se estranha. Por sua vez, se comumente o artista é sempre um cantante localizado no exílio de si mesmo, porque submerso na gravidade do pertencer-não-pertencer ao mundo, o artista exilado opera com a potencialização da vulnerabilidade da subjetividade: a morte de Narciso.
"Os dias daquela semana na solitária da Polícia do Exército às vezes são lembrados por mim como um só dia que pareceu durar uma eternidade. Depois de muito tempo - mas o que era “muito tempo”? -, comecei a procurar por mim mesmo na pessoa que dormia e acordava no chão daquele lugar odioso cuja imutabilidade impunha-se como prova de que não havia - nunca houvera - outros lugares. Se nunca ver ninguém era um fato que contribuía decisivamente para criar essa impressão, uma outra limitação - que se perpetuou por todo o período da prisão – a intensificava: não ter acesso a espelhos", anota Caetano Veloso em Verdade tropical (1997).
No exílio, o indivíduo afastado de sua Língua, é obrigado a usá-la em conflito com a Língua do lugar onde ele se refugia. O exilado segura uma pedra em brasa nas mãos. Cantor-de-si e estranho aos cantos ao redor, ele canta a vida segurando essa pedra pesada e acesa: a própria (des)identidade? É por isso que as canções de exílio - em geral - são doídas, de tons baixos, voz despida de brilho e calor: uma quase não-voz, porque cantada de um quase não-lugar.
Exemplo disso são as canções do exílio de Caetano Veloso. Compostas em inglês sobre um palimpsesto - pergaminho cujos manuscritos foram apagados para dar lugar a outros manuscritos - brasileiro, tais canções explicitam, na voz de Caetano Veloso, não apenas o estado singular dos sujeitos cancionais, mas também do artista, do indivíduo.
Os movimentos vocais de Caetano inflamam aquilo que as letras dizem e as melodias sugerem. A quase não-voz é entoada para que a conexão com o seu lugar - perdido com o exílio - se mantenha: "Eu não vim aqui / Para ser feliz / Cadê meu sol dourado / E cadê as coisas do meu país?", pergunta o sujeito de "If you hold a stone", de Caetano Veloso, enquanto é amparado e mimado pelo coro (sabiá que melhor gorjeia) cantando "marinheiro só".
Importa lembrar que o canto do sabiá como símbolo de sustentação do indivíduo retorna mais explicitamente na obra de Caetano quando ele grava "Sou seu sabiá" (Noites do Norte, 2000): "Se o mundo for desabar sobre a sua cama / E o medo se aconchegar sob o seu lençol // (...) // Você pode estar tristíssimo no seu quarto / Que eu sempre terei meu jeito de consolar // (...) // Eu sou / Sou seu sabiá / Não importa onde for / Vou te catar / Te vou cantar". Sem o sabiá simbólico, o exilado arranha autocantos: as canções de exílio.
Não é à toa que "If a hold a stone" tenha sido dedicada a Lygia Clark, artista cujo projeto estético singulariza a produção de presença do corpo, da fisicalidade da subjetividade na arte. A participação, a penetração (para usar um termo caro à obra de Hélio Oiticica) do, agora, não-espectador mas parte do objeto, diz muito ao sujeito da canção que vem do exílio.
Unindo a imagem da pedra cantada nos versos em inglês e do arranhar que marca os dias passados na "cela de uma cadeia", o designer Claudio Rocha traduziu, transcriou "If you hold a stone" na pedra-dor onde a letra da canção foi gravada e grafada, fixando os anseios do sujeito no objeto-ícone cantado.
O trabalho de Claudio Rocha ilustra a versão que Sylvio de Oliveira fez de "If you hold a stone". Em Letra - As Canções do Exílio de Caetano Veloso (2008), Sylvio recria os temas com o coração na boca. Sylvio performatiza os sujeitos cancionais com o corpo todo através da garganta sufocada, cheia de pregnâncias do despertencer, dos sons guturais e da voz densa e amargurada. Aqui o berro no escuro apocalítico, o peso da pedra-oráculo, o excesso de não-lugar, de aturdimento rítmico, de nó-no-peito oferecem o tom do canto que presentifica o corpo-todo do indivíduo em exílio. "If a hold a stone" abre o disco, o projeto.
O contrário, ou melhor, o reverso acontece nos tons que Alexia Bomtempo (I just happen to be here, 2012) encontrou para cantar as canções em inglês de Caetano Veloso. E "If you a hold a stone" fecha o disco, em voz e violão. E a valorização do silêncio, da introspecção tem lugar na voz da cantora de dupla nacionalidade. Ou seja, o não-pertencer já não é mais uma questão, mas a fronteira, o entre, o meio.
De lá e de cá, a voz de Alexia Bomtempo se aquieta para entender as identidades dos sujeitos cantados. Os sujeitos cantados por Alexia carregam a pedra-lágrima. E o silêncio, a respiração busca o reconhecimento de sujeitos cancionais desentendidos.
"O primeiro esforço no sentido de me reconhecer em mim mesmo se deu na forma de uma tentativa de chorar: se eu estava em tão má situação, se me tinham afastado bruscamente da mulher com quem me casara havia apenas um ano, se não podia ver o apartamento que mal começáramos a arrumar, se me jogaram sobre um cobertor áspero e jornais velhos, se ninguém ouvia minhas perguntas, certamente seria suficiente que me concentrasse em tais constatações para que lágrimas começassem a correr, soluços e espasmos me sacudissem. Mas não. Essa intimidade do espírito com o corpo que o pranto propicia era-me negada", anotou Caetano sobre a prisão antes do exílio.
