Poeta
de uma época em que a ideia de autoria ainda não estava configurada, posto que
o eu (corpo individual) vivia na movência discursiva, diluído no corpo místico
anônimo e coletivizado administrado pela Igreja-Estado, Gregório de Matos faz
de “Mortal loucura” um libelo à moral de então: “Quem do mundo a mortal loucura
... cura, / A vontade de Deus sagrada ... agrada”.
“Sendo
produtos de práticas fundamentadas na metafísica escolástica, as letras
coloniais não conhecem a divisão dos regimes discursivos posteriores ao
Iluminismo”, anota o professor João Adolfo Hansen. E completa: “Em todos os
discursos que examinei, encontrei a mímese aristotélica, a definição
escolástica da pessoa, a teologia-política católica, a tópica da ‘razão de
Estado’, a ética cristã e um fortíssimo sentido providencialista da história”.
A
didascália (ou cabeçalho) que hoje acompanha o citado poema de Gregório reforça
a intenção moralizante: “No sermão que pregou na Madre de Deus D. João Franco
de Oliveira pondera o poeta a fragilidade humana”. E se o humano é frágil, cabe
a quem Deus deu o cuidado dos homens pregar a cura da mortal loucura: a usura,
a cobrança pelo uso (indevido) das coisas de Deus. Daí o “cuidar de si”,
sugerido no poema. “Quem não cuida de si, que é terra, ... erra” e, mesmo
amados pelo “alto Rei”, devemos desaferrar os desejos terrenos e atar nossas
vidas à vontade de Deus.
O
uso da flor como símbolo da efemeridade da vida é bastante recorrente na poesia
atribuída a Gregório de Matos: “É a vaidade, Fábio, nesta vida, / Rosa que da
manhã lisonjeada / (...) / Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa / De que
importa, se aguarda sem defesa / Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?”,
diz noutro poema. A flor murcha, a juventude passa, o viço esvai, a vaidade é
inútil. “Gozai, gozai da flor da formosura, / Antes que o frio da madura idade
/ Tronco deixe despido, o que é verdura”, canta noutro soneto. Para que
vaidade, se “no fim desta jornada” a “flor da formosura” será nada?
O
soneto de Gregório não tem título. Mas não foi à toa que José Miguel Wisnik
intitulou a canção – a poesia musicada – de “Mortal loucura” (Onqotô, 2005). É em torno dessa ideia
que os versos desdobrados em eco giram numa espiral ascendente que figurativizam
as ladainhas católicas, seus monocórdios tons, e iconizam o sacral.
Originalmente
cantadas, já que Gregório não publicou livros, aliás, reza a lenda que ele
vivia a cantar suas poesias acompanhado de uma guitarra rústica, as palavras do
poeta demandam voz. Caetano Veloso, parceiro de Wisnik no disco Onqotô (disco feito sob encomenda para
o Grupo Corpo), musicou o soneto “Triste Bahia”, incorporando à poesia de
Gregório de Matos ritmos e citações musicais do folclore e do domínio público
da Bahia. Caetano atualizou a “Triste Bahia” para os anos de repressão política
e estética. O disco Transa é do
período do exílio de Caetano.
Por
sua vez, já tendo sido cantada por Lívia Nestrovski (Duo, 2012), Mônica Salmaso (Alma
lírica brasileira, 2011), José Miguel Wisnik (Indivisível, 2011) e Izabel Padovani (Mosaico, 2008), “Mortal loucura” agora figura na trilha sonora da
telenovela Velho Chico (2016), na voz de Maria Bethânia.
A modulação vocálica de Bethânia intensifica a intenção educadora dos versos do poema e estão a serviço da mensagem da letra da canção. No segundo terceto, temos o verso-chave: “Ó voz zelosa, que dobrada ... brada”. Nos dois tercetos, a cantora alonga ainda mais as vogais, aumenta a emissão vocal, dobrando a altura da voz, oitava acima, subindo aos céus o canto ao “alto Rei” – oração que desaterra a terra. Forma é conteúdo.
Com uma ambiência sonora composta por Marcio Arantes (baixo synth e guitarras), Siba (rabeca), Guilherme Kastrup (percussão) e Paulinho Dalfin (viola caipira), a atual versão de “Mortal loucura” devolve o poema de Gregório de Matos à Bahia colonial, arcaica, medieval e Popular (com P). Para isso, importa atentar para as variações modais da rabeca, suas vibrações interioranas, em contraste com o baixo synth e as guitarras do litoral. É dessa sintaxe sonora complexa, desse dualismo estésico que canta Gregório: um poeta cantor. Repentista? Precursor do rap?
A modulação vocálica de Bethânia intensifica a intenção educadora dos versos do poema e estão a serviço da mensagem da letra da canção. No segundo terceto, temos o verso-chave: “Ó voz zelosa, que dobrada ... brada”. Nos dois tercetos, a cantora alonga ainda mais as vogais, aumenta a emissão vocal, dobrando a altura da voz, oitava acima, subindo aos céus o canto ao “alto Rei” – oração que desaterra a terra. Forma é conteúdo.
Com uma ambiência sonora composta por Marcio Arantes (baixo synth e guitarras), Siba (rabeca), Guilherme Kastrup (percussão) e Paulinho Dalfin (viola caipira), a atual versão de “Mortal loucura” devolve o poema de Gregório de Matos à Bahia colonial, arcaica, medieval e Popular (com P). Para isso, importa atentar para as variações modais da rabeca, suas vibrações interioranas, em contraste com o baixo synth e as guitarras do litoral. É dessa sintaxe sonora complexa, desse dualismo estésico que canta Gregório: um poeta cantor. Repentista? Precursor do rap?
Seja
como for, a versão cantada por Bethânia, adensando elementos já sinalizados na
versão de Mônica Salmaso, expõe o jogo do humano entre o antro e o
teocentrismo. O humano cindido entre o Estado e o estado-de-coisas individuais.
Questão importante para uma telenovela que trata de um Brasil antigo, colonial,
de um tempo em que a família, a terra e a propriedade asseguravam a manutenção
da existência do “homem de bem”.
E
se a música cura, a voz da menina de Oiá, daquela que
resignificou o uso da poesia escrita nos palcos da poesia cantada é o unguento
necessário para a preservação da “flor da formosura”, da juventude, do viço, do
novo que sempre vem, do novo que permanece novo, transpassando os tempos.
***
(Gregório
de Matos / José Miguel Wisnik)
Na
oração, que desaterra......... a terra (aterra),
Quer
Deus que a quem está o cuidado.... dado,
Pregue
que a vida é emprestado........... estado,
Mistérios
mil, que desenterra.............. enterra.
Quem
não cuida de si, que é terra,.......... erra,
Que
o alto Rei, por afamado............... amado,
É
quem lhe assiste ao desvelado............. lado,
Da
morte ao ar não desaferra,.............. aferra.
Quem
do mundo a mortal loucura.......... cura,
A
vontade de Deus sagrada.................. agrada
Firmar-lhe
a vida em atadura................. dura.
Ó
voz zelosa, que dobrada..................... brada,
Já
sei que a flor da formosura,............... usura,
Será no fim desta
jornada....................... nada.