De
um trono-espelho no centro do palco, Ney Matogrosso aparece: imperativo,
emplumado, cigano, atento aos sinais, como sempre, amante da sorte. Flashes de
luz e câmeras fragmentam a imagem, nublam a visão da potência-ó em cena. A imagem pede passagem: “A cidade é tanto do
mendigo quanto do policial / (...) / Todo mundo tem direito à vida / Todo mundo
tem direito igual / Travesti trabalhador turista / Solitário família casal”
(“Rua da passagem”, Arnaldo Antunes e Lenine). E é assim, sem levantar
bandeiras individuais, mas disposto na vigília pelos direitos coletivos de
respeitabilidade mútua, que Ney Matogrosso faz do corpo e da voz instrumentos
contra a hipocrisia social.
Desde
sempre, a canção popular brasileira tem o árduo trabalho de ser o espelho por onde
a diversidade cultural se mira, onde o tabu vira totem. “A luta entre o que se
chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem
e o seu Tabu”, anotaria Oswald de Andrade. “No espelho minh’alma chora / Lá
fora está tão gelado / Sozinha nesta cozinha / Em pé eu tomo um café / Na pia a
louça suja / Me lembra da roupa suja / No tanque que a vida é” (“Noite torta”,
Itamar Assumpção), canta Matogrosso. Remelexendo-se criticamente em cena, via
instinto caraíba, Ney desvela uma série de sutilezas “que a brisa do Brasil
beija e balança” e aponta o “incêndio nas ruas / lixo na porta e na escada /
sangue em cada esquina mal dobrada” (“Incêndio”, Pedro Luís).
“então alguma coisa como canto sai de alguma
coisa como boca, alguma coisa como um á, um ó, um ó enorme, que toma primeiro
os ouvidos e depois se estende pelas costas, a penugem do ventre”, as
palavras de Nuno Ramos – Livro Ó –
me servem para entrar em contato com a pintura abstrata da figura em cena. A
vocoperformance de Ney Matogrosso é inaugural de novas/outras estruturas
críticas. E sintomática de um país que realiza a própria crítica no jeito de
corpo misturado de seu povo: profundamente afinado com as ideias de
antropofagia. Corpo político. Voz engajada. Ambos amalgamados, indissociáveis a
serviço do despertar do emblema Brasil, pelo sinuoso tecido de fios semióticos
exóticos de tão óbvios.
Do
centro da certeza da brevidade da vida, Ney entoa alto: “Vida louca vida / Vida
breve / Já que eu não posso te levar / Quero que você me leve / Tô cansado de
tanta babaquice, tanta caretice / Desta eterna falta do que falar” (“Vida louca
vida”, Lobão e Bernardo Vilhena). Agradece os aplausos, gritos e ais. E
lascivamente muda de roupa. Ali. Pele sobre pele. Pele por pele. Diante da
plateia que se realiza através do gesto do artista em cena. “Meu samba não se
importa se eu não faço rima / Se pego na viola e ela desafina / Meu samba não
se importa se eu não tenho amor / Se dou meu coração assim sem disciplina” (“Roendo
as unhas”, Paulinho da Viola), canta, como o artista-pensador da cultura que é.
“De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que o ‘velho
Deus morreu’ nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração
transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa [...] novamente é
permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento”, anota Nietzsche em A gaia ciência.
Ney
Matogrosso mistura canções, estilos, ritmos. Paulinho da Viola e Criolo;
Caetano Veloso e Lobão; Arnaldo Antunes e Vitor Ramil. Ele sobrepõe temas para
chegar ao grande-tema: o amor ao destino. “Eu sei / O tempo é o meu lugar / O
tempo é minha casa / A casa é onde quero estar / Eu sei” (“A ilusão da casa”,
Vítor Ramil), canta. Depois entoa uma oração que se opõe a qualquer atitude
segregacionista: “Peço aos céus para me protegerem e eu não hei de ceder / Ao
vazio desses dias iguais / Mal em mim nunca há de fincar / Mel em mim nunca há
de findar / Olhos nus e atentos aos sinais / Faço fé pra poder ver / A vida há
de ser sempre mais” (“Oração”, Dani Black). E isso não é pouco diante do
levante neopentecostal que tem visado a “assepsia” dos brasileiros.
Sobre
o tema, Ney Matogrosso sugere cantando: “No meu coração da mata gritou Pelé,
Pelé / Faz força com o pé na África / O certo é ser gente linda e cantar,
cantar, cantar / O certo é fazendo música / A força vem dessa pedra que canta
Itapoã / Fala tupi, fala iorubá” (“Two naira fifty kobo”, Caetano Veloso). E “No
verso aversão à imposição / Servo, sou não, faço a exposição / Sobre
condicionamento e catequização / Pobre estamento, mais injusta divisão / Nobres
no convés e os negros no porão / Conte de um até dez e prenda a respiração / Quem
controla o passado tem o futuro à mão / Conheça sua História, não durma, irmão
/ Fique esperto, liberto de qualquer exploração / Mais perto do certo, andar
com atenção / Antropofagia pra fugir da tensão / Sardinha no cardápio pra fazer
a digestão / Como não? Como sim, é apropriação / Nossa risada no fim tem mais
sensação / A resistência é a própria ação / A hora da virada é a nossa sanção”
(“Tupi fusão”, Vitor Pirralho). “Tupi fusão”, aliás, é o núcleo do show.
