A intertextualidade entre a obra de Caetano Veloso e a obra de Oswald de Andrade tem sido bastante comentada na fortuna crítica do cancionista. As referências à obra de Oswald muitas vezes são feitas de forma indireta, aparecem como reminiscências do leitor-cantor. Aliás, a obra cancional de Caetano tem essa qualidade de exigência: para fruir e entender uma canção caetânica o ouvinte precisa ter conhecimentos – de cultura letrada e oral, massiva e canônica.
Por exemplo, em 1971, Caetano publica um poema-montagem no jornal contracultural Flor do mal com várias citações, colagens, referências e, entre outras visões da nacionalidade, ele justapõe: "não quero o reino dos céus: / só me interessa o que não é meu. // a cruz do crucificado: / o chico e o roberto carlos // mesmo do lado de fora: / não permita deus que eu morra" (VELOSO, 1977, p. 82).
É esse Caetano que cita e ressignifica o aforismo oswaldiano "só me interessa o que não é meu" que quero comentar, ao propor uma leitura da canção "Escapulário" (Joia, 1975), feita a partir do poema homônimo de Oswald (Pau Brasil, 1925). Nele a herança católica brasileira é devorada através do uso parodístico e recontextualizado da oração "Pai Nosso", como veremos. Os discos complementares Joia e Qualquer coisa são acompanhados por manifestos. Na terceira estrofe (ou parágrafo; ou aforismo) do "Manifesto do movimento Joia" lemos: "respeito contrito à ideia de inspiração. jóia. meu carro é vermelho. inspiração quer dizer: estar cuidadosamente entregue ao projeto de uma música posta contra aqueles que falam em termos de década e esquecem o minuto e o milênio". Reafirma-se o questionamento da herança: gesto oswaldiano. Daí também porque Caetano evocar e embaralhar (supostos) opostos - Chico Buarque e Roberto Carlos - no poema de 1971.
Se "Escapulário" é o poema que abre o livro Pau Brasil, a canção homônima, ou, o poema cantado em ritmo de samba, com o coro de As gatas (do programa do Chacrinha), a percussão do grupo Cream Crackers e a bateria de Tuty Moreno, fecha o disco Joia de Caetano. Parece coerente que depois de evocar a musa - "Minha mulher" -; cantar os elementais da paisagem brasileira - "Guá", "Pelos olhos", "Asa, asa", "Lua, lua, lua, lua" -, singularizar a potência da gente que vive aqui - "Canto do povo de um lugar", "Pipoca moderna", "Joia" - e abrir-se ao mundo - "Help", "Gravidade", "Tudo, tudo, tudo", "Na asa do vento", o instinto de nacionalidade de Caetano engendre um samba, "o grande poder transformador", como cantará em "Desde que o samba é samba" (Tropicália 2, 1993). "Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança", escreveu Oswald no "Manifesto da Poesia Pau Brasil".
Está posta a discussão da poesia que, segundo Oswald, "existe nos fatos". Os significantes do pensamento e da poética, logo, da ética e da estética oswaldianos espraiam-se de modo singular na obra de Caetano. E "Escapulário", com sua des-ressacralização do sagrado (a oração), pelo profano (o samba), é um bom exemplo disso. Caetano entende a "rubrica" deixada por Oswald na edição de 1925 impressa pelo "Sans Pareil" de Paris: "Pau-Brasil. Cancioneiro de Oswald de Andrade". Ou seja, Caetano vocoperforma um texto que pede a voz, a vocalização, o corpo carnavalizado do sujeito poético. Caetano realiza o desejo oswaldiano, a saber: "a carnavalização antropofágica que rompe com o dominador usando-o satiricamente como a própria arma de luta", elabora Bina Friedman Maltz (1993, p. 10).
Mas a relação entre os dois poetas tem mais filigranas de intimidade. Como não reconhecer nos versos de "Enquanto seu lobo não vem" (Tropicália ou Panis et circensis, 1968) - "Vamos passear na floresta escondida, meu amor / Vamos passear na avenida / Vamos passear nas veredas, no alto meu amor / Há uma cordilheira sob o asfalto / (Os clarins da banda militar...) / A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas / (Os clarins da banda militar...) / Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas / (Os clarins da banda militar...)" - ecos carnavalizantes, irônicos de "Na avenida / A banda de clarins / Anuncia com os seus clangorosos sons / A aproximação do impetuoso cortejo" (Pau Brasil)? E não é a mesma avenida que no final de O santeiro do Mangue surge: "Não há mais o Mangue, dizem / - Aquela nojeira! / Puseram por cima do Mangue Timoschenko / Os lustres / Duma avenida ilustre"?
