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23 fevereiro 2012

Entre o amor e o mar

Rainha do mar, Iemanjá é a grande mãe dos orixás. Seus mitemas se hibridizam com os de algumas santas católicas e ela recebe homenagens em diferentes datas durante o ano. No Brasil, sincretizada com Maria, mãe do Cristianismo, Iemanjá é uma das entidades não-católicas mais reverenciada, comentada, cantada.
Senhora de muitos nomes - "Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá, Inaê, Sereia, Mucunã, Maria" -, podemos dizer que, dentro da história de nossa canção popular, Iemanjá é a musa inspiradora dos cancionistas: cantada e evocada em muitas canções. Musa e sereia.
Importa registrar que nem todos os devotos e admiradores de Iemanjá, em especial os de descendêncianagô, reconhecem a mistura da imagem do orixá ligada às figuras das sereias, tidas como europeias e/ou ameríndias.
Enquanto as sereias atrairiam para a morte, Iemanjá protege, ilumina - eis o principal argumento. Deste modo, o rabo de peixe e os longos cabelos são elementos da sereia europeia - e da Iaraamazônica - e estariam distantes da deusa africana, nagô. Na verdade, é difícil encontrar a representação de Iemanjá-sereia nas casas.
No entanto, mesmo entendendo e respeitando a crença e a cultura, para fins estéticos e teóricos, aqui, Iemanjá é a grande sereia, por ajudar seu ouvinte a matar o homem velho (de antes do contato com o canto sedutor e cheio de ânima) e por deixar vir à tona o homem novo: consciente-de-si.
E aqui a frase de João Guimarães Rosa em Tutameia ganha importante sentido, pois revela este sujeito lúcido: "O que um dia eu vou saber não sabendo eu já sabia". Ou seja, na canção sirênica - e aqui Iemanjá pode envaidecer-se de sua voz - há a revelação, o espanto do óbvio ocultado o tempo todo dentro do sujeito, do indivíduo.
Resultado da mistura ameríndia, africana e europeia, a Iemanjá brasileira é doce e justa. Alodê, Odofiaba, Minha-mãe, Mãe-d'água, Odoyá é evocada (cantada) para cantar o ouvinte localizado entre as fontes de vida (das novidades) e de morte (do em desuso).
É deste lugar entranhado de maresia que surge o sujeito da canção "Entre o amor e o mar", de NáOzzetti e LuizTatit, consciente de que entre o amor e o mar há a canção, o canto, a voz de alguém cantando - mantendo memórias conservadas no sal marinho, nas águas doces. Eis Iemanjá: a portadora do canto-beijo-luz.
