Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
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30 julho 2023
Do canto e do silêncio das sereias
O livro DO CANTO E DO SILÊNCIO DAS SEREIAS é "um ensaio à luz da teoria da narração de Walter Benjamin". E é mais. Tornou-se meu livro de cabeceira, de referência, desde que chegou a mim, quando eu terminava de escrever a minha tese de doutoramento. Foi uma revolução nas minhas hipóteses. Eu queria começar do zero. Não dava tempo. Desde então, leio, releio, cito o livro de Luís Inácio Oliveira. O livro apresenta de modo superiormente didático-histórico-crítico-contextual grande parte do que (me) interessa no pensamento de Homero, Adorno, Benjamin, Kafka, Blanchot, ou seja, tenta perceber o que quer e o que pode a Sereia - essa metáfora do que "Ar no ar, / pedra sobre pedra, / inacessível ao perecível e à podridão, / irradiante / eleva-se sobre os séculos / a oficina humana da ressurreição", como lemos no poema "Sobre isto" de Maiakóvski. A Sereia guarda a matéria fina: a vida de quem tem os ouvidos livres para ouvir seu canto (e silêncio). O livro de Luís Inácio Oliveira reelabora isso ao investigar a presença da Sereia na modernidade, quando tapamos o ouvido, ou fazemos ouvidos moucos, à vida "mais real", porque estetizada. "Uma tradição se degrada quando já não oferece sentidos reconhecíveis e confiáveis, quando já não possibilita a comunicação do presente com o passado. Uma tradição em agonia pode, contudo, buscar subsistir como repetição vazia de sentido num derradeiro e desesperado esforço por preservar algo de um passado referencial contra o desamparo e o desabrigo de um presente que não dispõe de vínculos de sentido com a experiência que o antecedeu", escreve Luís Inácio Oliveira. Se "Da podridão / As sereias / Anunciarão as searas", como poetou Oswald de Andrade, é do ruído-podridão moderno que o livro DO CANTO E DO SILÊNCIO DAS SEREIAS retira e ilumina suas hipóteses sobre tradição e ruptura da narração (e narrativa) humana.
23 julho 2023
Nós somos muitas
"Já que sou brasileiro / E que o som do pandeiro é certeiro e tem direção / Já que subi nesse ringue / E o país do suingue é o país da contradição", canta Lenine em "Jack soul brasileiro". Pensar o Brasil do lugar desse ringue, entre suingue e contradição requer rigor e humor, mirada e visagem, acionando sim a fundamental personificação mítica do país. É daí que falam os textos do livro NÓS SOMOS MUITAS, que reúne "ensaios sobre crise, cultura e esperança". De fato, é equilibrando diagnóstico, metáfora e terapêutica que Pedro Meira Monteiro pensa o Brasil. Pensa porque experimenta, pois cada texto é o desdobramento de um trânsito, de uma transição - Bahia, Lisboa, Princeton. Não posta, mas sugerida, há uma pergunta que atravessa e amarra os textos: por que o Brasil tarda a ser o que é? A pergunta, como sabemos, mobilizou modernistas e tropicalistas. E é a reverberação dos gestos éticos e estéticos desses o que anina o pensamento de Pedro - "a dança, a muganga, o dengo". Daí porque cruzar Nietzsche, Piglia, Hatoum, Caetano, Wisnik, Zé Celso, Candido, Strauss, entre outros criadores-pensadores que enfrentam o "nós" que somos com sensíveis e firmes gestos e jeitos de corpo. E nós somos muitas, diz o título do livro. Título vindo da conversa entre o autor e Rosi, uma cabo-verdiana trabalhando em Lisboa. Para quem e por quem escrever-pensar? Eis outra pergunta que o autor de NÓS SOMOS MUITAS sugere, enfrentando, do ringue, a quebra de idealizações intelectuais do outro, da outra. "Quando ao 'outro' cabe simplesmente responder ao meu desejo, o limite político que se estabelece é o da morte, o da completa anulação daquele sujeito cujo corpo deve ser preenchido com todos os objetos da minha fantasia", escreve Pedro num dos textos que, por motivos de pesquisa, mais me falou diretamente. Ao fim, o livro convida a pensar com e a cantar para quem faz do coco um cocar. Quem se dispõe?