Do mesmo modo que os versos "Nem quero saber se o diabo / Nasceu foi na Bahia / O trio elétrico / O sol rompeu / No meio dia" ("Atrás do trio elétrico") parecem parodiar o aforismo 13 do “Manifesto antropófago”, que diz: “Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará”. Se Oswald escreveu esse aforismo inspirado no maxixe “Cristo nasceu na Bahia”, de Sebastião Cirino e Antônio Lopes de Amorim Diniz (Duque), de 1926 – “Dizem que Cristo nasceu em Belém”, diz o primeiro verso da letra –, Caetano inverte as potências e tenciona o polo diabólico, amalgamando literatura e canção (cultura popular), gesto modernista condensado no aforismo 17 “Só podemos atender ao mundo orecular”, ou seja, fazer do ouvido oráculo, restituir a ontológica potência vocal da poesia, que Caetano mantém e desenvolve.
Caetano Veloso é baiano de Santo Amaro, autor dos versos "O carnaval é invenção do diabo / Que Deus abençoou / Deus e o diabo no Rio de Janeiro / Cidade de São Salvador / (...) / Cidades maravilhosas / Cheias de encantos mil / Cidades maravilhosas / Dos pulmões do meu Brasil" ("Deus e o diabo"), que, por sua vez, ao espelhar a Bahia no Rio, parecem desdobrar o aforismo dois – “O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança” – do “Manifesto da Poesia Pau Brasil”. Essa horizontalidade entre o maxixe e Wagner interessou a Oswald e repercute na obra de Caetano.
Voltando a tratar de "Escapulário", e ampliando o jogo intertextual oswaldiano, como não identificar no pedido do sujeito do poema - "Dai-nos Senhor" -, a súplica de Eduleia, personagem de O santeiro do Mangue? "Onde estás Senhor que não ouves o canto sangrado da prostituta, a prostituta que quer sair desta vida, que não faz para comer", clama aquela a quem só restam "a cachaça e o amô", ao invocar o corrosivo Jesus das Comidas, que, por sua vez, ao final do colóquio, diz "Eu me recolho ao Corcovado", revelando o Senhor do "Pão de açucar" a quem o sujeito de "Escapulário" roga. Além disso, na "Oração do Mangue", temos "os braços parados do Cristo / do Corcovado". Essa circularidade de significantes, essas autorreferenciações via assimilação crítica, também ocorrem com frequência no cancioneiro de Caetano. São muitos os versos retornados, reelaborados.
Podemos supor ainda que é dos versos de O Santeiro ("Tem por sentinelas / Equipagens e estrelas / Taifeiros madrugadas / E escolas de samba") que Caetano recolhe o ritmo eficaz para a canção "Escapulário": o samba! Note-se que o termo "escapulário" aparece em O santeiro do Mangue, quando o Coro canta "Vam fudê vam / Vam buchê vam / Temos um escapulário aqui / E duas troquesa lá / Vem cá". Do mesmo modo que a referência ao determinismo conformista religioso ecoa em "Será feita a sua vontade" no trecho "Uma criança não tem defesa / Nasceu norro / É fêmea / O que ela vai ser? / O que a sociedade mandar / Será feita a sua vontade / É destino / Das classes / Menos favorecidas". Para o saudoso professor Renato Cordeiro Gomes, "a este teocentrismo, Oswald, à maneira de Brecht, opõe o sociocentrismo. Informado pela filosofia marxista, vê a religião como ópio do povo, motivo de alienação e instrumento para manter imutável uma ordem social injusta, de privilégios, comprometida com a sociedade capitalista, burguesa e cristã" (1985, p. 29-30).
Percebe-se que não é à toa que O santeiro do Mangue é dedicado à "poesia em Cristo" de Murilo Mendes e Jorge de Lima. Eis o polêmico Oswald em ação: "O pau nosso de cada dia", diz um São Tesão em sua contra-ideologia; "O pau nosso / Dai-nos hoje", diz o Coro das Mulheres de Jerusalém. Ou seja, "efetua-se um jogo de forças: a questão religiosa permanece como um substrato que borra a superfície do texto, como num jogo dramático entre coadjuvante e protagonista" (GOMES, 1985, p. 34). Interações dialéticas, tomemização do tabu, assim como quando Oswald nomeia Seu Olavo o santeiro de seu poema dramático. Uma referência ao "príncipe dos poetas" Olavo Bilac? "Desde Bilac / Somos internacionalistas e portugueses juniors", escreve no poema "Estrondam em ti as iaras"; "Por que será que só no Mangue inda compra santo?", pergunta em sua ópera-chanchada. "Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses", defende no aforismo 24 de seu "Manifesto antropófago". Que poesia é essa que circula no Brasil? A quem ela se destina? De quem? Por quem? "O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito", escreve Oswald no "Manifesto da Poesia Pau Brasil".
