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29 setembro 2024

Efrain Almeida


A obra de Efrain Almeida comove desde o primeiro contato. O lirismo de suas esculturas remete-nos a uma quietude anterior à civilização (à destruição do "natural") e a um universo mitológico irrestituíveis. Suas peças são ex-votos à natureza das coisas e do ser - sejam os passarinhos e insetos que parecem empalhados espalhados no chão cru de uma galeria, sejam os colibris cujo voo estaciona porque o bico está preso. Esse lirismo evoca o interior de um Brasil tropical e desértico, vasto, preservado na memória de quem experimentou o lugar geográfico chamado Norte-Nordeste. A artesania irreprodutível das autoesculturas do artista, que de tão mínimas lembram o tamanho do Homem diante da imensidão da existência coletiva, traduz os biografemas relacionados ao corpo, à sexualidade e à religião de quem habitou esse lugar. "Sobre o lado ímpar da memória  / o anjo da guarda esqueceu / perguntas que não se respondem", escreveu João Cabral. Por isso, não há saudosismo nem desejo ingênuo de restituição, mas sim gesto contundente com foco no silêncio preso nas gargantas ruidosas na modernidade. "Assentados de modo esparso sobre paredes amplas, bases largas ou folhas brancas, esses trabalhos têm o tamanho do que a mão acolhe e solicitam a aproximação do olho para serem vistos. Voltados para o espectador em busca de cumplicidade, parecem entregar sempre algo - ou a si mesmos - em oferenda, assumindo um tom confessional e sedutor que confunde - de modo medido e insinuado, mas insistente - religiosidade e erotismo", escreve Moacir dos Anjos no texto monográfico que compõe o livro EFRAIN ALMEIDA lançado pela Cobogó em 2010 com imagens dessa obra até aquele momento. E Efrain continuou criando e inventando até 2024. Ocupando galerias, bienais, feiras e demais espaços do mercado de arte, as peças (os pedaços) de Efrain Almeida focam na vigília daquilo que não cabe nesses lugares de consagração. "Eu preciso de minhas memórias. Elas são meus documentos. Eu as vigio", diz Louise Borgeois na epígrafe do livro - dando-nos a chave para essa poética cúmplice do "lado ímpar da memória", singular, autoral, comovente.

22 setembro 2024

Ar de provença


Sempre que Augusto de Campos assina algo toda uma imensa tradição de poesia se movimenta junto, oxigenando o labor com (e a reflexão sobre) a palavra poética. E a relação de Augusto com a tradição tem raízes profundas na música. Por exemplo, foi de texto de canção do trovador provençal Arnaut Daniel que os poetas concretos brasileiros pinçaram e ressignificaram o termo "noigrandes" - "(...) olors de noigandres" característica de flor [de noz moscada?] cujo perfume liberta-nos do tédio [olors (perfume), enoi (tédio), gandres (do verbo gandir, libertar)]. Incorporado ao vocabulário e à prática poética, o termo deu nome à revista que Augusto, Haroldo de Campos e Décio Pignatari editaram em 1952 e ao grupo depois composto também por Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald. Desde então, Augusto de Campos tem desempenhado o trabalho de revocalizar (recolocar na voz; transcriar) textos que, vocais em seus contextos de criação, hoje acessamos apenas impressos nas páginas de livros raros. AR DE PROVENÇA é exemplo disso. No CD encartado ou por Código QR podemos ouvir cantos (na voz de Antoni Rossell) e oralizações (na voz de Augusto) de duas canções de Arnaut Daniel (que "adotou um modo de trovar em rimas raras, razão por que suas canções não são fáceis de entender nem de aprender"), uma de Marcabru ("temido pela sua língua, pois dele era tanto o maldizer") e uma de Bernart de Ventadorn ("pobre de nascimento (...) sabia cantar e trovar bem e tornou-se cortês e instruído") - todas traduzidas por Augusto de Campos. A bela edição que a editora Cobalto preparou para AR DE PROVENÇA reedita textos, traduções, intraduções e imagens singulares para a compreensão da poesia inventiva e experimental brasileira. Destaquem-se ainda a flauta de Valeria Bittar, a rabeca de Luiz Fiaminghi e a parceira sempre potencializadora de belezas entre Augusto e o produtor musical Cid Campos.

01 setembro 2024

Jardim botânico


Nuno Ramos é artista polivalente. Em tese de doutorado recém defendida, Carlos Gomes de Oliveira Filho observou que na obra de Nuno Ramos encontramos "a presença de uma matéria-canção enquanto dispositivo crítico que distende as fronteiras presentes nos diversos campos artísticos e nos consequentes sistemas culturais em que essa matéria circula". Isso diz bastante do livro de poema JARDIM BOTÂNICO. Aqui vozes que muitas das vezes aparecem em itálico (sendo ou não citação direta de algum outro texto de terceiros) se infiltram e compõem a voz do sujeito poemático que dramatiza a própria partilha da escrita: "Minha incapacidade de morrer / povoa o tempo com palavras", lemos. E são palavras (o nome de) o que, na ausência das plantas, povoam as página do livro. "Aqui os nomes das plantas / crescem no lugar das plantas", dizem os dois primeiros versos de JARDIM BOTÂNICO. A imagem de uma onça queimada atravessa o livro em que cada poema parece desdobrar, redobrar o poema anterior. Ao ponto de, ao final, o escritor recolher muitos dos fragmentos de imagens proliferadas (semeadas) ao longo do texto, do jardim (selvagem, do mal). "O que temos então diante de nós é um solilóquio corajoso em que o poeta se embrenha a questionar-se sobre o valor e o sentido de suas próprias vivências", escreve Leonardo Fróes na orelha do livro. Qual é o papel do artista num mundo em que a jangada salva-vidas é de garrafas pet, esse elemento da natureza moderna? "De que fala este poema? / Essa é a pergunta, Nuno", escreve o poeta inscrito na escrita. Quem é leitor da obra de Nuno Ramos vai identificar algumas recorrências temáticas, como a referência ao "pau", ao sexo físico. A reflexão sobre o homo sapiens macho e "seu medo medonho de não ter uma voz" se mantem como uma questão da poética do escritor. "A vida que te deram era grátis, Nuno, nenhum preço a pagar", lemos aqui; "à palavra excitada / ereta, lubrificada / pronta pra enfiar / a mensagem na orelha da vítima", lemos ali. JARDIM BOTÂNICO é aquilo que numa "folha pousa / na prosa medrosa dos meus versos"; é a matéria-canção excrítica e escrítica do agora expandido, "onde letra e matéria dão match". E onde "eu era a onça queimada".