O sujeito da canção se instala neste lugar sonoro, engendrado em sua própria voz, a fim de criar, ficcionalizar a vida que deseja. "Eu que inventei esta ocasião / de contemplar o mar", diz. E se emociona e se entrega: "Quem vê meus olhos a marejar / sabe que vejo Iemanjá / que estou ouvindo a voz do mar / e que estou indo jajá", quando o canto acabar.
Há que se comentar duas versões diferentes e complementares desta canção: a de Jussara Silveira (Entre o amor e o mar, 2006) e a de Ná Ozzetti (Meu quintal, 2011). Ambas, duas sereias espantadas com as potências do próprio canto, com a epifania que o canto promove.
Na versão de Ná, o som de vassourinhas arranhando a bateria cria a sensação do marulho e figurativiza o som marítimo, enquanto que na versão de Jussara, o som da harpa remete o ouvinte às cordas de Orfeu e ao silêncio das sereias.
Como sabemos, Orfeu usava a lira que ganhou de Apolo, entre outras coisas, para acalmar brigas. Fez isso entre os argonautas. E, na viagem de volta da trupe de Jasão em busca do tosão de ouro, Orfeu salvou os tripulantes quando silenciou as sereias com o som da lira.
Ou seja, na versão de Jussara, a voz sirênica não se cala diante do som das cordas, pelo contrário: cria um diálogo cancional encantador, ancorado na base de piano. Para isso, Jussara precisa "dizer" nota por nota e sustentar as frases no vibrato: acelerando e desacelerando a paixão na voz.
Ná Ozzetti, em contrapartida, entoa um canto fluido, mais livre para diluir algumas marcações da harmonia. Ela escolhe por valorizar silêncios e dramatizar a cena descrita na letra da canção. E as terminações curtas das frases auxiliam isso.
Extasiado e passional, o sujeito criado no gesto vocal de Ná Ozzetti evidencia o discurso da canção, aproximando-se do ouvinte que lhe vê com olhos a marejar diante de Iemanjá, ouvindo a voz do mar - que Ná traduz na seleção dos instrumentos usados.
É no gesto de cantar, na produção da presença-de-si que o sujeito desta canção investe. Ele faz um elogio aos cancionistas, seus irmãos. O sujeito é todo entrega à sua função no mundo, no mar sonoro circularmente ficcionalizado e inventado - "como se fosse um lar" - a cada (re)canto. A sua lei, a sua questão de cantor é saber que "o que um dia eu vou saber não sabendo eu já sabia".
"Onda pára na pedra / Pedra não segura mar / Quem segura mar é lua / Num agrado pra Iemanjá", canta o rapperCriolo, acompanhado pelo bloco afro IlêAiyê. Neosereia, o sujeito de "Entre o amor e o mar" também é "almirante de nossa Senhora Iemanjá", como diz o samba-enredo da Portela (2012): "... e o povo na rua cantando. É feito uma reza, um ritual".