Há ainda a crítica ao modo de vida burguesa nos versos "Eu quis cantar minha canção iluminada de sol / Soltei os panos sobre os mastros no ar / Soltei os tigres e os leões nos quintais / Mas as pessoas na sala de jantar / São ocupadas em nascer e morrer" (“Panis et circenses”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil) que, sintomaticamente, repercute por reminiscência o aforismo "A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.", do "Manifesto da Poesia Pau Brasil". Ou seja, a pregnância da obra de Oswald na obra de Caetano é vasta e significativa.
Poderia ainda listar diálogos entre os versos "Mucosa roxa, peito cor de rola / Seu beijo, seu texto / Seu queixo, seu pelo / Sua coxa" ("Deusa urbana", Cê, 2006) e o sexo no Mangue: "Mucosas / (...) / Cor de coxa nua"; entre o Mangue enquanto "desafogo dos machos, válvula de garantia das famílias e gáudio honesto dos imperialistas em trânsito" e o brado "Seja imperialistas!", da canção "Língua" (Velô, 1984) - canção, aliás, que tem o enigmático "Será que ele está no Pão de Açúcar?" - ele quem? O Jesus das comidas de O Santeiro do Mangue? Esse poema dramático que, assim como Caetano citou Gonçalves Dias no poema de 1971, diz: "Ó leques das Palmeiras do Mangue / Suave Mangue / Sob o cristal da noite estelar / Pareceis abonar as felicidades meretrícias / Que psalmodiam / Com Deus me deito / Com Deus me levanto / Esmeraldas noturnas / Para os caçadores dos palmares do Mangue".
É conhecida a paródia "Minha terra tem palmares / onde gorjeia o mar" ("Canto de regresso à pátria", de Pau Brasil, 1925) que Oswald faz para "Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá" ("Canção do exílio", Primeiros cantos, 1847), de Gonçalves Dias. Cânone em constate revisão é um gesto antropófago de Oswald, de Caetano, quando canta a idílica juventude na terra natal: "Itapuã / Quando tu me faltas, tuas palmas altas / Mandam um vento a mim / Assim, Caymmi", canta em "Itapuã" (Circuladô, 1991).
Caetano regravou a canção "Escapulário" no disco Abraçaço ao vivo (2014), quando forças ultraconservadores novamente começaram a ameaçar a democracia e a utopia antropofágica defendida por Oswald e Caetano. Sintomaticamente, "Escapulário" aparece entre as canções "Estou triste" e "Funk melódico", ou seja, entre o diagnóstico e a terapia: a metáfora - a poesia, que "existe nos fatos". É bom lembrar que a capa do disco Joia foi censurada pela ditadura civil-militar na época do lançamento. Os corpos nus do cancionista, de Dedé (mãe de seu filho) e Moreno (seu filho) desenhados incomodaram a pudica sombra desumana dos moralistas.
A pergunta da canção "Podres poderes" (Velô, 1984), que aparece como síntese do poema dramático oswaldiano, ainda tem pertinência: "Será que nunca faremos senão confirmar a incompetência da América católica, que sempre precisará de ridículos tiranos?". Essa parceria crítica entre Oswald de Andrade e Caetano Veloso finca posição aqui. Do mesmo modo que, se O santeiro do Mangue termina com um canto de esperança e desejo de uma sociedade onde "não existam mais os reis do Mangue", nem "senzalas Atlânticas", a obra de Caetano empenha-se no "otimismo programático", conforme afirmou na live feita com Paul B. Preciado, sob mediação de Ángel Gurría-Quintana para a FLIP em 05 de dezembro de 2020.
ANDRADE, Oswald de. O Santeiro do Mangue. São Paulo: Globo, 1991.
GOMES, Renato Cordeiro. Plural de vozes na festa (?) do Mangue - uma leitura de O santeiro do Mangue, de Oswald de Andrade. Dissertação de Mestrado. PUC-Rio, 1985.