16 julho 2023
Candomblé de rua - O Bembé de Santo Amaro
Quando Caetano Veloso canta "Dia 13 de maio em Santo Amaro / Na Praça do Mercado / Os pretos celebravam / (Talvez hoje ainda o façam) / O fim da escravidão / Da escravidão / O fim da escravidão" evoca cenas vistas desde a infância em Santo Amaro da Purificação, evoca o Bembé do Mercado, festa negro-brasileira que acontece todo dia 13 de maio desde 1889, um ano após a tal assinatura de Zabé. Tradição engendrada pelo babalorixá João de Obá, Patrimônio Imaterial do Estado da Bahia, o Bembé do Mercado tem seus ritos e mitemas registrados em texto e imagens no livro CANDOMBLÉ DE RUA - O BEMBÉ DE SANTO AMARO, de Jorge Velloso. São textos e imagens que permitem a quem lê perceber as mudanças que a festa sofreu para que ela continuasse sendo festa: fresta no horror que foi (e é) a escravidão. "Tanta pindoba / Lembro do aluá / Lembro da maniçoba / Foguetes no ar", continua a canção de Caetano. Novas subjetividades e perspectivas se misturaram e ressignificaram o gesto político de Zabé. A festa saúda ou salda a princesa? Sendo a fé na celebração, o livro, que tem Apresentação assinada por Maria Bethânia, é um excelente documento de pesquisa para quem quer pensar as complexidades e as encruzilhadas da gente de um lugar onde “Zabé come Zumbi / Zumbi come Zabé”, como canta também Caetano noutra canção; de um Brasil que se realiza, pulsa, canta, chora e ri, à margem do Brazil. Leio, vejo as fotos do livro e lembro, por exemplo, do ethos do gaio saber da missa na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, do cheiro da Feira de São Joaquim, da baiana com cesto na cabeça num azulejo seiscentista do antigo Convento de Santa Teresa, hoje Museu de Arte Sacra, na cidade de Salvador. Tudo numa Bahia que, sem romantizar sua história, mas, pelo contrário, encarando essa história de frente, tem um jeito de Terra, chão, rua.
09 julho 2023
Forma e formação
Quando dois mestres conversam, a escuta do aprendiz é fundamental para a formação deste. É meu gesto durante a leitura e releitura de FORMA E FORMAÇÃO, livro resultado de uma conversa sobre a canção popular entre Luiz Tatit e Luís Augusto Fischer. Dois dos maiores pensadores disso que "não tem governo, nem nunca terá", mas que, por isso mesmo, guarda um gaio saber estimulador à reflexão, à crítica: s canção popular. Cada um a seu modo, Fischer e Tatit vêm desenvolvendo ao longo do tempo instrumentos que mais potencializam do que esquematizam a canção. Professores universitários, ambos ensinam a criar brechas nos muros da academia, pois tensionam "o mundo mais empírico com o mundo das abstrações e teorias", como escreve o não menos mestre mediador da conversa Guto Leite. FORMA E FORMAÇÃO passa em revista mais de três décadas de dedicação à linguagem artística mais popular do Brasil. "Havia uma espécie de comunhão da nossa vida cotidiana com aquela geração de cancionistas, que nos explicavam o mundo e nos educavam esteticamente", diz Fischer. "Lá por 1968-1969, saiu a primeira edição de Balanço da Bossa do Augusto de Campos. Para mim, a leitura dele foi fundamental para perceber como a canção poderia ser um objeto de reflexão", diz Tatit. Da formação individual ao debate sobre a "forma canção", o livro atravessa a história recente do país. Note-se: o livro é obra do Núcleo de Estudos da Canção da UFRGS, o que reforça a força dos desdobramentos do trabalho dos mestres. Se "de tudo se faz canção", como dizem Milton, Lô e Márcio, quem faz da canção objeto de trabalho precisa "atender ao mundo orecular" com um rigor específico - passar da fruição à reflexão. Com a generosidade dos mestres que são, Tatit e Fischer partilham as estratégias e os procedimentos para fazer isso.
02 julho 2023
Leitura de poesia
Reforço sempre: é cada vez mais raro encontrar textos que analisam poemas equilibrando ética e estética, forma e conteúdo. Entende-se que, no Brasil, as questões sócio-políticas se sobreponham sempre, mas é frustrante, no mínimo, que aquilo que caracteriza o poema, ou seja, o trabalho com a linguagem, fazer a linguagem "errar", seja desconsiderado na hora da leitura crítica do poema. Esse trabalho exige reflexão, é isso que faz o pensamento pensar. Pois, frequentemente, esquece-se que debater estética é debater ética. Por isso, mas não apenas, é sempre bom reler um livro como LEITURA DE POESIA, organizado por Alfredo Bosi, autor do incontornável, sobre o mesmo tema, "O ser e o tempo da poesia". Lançado em 1996, LEITURA DE POESIA reúne leitores críticos acadêmicos, a fim de tratar poemas de poetas do cânone - de Mário a Cabral, por exemplo, passando por Bandeira. Salvo "Cajuína", canção de Caetano Veloso, que recebe interpretação inspiradora de José Miguel Wisnik. Ao colocar esse texto no livro, Alfredo Bosi confronta a antiga, mas recorrente, querela entre poema de canção e poema de livro. Wisnik transcende a querela, evidentemente. De fato, cada convidado do livro mostra modos de leituras, possibilidades de entrada e saída do poema escolhido para ler. "O projeto do livro tem uma dupla dimensão: crítica, isto é, valorativa, enquanto os ensaístas se detiveram em textos que lhes pareceram dignos de atenção; e pedagógica, na medida em que se constata em esforço de tornar acessível a jovens iniciantes nas Letras a linguagem complexa da análise e da interpretação do poema", escreve Bosi na nota introdutória desse livro de cabeceira de quem lê, trabalho com, faz poesia.
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