***

Entre o amor e o mar
(Ná Ozzetti / Luiz Tatit)

eu que inventei este lugar
entre o amor e o mar
como se fosse um lar
pra eu me instalar

eu que inventei esta ocasião
de contemplar o mar
até a espuma brilhar
e a visão embaralhar

antes da gota pingar
meu jeito de amar o mar
modulando o olhar ondulando
deixando o corpo molhar

quem vê meus olhos a marejar
sabe que vejo iemanjá
que estou ouvindo a voz do mar
e que estou indo jajá

16 fevereiro 2012

Sereia

Empunhando pente (domando os cabelos desgrenhados, animalizados, geniais) e espelho (vaidades, ilusão, ficção), as sereias se forjam sensuais. Com os signos do mito já deslocados por certa ideologia urdida na Idade Média que tem a mulher como a portadora do dom de iludir, as iaras se distanciam das tenebrosas sereias homéricas. Ou melhor, agregam ao canto irresistível, a beleza física sedutora.
Esse percurso traz consequências: a mais negativa é a desvocalização do logos - um processo amparado pela "surdez" da filosofia, de Platão a Derrida, que teme os efeitos da mistura da palavra com o som, com a voz inimitável.
A sereia passa a ser sinônimo de mulher muito bonita, encantadora e fatal. Mas não perde sua ligação com mitos fundadores de criação e de proteção. É o caso de Iemanjá, Iara, Dona Janaína.
Mas a sereia é, antes de tudo, a voz que relata aquilo que ouviu da musa. Para o cancionista (neosereia), a canção é a musa. Assim como a poesia é a musa do poeta. Musa "libérrima e audaz" a inspirar o canto, o poema. O cancionista é a sereia da sereia e, de viés, do ouvinte.
No disco Caravana sereia bloom (2012), a cantora Céu reposiciona o mito: desenha no imaginário do ouvinte aquilo que tenho chamado de neosereia. Primeiro porque Céu é o nome sirênico (artístico, performático) de Maria Poças, um nome a serviço do cantar, uma persona cancional. Maria Poças é e não é Céu - preserva e revela intimidades de uma e da outra. Ela morre para viver com Iemanjá - arquétipo de anima.
Segundo porque a cantora está atenta à itinerância das canções. Sabe que em tempos de mobilidade pode ter seu canto acessado ao prazer do desejo do ouvinte e quer ir indo: "O vento é um menino bulindo com a gente", canta.
E terceiro porque na canção "Sereia", de Céu, o sujeito diz: "Sereia do mar / Me conta o teu segredo / Do teu canto tão bonito / Prometo não espalhar". Ora, é na sereia do mar - na poesia, na canção - que Céu busca os elementos de seu canto. Ao evocar a musa-sereia, Céu é aedo de acontecimentos, é neosereia.
É interessante notar que "Sereia" entra no disco como uma vinheta atravessando as canções e se revelando como o núcleo luminoso da proposta de Caravana sereia bloom. Tocado pela sereia do mar, por dona Janaína, pela poesia, pela canção, o sujeito canta: "Sereia do mar / Também sou fruto d'água / Vim do rio doce aprender / O tal do canto que traz / Pra bem perto nosso bem-querer".
A sereia conta aquilo que a musa viu e lhe contou. Ela traduz a história para os ouvidos humanos. A musa guarda o segredo (do acontecimento) sussurrado apenas ao ouvido privilegiado do poeta (do cancionista, da sereia), que compõe um canto sirênico audível ao ouvinte comum. E assim ouvimos o inaudível.
Portanto, nunca é demais distinguir Sereias e Musas. A fim de curiosidade, vale lembrar que, como está registrado em uma das versões do mito (ver Las Sirenas, de MeriLao), ao se atreverem a competir com as Musas, as Sereias tiveram suas penas arrancadas e usadas como coroas.
Filha de Mnemósine, a musa conserva o acontecimento que presenciou e que precisa ser traduzido em canção pelo poeta, cancionista, sereia. A sereia atua tanto na nossa incompetência humana no uso das palavras, quanto na nossa necessidade por canção: palavra cantada na voz de alguém.
A sereia nos fornece verbo, melodia e voz. E, no caso da neosereia, sendo também humana, com seu ouvinte, exposta a semelhantes afetos (agrados e desagrados), é nossa cúmplice e nosso álibi. Iara irmã do indivíduo-ouvinte na existência.
A canção "Sereia" tem letra e programação da própria Céu. Os recursos técnicos auxiliam a cancionista no ato de entoar o canto sirênico. Ecos e reverberações melódicas e vocais criam o clima sedutor, embriagante e propício ao despertar do impulso lúdico.
Tais elucubrações se adensam quando obtemos a informação de que "Sereia" é dedicada a Rosa Nena, filha de Maria Poças. Rosa é a musa (a canção) que canta Céu (a cancionista) que, por sua vez, canta a musa. E são as dobras desse canto que faz Céu ser ainda menina, aproximando-se do desejo do ouvinte.
"Pro ser humano, viver é pouco". Neosereia, Céu se enfeita com batom vermelho, porém, diferente da grande-sereia, não precisa "do espelho do retrovisor para não [se] borrar". Errante, não-divina, ela canta adornada num vestido de paetês-escamas de muitos azuis suas memórias conservadas "no sal do [meu] mar", trazendo para perto o [seu, o nosso] bem-querer.

