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30 junho 2024

Caetano Por que não?


De toda a vasta bibliografia que a obra de Caetano Veloso tem, o livro de Ivo Lucchesi e Gilda Korff Dieguez merece destaque. Definido como "uma viagem entre a aurora e a sombra", CAETANO. PORQUE NÃO? usa a pergunta da canção "Alegria, alegria" para passar em revista crítica a discografia e as falas públicas do organizador do "movimento" Tropicália até 1993. Trabalho excepcional de garimpo, singularidade, curadoria e ajuste por temas. As mutações todas de Caetano são postas em justaposição que dá o tamanho exato da presença do artista na cultura brasileira. Basta dizer que o livro guarda 516 depoimentos dados por Caetano entre 1966 e 1993. Destaque a paixão pela palavra, pelo uso inventivo da palavra poética e crítica. "Corpo, individual ou coletivo, é sempre fonte de prazer ou dor, liberdade ou prisão, desejo ou sublimação. No caso, a obra de Caetano aponta para a opção pelo prazer, liberdade e desejo, até como símbolo de resistência e insubmissão às forças externas que querem domá-lo", anotam os autores. CAETANO. PORQUE NÃO? é fonte de consulta incontornável.

23 junho 2024

Operação forrock


No livro OPERAÇÃO FORROCK, Felipe da Costa Trotta, Arthur Coelho Bezerra e Marco Antonio Gonçalves assinam individualmente três textos sobre a tradição e a renovação das sonoridades - importações e exportações - do Nordeste brasileiro. Sanfona, rabeca, samplers, Gonzaga, Science, cordel, sertão e litoral são analisados como aspectos de uma grande "zona de contato" sonoro. Nesse ambiente, "ainda que outros artistas tenham desenvolvido narrativas mais plurais e menos estereotipadas, ainda hoje o som da sanfona e o sorriso de Gonzaga representam uma certa unidade identitária regional, reconhecida dentro e fora dos limites da região", escreve Trotta. "É na cultura afro-brasileira que encontramos a origem do ritmo que mais caracteriza a participação da tradição popular na música de Chico Science - o maracatu", escreve Bezerra. "Para o cordel a poética é apreendida através da performance em que o afetivo, o subjetivo e o conceitual aparecem na simultaneidade criando uma relação entre intérprete e ouvinte, sendo mesmo a própria performance uma condição na narrativa", escreve Gonçalves. Performance parece ser a palavra-chave para se entender as narrativas de Nordeste que a canção popular engendra na cultura nacional ao longo do tempo. Épocas, estilos, tradições e rupturas se representam no corpo de artistas diversos, sempre em negociação complexa com o mercado, para dar conta de cantar o "ser nordestino", essa invenção sudestina ainda e sempre em processo de operação.

16 junho 2024

Falas curtas


Demorei a conhecer a obra de Anne Carson. Não fossem minhas alunas eu ainda estaria na ignorância do pensamento de autora tão importante para a reflexão do que seja "escrita de si", do que seja a prática da interpretação "com" a literatura. Em FALAS CURTAS Carson anota as leituras que fez, compondo seu paideuma estético: Stein, Ovídio, Parmênides, Bardot, Kafka, Claudel, Plath. "Comecei a anotar tudo o que era dito. Os rastros e vestígios constroem aos poucos um flagrante da natureza, da monotonia de uma história. Isso para mim é importante", lemos na introdução. Roland Barthes disse que quanto mais a gente "levanta a cabeça" durante uma leitura melhor o livro é. FALAS CURTAS são as levantadas de cabeça de Carson, aquilo que inquieta suas verdades friccionadas pela literatura de outros que, de tão provocadora ("falam de uma voz chamando no deserto"), passa a ser sua literatura - colagens, citações, enxertos. A crítica enquanto anotação. Professora de grego antigo, Carson passa em revista sua formação, deixando o palimpsesto ocidental falar.

09 junho 2024

Tropicalista lenta luta


Desconheço se há um cancionista que melhor experimenta, inventa, cria e força os limites da canção do que Tom Zé. Desde o primeiro disco, quando escreveu "Eu sou a fúria quatrocentona de uma decadência perfumada com boas maneiras e não quero amarrar minha obra num passado de laço de fita com boemias seresteiras", até o mais recente disco Língua brasileira (2022), Tom Zé entrega a seus ouvintes verdadeiras teses verbivocoperformáticas sobre cultura, arte e vida no Brasil. Melodias e letras, vozes e instrumentações sempre a serviço do acesso aos nossos núcleos duros. Cancionista crítico, Tom Zé pensa como quem brinca, totemizando o Brasil, essa "Babel das línguas em pleno cio", como canta na canção que dá título ao urgente e estupendo ao disco. Por isso e muito mais, seu livro TROPICALISTA LENTA LUTA merece leitura atenta, lenta. Nele encontramos significantes fundamentais para compreender de modo crítico um dos momentos mais interessantes da nossa canção, uma canção que, sendo inventiva, transgressiva, se queria popular, "biscoito fino" para as massas. "Não cantar apagava a visualidade de Torquato, na fase em que se instaurava com mais força o cantor-imagem", escreve Tom Zé num dos textos recolhidos no livro.

02 junho 2024

A vegetariana


"Então ela se lembra da visão dos corpos nus e entrelaçados do marido e Yeonghye. A imagem a chocou muito, não havia dúvida, mas conforme o tempo passa, por alguma razão, ela já não a relacionava a algo sexual. Aqueles corpos, cobertos de flores, folhas e caules verdes, eram tão estranhos que já não se assemelhavam a pessoas. Os movimentos que faziam pareciam forjar uma luta para deixar de serem humanos", lemos a certa altura de A VEGETARIANA, de Han Kang. A trama incomum é contada de modo inovador, experimental. Quem lê se vê íntimo de uma personagem "sem fala". Sabemos dela pelos outros, por aqueles que nela engendram o trauma e os limites entre o desejo e a crueldade, o explícito e o subentendido. A tradução fluida de Jae Hyung Woo é parceira importante no sonho intranquilo proposto pela narrativa.