Atento aos sinais ao vivo
(2014) é um manifesto que não se limita a dar respostas. Há muito amor à vida,
para se reduzir a isso. “Bichos bichas punk anjos querubins / Iansã deus tupã
eu tudo enfim / Peter-Pan pó de pirlimpimpim / Também isso não vai ficar assim,
meu bem / Isso não vai ficar assim / Por isso beije-me / Como se fosse esta
noite a última vez” (“Isso não vai ficar assim”, Itamar Assumpção), canta o
menino no palco. E ainda: “No amor eu quero me afogar / Se for contigo eu quero
entrar nesse mar / Tanto calor que surge em te abraçar / Mas esse fogo é fogo
bom pra se queimar / Mas esse fogo é fogo bom” (“Não consigo”, Rafael Rocha). E
provoca: “Você nem imagina tudo que imaginei pra nossa rotina / (...) / Dia
sim, dia não essa fome divina” (“Beijos de Ímã”, de Jerry Espíndola, Alzira E,
Arruda e Ney Matogrosso). E Convida: “A confeiteira e seus doces / Sempre vem
oferecer / Furta-cor de prazer / E não há como negar / Que o prato a se ofertar
/ Não a faça salivar” (“Freguês da meia noite”, Criolo). E avisa: “Espero ouvir
você dizer que gosta de viver em perigo / Considerando que eu não seja nada
mais além de bandido” (“Fico louco”, Itamar Assumpção). E sublima: “Ninguém vai
nos entender / Querem se escandalizar / Até preferem fingir / Até preferem
matar / Até preferem morrer / Do que ter de aceitar / Que no mundo somos / Eu e
você” (“Pronomes”, de Beto Boing e Paulo Passos). E mira: “Essa é minha
situação / Eu quero sua atenção / E já fiz, imagino, até onde eu podia / Eu
penso até em desistir / O que eu posso fazer é ir / Não possuo tamanha tecnologia”
(“Samba do blackberry”, de Rafael Rocha e Alberto Continentino).
Em
cena, Ney Matogrosso é a potência-ó da tupi fusão.
***
Tupi
fusão
(Vitor
Pirralho)
VITOR PI
VIM EM TUPI
PRA ENTUPIR DE IDEIA
A CABEÇA DE TODA
TRUPE
Em tupi, entupiu
Canibal deglutiu
Tio samba aglutinou
Tu que viu, viu
Quem viu, quem
degustou
Gostou do que sentiu
Digeriu, arrotou
Canja de laranja,
casca de galinha
Isca de polícia,
farda de sardinha
A carapuça serviu
A batina caiu
Bloco carnavalesco,
pitoresco Brasil
VITOR PI
VIM EM TUPI
PRA ENTUPIR DE IDEIA
A CABEÇA DE TODA
TRUPE
Pintura rupestre,
tinta nanquim
Índio nordeste,
tupiniquim
Camisa da Levi’s e
calça jeans
No lugar de flecha,
bala e fuzis
Sequestro do chefe da
fundação
Na mesma língua, sem
confusão
Na mesma moeda, a
negociação
Capital estrangeiro,
pajé, capitão
Pé d’água, toró, como
chovia
De português, o tupi
se vestia
Se fosse no sol, tu
se despia
E dispensaria a
hierarquia
VITOR PI
VIM EM TUPI
PRA ENTUPIR DE IDEIA
A CABEÇA DE TODA
TRUPE
No verso aversão à
imposição
Servo, sou não, faço
a exposição
Sobre condicionamento
e catequização
Pobre estamento, mais
injusta divisão
Nobres no convés e os
negros no porão
Conte de um até dez e
prenda a respiração
Quem controla o
passado tem o futuro à mão
Conheça sua História,
não durma, irmão
Fique esperto,
liberto de qualquer exploração
Mais perto do certo,
andar com atenção
Antropofagia pra
fugir da tensão
Sardinha no cardápio
pra fazer a digestão
Como não? Como sim, é
apropriação
Nossa risada no fim
tem mais sensação
A resistência é a
própria ação
A hora da virada é a
nossa sanção
VITOR PI
VIM EM TUPI
PRA ENTUPIR DE IDEIA
A CABEÇA DE TODA
TRUPE
Vitor Pi, vim em
tupi, pra entupir de ideia a cabeça de toda trupe
Vitor Pi, versão
tupi, pra entupir de ideia a cabeça de toda trupe