***

Sereia
(Céu)

Sereia do mar
Me conta o teu segredo
Do teu canto tão bonito
Prometo não espalhar

Sereia do mar
Também sou fruto d'água
Vim do rio doce aprender
O tal do canto que traz
Pra bem perto nosso bem-querer

09 fevereiro 2012

Feira de Mangaio

Um dos grandes benefícios da remasterização sonora é a possibilidade que ela nos dá de contato com artistas e vozes que circularam "presencialmente" por outras épocas. Se a gravação vocal em si já amplia a noção de permanência e presença do artista, cuja voz pode ser acessada ao sabor do prazer do ouvinte, a remasterização traz para nosso redor vozes registradas noutros suportes e técnicas. E isso é maravilhoso. Desperta comparações, promove novas análises e aproximações entre os próprios cancionistas.
Penso nisso quando ouço Rita Ribeiro, em sua cartática performance tecnomacumba, cantar acompanhada por um vigoroso coro os versos "Saia do mar, linda sereia, saia do mar, vem brincar na areia" e me vem à lembrança da imagem de Clara Nunes na TV, sambando à beira mar, com o vento buliçoso balançando seus cabelos soltos. E assim sou levado a pensamentos que só a experiência estética (me) oferece.
A imagem que resulta da sobreposição imaginativa de Carmen Miranda e seu turbante frutal e Clara Nunes e seu chocalho amarrado na canela é reveladora: desperta uma entidade feita de "amor da cabeça aos pés", pura dança e sexo e glória. Tutti-frutti hat e chocalho. Uma portuguesa-brasileira até o último balangandã e uma mineira "filha de Angola, de Ketu e Nagô, de Ogum com Yansã".
Ambas unidas inconsciente e (talvez) involuntariamente numa ação sincrética. Situadas em "um espaço de (mais raramente harmônico que conflituado) de fusões, transfusões e confusões. Espaço de convergências, justaposições, amálgamas, padês", na definição de Antonio Risério para sincretismo, em A Utopia brasileira e os movimentos negros.
Do "tabuleiro da baiana" à "feira de mangaio", há uma cordialidade antropofágica entre os signos de africanidade e europeização. Por isso não entendo quem analisa a mestiçagem no Brasil apenas pelo viés do embranquecimento da cultura afro. Subestimando a capacidade de reinvenção e manutenção dessa cultura.
Guardada no disco Esperança (1979), "Feira de Mangaio", de Sivuca e GlorinhaGadelha, encontra na voz e na persona artística de Clara Nunes a melhor representação. A sofisticação na hibridização dos elementos verbais e melódicos dançam ao ritmo do remelexo de Clara Nunes.
Tal e qual a baiana do acarajé defendida por Carmen Miranda, Clara Nunes aqui é uma feirante a cantar e oferecer suas prendas e lindezas: "Fumo de rolo arreio e cangalha (...) Bolo de milho broa e cocada (...) Pé de moleque, alecrim, canela".
Mas transmutada no sujeito da canção Clara é também uma observadora e cantora da cultura popular (ainda) não mediatizada: cindida entre o urbano e o interior. Como não acreditar (e visualizar a cena) quando ela canta que "tem um sanfoneiro no canto da rua / Fazendo floreio pra gente dançar / Tem Zefa de purcina fazendo renda / E o ronco do fole sem parar"?
Clara Nunes canta tudo com uma verdade (alegria) irresistível. Há uma potência mestiça em mutação na sua performance. "Nossa população nunca foi obrigada a amputar antepassados. É majoritariamente mestiça. E se reconhece como tal", anota Risério. Clara Nunes identificava isso e transformava o Brasil mestiço em objeto estético. Como Carmen também fez a seu tempo.
"Vem desde o tempo da senzala / Do batuque e da cabala / O som que a todo povo embala / E quanto mais o chicote estala / E o povo se encurrala / O som mais forte se propala", diz o sujeito de outra canção do repertório de Clara Nunes intensificando a discussão.
Carmen e Clara deram vida (voz) a sujeitos comuns, interpretaram canções de rápida identificação popular. Para o povo não se desesperar, elas não deixavam de cantar. Duas sereias cantando pelos sete cantos a tolerância, a democracia, o diálogo entre culturas afins, que se desconheciam, mas que se reconhecem.

***

Feira de Mangaio
(Sivuca / Glorinha Gadelha)

Fumo de rolo arreio e cangalha
Eu tenho pra vender, quem quer comprar
Bolo de milho broa e cocada
Eu tenho pra vender, quem quer comprar
Pé de moleque, alecrim, canela

Moleque sai daqui me deixa trabalhar
E Zé saiu correndo pra feira de pássaros
E foi passo-voando pra todo lugar

Tinha uma vendinha no canto da rua
Onde o mangaieiro ia se animar
Tomar uma bicada com lambu assado
E olhar pra Maria do Joá

Cabresto de cavalo e rabichola
Eu tenho pra vender, quem quer comprar
Farinha rapadura e graviola
Eu tenho pra vender, quem quer comprar
Pavio de cadeeiro panela de barro

Menino vou me embora
Tenho que voltar
Xaxar o meu roçado
Que nem boi de carro
Alpargata de arrasto não quer me levar

Porque tem um Sanfoneiro no canto da rua
Fazendo floreio pra gente dançar
Tem Zefa de purcina fazendo renda
E o ronco do fole sem parar