"If you hold a stone" na voz de Alexia Bomtempo é a lágrima que escorre do rosto invisível de um desesperançado, do artista cujo único amparo está no violão que acompanha sua voz. Aqui, a desempatia consigo mesmo que o sujeito canta - o não gostar-de-si, recebe desenhos imagéticos perfeitos. E servem de acalanto: canção de ninar.
Alexia carrega a pedra-sabiá nas mãos, na voz. O "if you" se descola da primeira pessoa do discurso - como no caso das versões do próprio Caetano e de Sylvio - para efetivamente evocar a segunda pessoa: o outro, o alheamento. Alexia canta a dor do outro, em si. E o único verso possível de ser cantado em português é "Eu não tenho amor".
O sujeito que Alexia recria entende e traduz na voz as palavras do cancionista quando este anota em seu livro de memórias: "Nós, os tropicalistas, diferentemente de muitos amigos nossos da esquerda mais ingênua, que pareciam crer que os militares tinham vindo de Marte, sempre estivemos dispostos a encarar a ditadura como uma expressão do Brasil. Isso aumentava nosso sofrimento, mas hoje sustenta o que parece ser meu otimismo. É que penso e ajo como se soubesse na carne quais as potencialidades verdadeiras do Brasil, por ter entrado num diálogo com suas motivações profundas - e simplesmente não concluo que somos um mero fracasso fatal".
Na fronteira, também tristíssima, em estado de não-pertencimento, a voz que Alexia entoa transita com cuidado pelo não-lugar. Talvez para não deixar a pedra-enigma - "You’ll never be late / To understand" - cair. Talvez para romper frestas solares, de consolo. Entre o sim e o não, talvez.
O contrário, ou melhor, o reverso acontece nos tons que Alexia Bomtempo (I just happen to be here, 2012) encontrou para cantar as canções em inglês de Caetano Veloso. E "If you a hold a stone" fecha o disco, em voz e violão. E a valorização do silêncio, da introspecção tem lugar na voz da cantora de dupla nacionalidade. Ou seja, o não-pertencer já não é mais uma questão, mas a fronteira, o entre, o meio.
De lá e de cá, a voz de Alexia Bomtempo se aquieta para entender as identidades dos sujeitos cantados. Os sujeitos cantados por Alexia carregam a pedra-lágrima. E o silêncio, a respiração busca o reconhecimento de sujeitos cancionais desentendidos.
"O primeiro esforço no sentido de me reconhecer em mim mesmo se deu na forma de uma tentativa de chorar: se eu estava em tão má situação, se me tinham afastado bruscamente da mulher com quem me casara havia apenas um ano, se não podia ver o apartamento que mal começáramos a arrumar, se me jogaram sobre um cobertor áspero e jornais velhos, se ninguém ouvia minhas perguntas, certamente seria suficiente que me concentrasse em tais constatações para que lágrimas começassem a correr, soluços e espasmos me sacudissem. Mas não. Essa intimidade do espírito com o corpo que o pranto propicia era-me negada", anotou Caetano sobre a prisão antes do exílio.
"If you hold a stone" na voz de Alexia Bomtempo é a lágrima que escorre do rosto invisível de um desesperançado, do artista cujo único amparo está no violão que acompanha sua voz. Aqui, a desempatia consigo mesmo que o sujeito canta - o não gostar-de-si, recebe desenhos imagéticos perfeitos. E servem de acalanto: canção de ninar.
Alexia carrega a pedra-sabiá nas mãos, na voz. O "if you" se descola da primeira pessoa do discurso - como no caso das versões do próprio Caetano e de Sylvio - para efetivamente evocar a segunda pessoa: o outro, o alheamento. Alexia canta a dor do outro, em si. E o único verso possível de ser cantado em português é "Eu não tenho amor".
O sujeito que Alexia recria entende e traduz na voz as palavras do cancionista quando este anota em seu livro de memórias: "Nós, os tropicalistas, diferentemente de muitos amigos nossos da esquerda mais ingênua, que pareciam crer que os militares tinham vindo de Marte, sempre estivemos dispostos a encarar a ditadura como uma expressão do Brasil. Isso aumentava nosso sofrimento, mas hoje sustenta o que parece ser meu otimismo. É que penso e ajo como se soubesse na carne quais as potencialidades verdadeiras do Brasil, por ter entrado num diálogo com suas motivações profundas - e simplesmente não concluo que somos um mero fracasso fatal".
Na fronteira, também tristíssima, em estado de não-pertencimento, a voz que Alexia entoa transita com cuidado pelo não-lugar. Talvez para não deixar a pedra-enigma - "You’ll never be late / To understand" - cair. Talvez para romper frestas solares, de consolo. Entre o sim e o não, talvez.
***
If you hold a stone
(Caetano Veloso)
If you hold a stone
Hold it in your hand
If you feel the weight
You’ll never be late
To understand
Mas eu não sou daqui
Eu não tenho amor
(Caetano Veloso)
If you hold a stone
Hold it in your hand
If you feel the weight
You’ll never be late
To understand
Mas eu não sou daqui
Eu não tenho amor