MALTZ, Bina Friedman. Antropofagia e tropicalismo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1993.
VELOSO, Caetano. Alegria, alegria. Uma caetanave organizada por Waly Salomão. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, 1977.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das letras, 1997.
Por exemplo, em 1971, Caetano publica um poema-montagem no jornal contracultural Flor do mal com várias citações, colagens, referências e, entre outras visões da nacionalidade, ele justapõe: "não quero o reino dos céus: / só me interessa o que não é meu. // a cruz do crucificado: / o chico e o roberto carlos // mesmo do lado de fora: / não permita deus que eu morra" (VELOSO, 1977, p. 82).
É esse Caetano que cita e ressignifica o aforismo oswaldiano "só me interessa o que não é meu" que quero comentar, ao propor uma leitura da canção "Escapulário" (Joia, 1975), feita a partir do poema homônimo de Oswald (Pau Brasil, 1925). Nele a herança católica brasileira é devorada através do uso parodístico e recontextualizado da oração "Pai Nosso", como veremos. Os discos complementares Joia e Qualquer coisa são acompanhados por manifestos. Na terceira estrofe (ou parágrafo; ou aforismo) do "Manifesto do movimento Joia" lemos: "respeito contrito à ideia de inspiração. jóia. meu carro é vermelho. inspiração quer dizer: estar cuidadosamente entregue ao projeto de uma música posta contra aqueles que falam em termos de década e esquecem o minuto e o milênio". Reafirma-se o questionamento da herança: gesto oswaldiano. Daí também porque Caetano evocar e embaralhar (supostos) opostos - Chico Buarque e Roberto Carlos - no poema de 1971.
Se "Escapulário" é o poema que abre o livro Pau Brasil, a canção homônima, ou, o poema cantado em ritmo de samba, com o coro de As gatas (do programa do Chacrinha), a percussão do grupo Cream Crackers e a bateria de Tuty Moreno, fecha o disco Joia de Caetano. Parece coerente que depois de evocar a musa - "Minha mulher" -; cantar os elementais da paisagem brasileira - "Guá", "Pelos olhos", "Asa, asa", "Lua, lua, lua, lua" -, singularizar a potência da gente que vive aqui - "Canto do povo de um lugar", "Pipoca moderna", "Joia" - e abrir-se ao mundo - "Help", "Gravidade", "Tudo, tudo, tudo", "Na asa do vento", o instinto de nacionalidade de Caetano engendre um samba, "o grande poder transformador", como cantará em "Desde que o samba é samba" (Tropicália 2, 1993). "Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança", escreveu Oswald no "Manifesto da Poesia Pau Brasil".
Está posta a discussão da poesia que, segundo Oswald, "existe nos fatos". Os significantes do pensamento e da poética, logo, da ética e da estética oswaldianos espraiam-se de modo singular na obra de Caetano. E "Escapulário", com sua des-ressacralização do sagrado (a oração), pelo profano (o samba), é um bom exemplo disso. Caetano entende a "rubrica" deixada por Oswald na edição de 1925 impressa pelo "Sans Pareil" de Paris: "Pau-Brasil. Cancioneiro de Oswald de Andrade". Ou seja, Caetano vocoperforma um texto que pede a voz, a vocalização, o corpo carnavalizado do sujeito poético. Caetano realiza o desejo oswaldiano, a saber: "a carnavalização antropofágica que rompe com o dominador usando-o satiricamente como a própria arma de luta", elabora Bina Friedman Maltz (1993, p. 10).
Mas a relação entre os dois poetas tem mais filigranas de intimidade. Como não reconhecer nos versos de "Enquanto seu lobo não vem" (Tropicália ou Panis et circensis, 1968) - "Vamos passear na floresta escondida, meu amor / Vamos passear na avenida / Vamos passear nas veredas, no alto meu amor / Há uma cordilheira sob o asfalto / (Os clarins da banda militar...) / A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas / (Os clarins da banda militar...) / Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas / (Os clarins da banda militar...)" - ecos carnavalizantes, irônicos de "Na avenida / A banda de clarins / Anuncia com os seus clangorosos sons / A aproximação do impetuoso cortejo" (Pau Brasil)? E não é a mesma avenida que no final de O santeiro do Mangue surge: "Não há mais o Mangue, dizem / - Aquela nojeira! / Puseram por cima do Mangue Timoschenko / Os lustres / Duma avenida ilustre"?