02 fevereiro 2012

Eu não existo sem você

A canção existe na experiência de todo humano. Isso revela sua força e poder de disseminação, tanto pelo modo simples (natural) e fundamental (determinação cultural) de se apresentar no mundo, quanto pela capacidade sofisticada (porque individual em sua produção de sentido) de dizer da unicidade de quem canta (o cantor) e de quem é cantado (o ouvinte).
"Há sempre uma canção para contar / aquela velha história de um desejo / que todas as canções tem pra contar", diz o sujeito de "Fotografia", de Antonio Carlos Jobim. Escaninhos do desejo, a canção - do canto de mitos ao canto mediatizado e comercial - equilibra texto, música e performance em tempo e espaço simultâneos. Sempre no presente (atualizado) à simpatia do corpo irradiado do ouvinte. "As canções / só são canções / quando não são / promessas", diz o sujeito de "Nossa canção", de Zé Miguel Wisnik e Muro Aguiar.
"De onde vem a canção / Quando se materializa / No instante que se encanta", versos da canção "De onde vem a canção", de Lenine, diz com precisão o espanto diante do instante mágico da canção: quando aquelas palavras parecem ter sido feitas para serem cantadas daquele modo.
Todo o trabalho de acomodação, adequação e equilíbrio entre as dimensões da canção (texto, música e voz) feito pelo cancionista visa alcançar a eficácia da canção: o encanto, o mergulho no mar sonoro das sereias, a dança da história do desejo. E é no conjunto operatório que tudo isso se realiza. Mas é na voz que se transmuta em prisma.
Basicamente, se a palavra escrita diz coisas de um modo que a música não pode fazer, a música, por sua vez, tende a exprimir as emoções daquilo que é dito. Mas nada é tão genérico assim. É na performance vocal que as dimensões se afetam mutuamente.
Isso foi historicamente rejeitado pela análise acadêmica de canção que sempre privilegiou o texto. O que é facilmente compreensível já que ainda persiste a ideia de que aquilo que não pode ser isolado (e a palavra escrita pode, e as notas musicais em partituta também) não serve à análise e à transmissão. "No texto está a verdade, a realidade", dizem alguns.
Só na performance vocal é que o logos efetivamente sai pela boca (depois de atravessar o corpo do cantor) e entra pelo ouvido (para atravessar o corpo do ouvinte). Aqui reside a fisicalidade, a concretude da canção. É este logos vocalizado, promovedor de outros e novos sensos e pulsões, o que assusta a certa crítica.
As ações e emoções que teremos diante de cada gesto de cantar e de cada escuta dependem do instante-já cancional. É assim que uma mesma canção pode ganhar sonoridades e práticas diversas quando performatizadas por cantores distintos. É assim também que uma mesma canção, cantada por um mesmo cantor, ganha novos sentidos quando confrontada com momentos temporais diversos.
Não podemos, deste modo, negar o treinamento e os estilos vocais diversos. Muito menos a relação que cada cantor tem com equipamentos e tecnologias. Tudo age sobre a performance e, consequentemente, sobre a recepção e a produção de sentido.
Quando o sujeito da canção "Eu não existo sem você", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, diz que "a canção só tem razão se se cantar" está sintetizando as questões que tratamos aqui. Cantadas por Elizeth Cardoso (Canção do amor demais, 1958) tais palavras tem um sentido. Gravada por Rosa Passos (Rosa, 2006), a canção percorre outros caminhos.
Enquanto Elizeth investe na figurativização e concretude de um sujeito que não se concebe longe do outro, através de alongamentos vocálicos, textura passional e envolvimento somático, a performance vocal de Rosa Passos, mais cool, cheia de economias de vogais e de elegância parece contrastar com aquilo que é dito.
Dito de outro modo, há em "Eu não existo sem você" uma angústia intrínseca irrefreável: "todo grande amor só é bem grande se for triste", diz o sujeito. O título da canção aponta para isso. Aqui, o sujeito é exagerado em sua entrega e na afirmação da dependência afetiva. "Eu nunca mais vou respirar / se você não me notar", parece dizer. Ou "Porque é que tem que ser assim? / Se o meu desejo não tem fim".
O desejo. Eis a diferença entre a performance de Elizeth e a de Rosa. Com mil rosas roubadas, a primeira sente e diz: "Eu não existo longe de você / E a solidão é o meu pior castigo". A segunda investe na recriação técnica e estrutural do modo de cantar a canção: mais contido, sem bandeiras.
Elizeth canta em uníssono com a tristeza do sujeito que ela performatiza. Rosa canta lúcida de cada palavra, cada gesto. Não há uma versão melhor, muito menos pior, do que a outra. Há diferenças, intenções, motivos, caminhos que promovem a ponte entre o cantor e o ouvinte. E nada nesse mundo levará um do outro. Um existe no outro. Afinal, "viver sem ter amor não é viver" e toda forma de amar (e cantar o amor) vale a pena.

***

Eu não existo sem você
(Antônio Carlos Jobim / Vinícius de Moraes)

Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos me encaminham pra você

Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você