Do mesmo modo que os versos "Nem quero saber se o diabo / Nasceu foi na Bahia / O trio elétrico / O sol rompeu / No meio dia" ("Atrás do trio elétrico") parecem parodiar o aforismo 13 do “Manifesto antropófago”, que diz: “Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará”. Se Oswald escreveu esse aforismo inspirado no maxixe “Cristo nasceu na Bahia”, de Sebastião Cirino e Antônio Lopes de Amorim Diniz (Duque), de 1926 – “Dizem que Cristo nasceu em Belém”, diz o primeiro verso da letra –, Caetano inverte as potências e tenciona o polo diabólico, amalgamando literatura e canção (cultura popular), gesto modernista condensado no aforismo 17 “Só podemos atender ao mundo orecular”, ou seja, fazer do ouvido oráculo, restituir a ontológica potência vocal da poesia, que Caetano mantém e desenvolve.
Caetano Veloso é baiano de Santo Amaro, autor dos versos "O carnaval é invenção do diabo / Que Deus abençoou / Deus e o diabo no Rio de Janeiro / Cidade de São Salvador / (...) / Cidades maravilhosas / Cheias de encantos mil / Cidades maravilhosas / Dos pulmões do meu Brasil" ("Deus e o diabo"), que, por sua vez, ao espelhar a Bahia no Rio, parecem desdobrar o aforismo dois – “O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança” – do “Manifesto da Poesia Pau Brasil”. Essa horizontalidade entre o maxixe e Wagner interessou a Oswald e repercute na obra de Caetano.
Voltando a tratar de "Escapulário", e ampliando o jogo intertextual oswaldiano, como não identificar no pedido do sujeito do poema - "Dai-nos Senhor" -, a súplica de Eduleia, personagem de O santeiro do Mangue? "Onde estás Senhor que não ouves o canto sangrado da prostituta, a prostituta que quer sair desta vida, que não faz para comer", clama aquela a quem só restam "a cachaça e o amô", ao invocar o corrosivo Jesus das Comidas, que, por sua vez, ao final do colóquio, diz "Eu me recolho ao Corcovado", revelando o Senhor do "Pão de açucar" a quem o sujeito de "Escapulário" roga. Além disso, na "Oração do Mangue", temos "os braços parados do Cristo / do Corcovado". Essa circularidade de significantes, essas autorreferenciações via assimilação crítica, também ocorrem com frequência no cancioneiro de Caetano. São muitos os versos retornados, reelaborados.
Podemos supor ainda que é dos versos de O Santeiro ("Tem por sentinelas / Equipagens e estrelas / Taifeiros madrugadas / E escolas de samba") que Caetano recolhe o ritmo eficaz para a canção "Escapulário": o samba! Note-se que o termo "escapulário" aparece em O santeiro do Mangue, quando o Coro canta "Vam fudê vam / Vam buchê vam / Temos um escapulário aqui / E duas troquesa lá / Vem cá". Do mesmo modo que a referência ao determinismo conformista religioso ecoa em "Será feita a sua vontade" no trecho "Uma criança não tem defesa / Nasceu norro / É fêmea / O que ela vai ser? / O que a sociedade mandar / Será feita a sua vontade / É destino / Das classes / Menos favorecidas". Para o saudoso professor Renato Cordeiro Gomes, "a este teocentrismo, Oswald, à maneira de Brecht, opõe o sociocentrismo. Informado pela filosofia marxista, vê a religião como ópio do povo, motivo de alienação e instrumento para manter imutável uma ordem social injusta, de privilégios, comprometida com a sociedade capitalista, burguesa e cristã" (1985, p. 29-30).
Percebe-se que não é à toa que O santeiro do Mangue é dedicado à "poesia em Cristo" de Murilo Mendes e Jorge de Lima. Eis o polêmico Oswald em ação: "O pau nosso de cada dia", diz um São Tesão em sua contra-ideologia; "O pau nosso / Dai-nos hoje", diz o Coro das Mulheres de Jerusalém. Ou seja, "efetua-se um jogo de forças: a questão religiosa permanece como um substrato que borra a superfície do texto, como num jogo dramático entre coadjuvante e protagonista" (GOMES, 1985, p. 34). Interações dialéticas, tomemização do tabu, assim como quando Oswald nomeia Seu Olavo o santeiro de seu poema dramático. Uma referência ao "príncipe dos poetas" Olavo Bilac? "Desde Bilac / Somos internacionalistas e portugueses juniors", escreve no poema "Estrondam em ti as iaras"; "Por que será que só no Mangue inda compra santo?", pergunta em sua ópera-chanchada. "Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses", defende no aforismo 24 de seu "Manifesto antropófago". Que poesia é essa que circula no Brasil? A quem ela se destina? De quem? Por quem? "O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito", escreve Oswald no "Manifesto da Poesia Pau Brasil".
Há ainda a crítica ao modo de vida burguesa nos versos "Eu quis cantar minha canção iluminada de sol / Soltei os panos sobre os mastros no ar / Soltei os tigres e os leões nos quintais / Mas as pessoas na sala de jantar / São ocupadas em nascer e morrer" (“Panis et circenses”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil) que, sintomaticamente, repercute por reminiscência o aforismo "A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.", do "Manifesto da Poesia Pau Brasil". Ou seja, a pregnância da obra de Oswald na obra de Caetano é vasta e significativa.
Poderia ainda listar diálogos entre os versos "Mucosa roxa, peito cor de rola / Seu beijo, seu texto / Seu queixo, seu pelo / Sua coxa" ("Deusa urbana", Cê, 2006) e o sexo no Mangue: "Mucosas / (...) / Cor de coxa nua"; entre o Mangue enquanto "desafogo dos machos, válvula de garantia das famílias e gáudio honesto dos imperialistas em trânsito" e o brado "Seja imperialistas!", da canção "Língua" (Velô, 1984) - canção, aliás, que tem o enigmático "Será que ele está no Pão de Açúcar?" - ele quem? O Jesus das comidas de O Santeiro do Mangue? Esse poema dramático que, assim como Caetano citou Gonçalves Dias no poema de 1971, diz: "Ó leques das Palmeiras do Mangue / Suave Mangue / Sob o cristal da noite estelar / Pareceis abonar as felicidades meretrícias / Que psalmodiam / Com Deus me deito / Com Deus me levanto / Esmeraldas noturnas / Para os caçadores dos palmares do Mangue".
É conhecida a paródia "Minha terra tem palmares / onde gorjeia o mar" ("Canto de regresso à pátria", de Pau Brasil, 1925) que Oswald faz para "Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá" ("Canção do exílio", Primeiros cantos, 1847), de Gonçalves Dias. Cânone em constate revisão é um gesto antropófago de Oswald, de Caetano, quando canta a idílica juventude na terra natal: "Itapuã / Quando tu me faltas, tuas palmas altas / Mandam um vento a mim / Assim, Caymmi", canta em "Itapuã" (Circuladô, 1991).
Caetano regravou a canção "Escapulário" no disco Abraçaço ao vivo (2014), quando forças ultraconservadores novamente começaram a ameaçar a democracia e a utopia antropofágica defendida por Oswald e Caetano. Sintomaticamente, "Escapulário" aparece entre as canções "Estou triste" e "Funk melódico", ou seja, entre o diagnóstico e a terapia: a metáfora - a poesia, que "existe nos fatos". É bom lembrar que a capa do disco Joia foi censurada pela ditadura civil-militar na época do lançamento. Os corpos nus do cancionista, de Dedé (mãe de seu filho) e Moreno (seu filho) desenhados incomodaram a pudica sombra desumana dos moralistas.
A pergunta da canção "Podres poderes" (Velô, 1984), que aparece como síntese do poema dramático oswaldiano, ainda tem pertinência: "Será que nunca faremos senão confirmar a incompetência da América católica, que sempre precisará de ridículos tiranos?". Essa parceria crítica entre Oswald de Andrade e Caetano Veloso finca posição aqui. Do mesmo modo que, se O santeiro do Mangue termina com um canto de esperança e desejo de uma sociedade onde "não existam mais os reis do Mangue", nem "senzalas Atlânticas", a obra de Caetano empenha-se no "otimismo programático", conforme afirmou na live feita com Paul B. Preciado, sob mediação de Ángel Gurría-Quintana para a FLIP em 05 de dezembro de 2020.
ANDRADE, Oswald de. O Santeiro do Mangue. São Paulo: Globo, 1991.
GOMES, Renato Cordeiro. Plural de vozes na festa (?) do Mangue - uma leitura de O santeiro do Mangue, de Oswald de Andrade. Dissertação de Mestrado. PUC-Rio, 1985.
MALTZ, Bina Friedman. Antropofagia e tropicalismo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1993.
VELOSO, Caetano. Alegria, alegria. Uma caetanave organizada por Waly Salomão. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, 1977.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das letras, 1997.
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Escapulário
No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia
No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
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