Pesquisar canções e/ou artistas

30 janeiro 2019

Oito horas


Pode-se dizer que o uso das marcas da voz, o jeito de escrever poesia mais para ser lida (e/ou declamada, recitada) em voz alta, e menos para a leitura silenciosa, teve destaque com a proposta prosódica dos poetas modernistas, tomou força estético-teórica com a poesia verbivocovisual dos poetas concretos, e mais tarde foi incorporada pela poesia pós-Tropicália. Isso marca grande parte da produção poética contemporânea e as pesquisas sobre o suporte da poesia.
O poeta é instado a performer: neo-griots (vocalizam a história, a memória coletiva), neo-aedos (vocalizam a própria poesia), neo-rapsodos (vocalizam poesias compostas por outrem), neossereias (reencantam o mundo pós-humano). Com isso ganham força os saraus, rinhas, batalhas, disputas vocais tão comuns no tempo em que a poesia se confundia à própria linguagem.
A tarefa de transformar a estrutura autotélica da poesia escrita na heterotélica canção requer do cancionista conhecimentos inteartes. Cantar um poema é encontrar a entonação embrionária das palavras; é reativar o uso primário da linguagem. E reafirmar que a palavra cantada é anterior à palavra escrita. No plano textual, versos viram refrão, há cortes, enxertos e deslocamentos de palavras. E assim quem canta inventa uma parceria com quem escreveu.
Há que se louvar quem enfrenta o trabalho de vocalizar poemas-não-pensados-para-a-voz, poemas feitos para o papel, e aciona os laços ancestrais de parentesco e parceria entre voz e letra. Imersos na era da mediação tecnológica, cancionistas tem exercido distinto exercício de registrar em disco a efêmera e incapturável performance de poesia.
É o caso de Juliana Perdigão. Se os versos de Galáxias de Haroldo de Campos deu o título do disco Ó (2016), agora foi a vez do poema "Anhangabaú" ("sentados num banco da América folhuda"), de Oswald de Andrade, emprestar a palavra exata. Em Folhuda (2019) Juliana Perdigão apresenta 12 canções criadas a partir da obra de poetas modernistas e contemporâneos: Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Paulo Leminski, Angélica Freitas, Bruna Beber, Arnaldo Antunes, Renato Negrão e Fabrício Corsaletti. O disco resulta num ensaio sobre a palavra cantada, a poesia oral, a vocalização de poesia. Ensaio que é apresentado por um sujeito cancional que assume as folhagens sonoras do reggae, punk rock, bossa nova, e as folhas dos livros de poesia lidos pela cancionista.
Juliana escolheu poemas de pouca complexidade lexical, muito próximos à prosa, a fim de compor canções com mensagens rapidamente recebidas pelo ouvinte, sem perder de vista certo lirismo diagnóstico e melancólico que marca o sujeito cancional do disco: ora convocação - "vamos lá, companheiro  / vamos lá que eu tenho pressa, companheiro / o mundo está mudando / você está trancado no banheiro" ("Mulher depressa", Angélica Freitas e Juliana Perdigão); ora afirmação - "é macho / e é bicha / e gosta de mulher // que é mulher / e é macho / e adora homem" ("Felino", Renato Negrão e Juliana Perdigão); ora advertência - "o açucar da sua voz / não sairá dos meus ossos" ("Açucar", Fabrício Corsaletti e Juliana Perdigão); ora reflexão - "abri-vos, arcas, arquivos / súmulas de arquivos, / fechados, / para que servem os livros?" ("Máquinas líquidas", Paulo Leminski e Juliana Perdigão); ora convite - "sente-se diante da vitrola / e esqueça-se das vicissitudes da vida" ("Música de manivella", Oswald de Andrade e Juliana Perdigão).
De fato, no disco de Juliana os paralelismos (infinitivo circular em 8) de Murilo Mendes são os mais metafóricos e se desdobram na polarização política brasileira atual, chamando atenção para o avanço fascista na Abissínia: "É a hora do vulcão, é a hora da mazurca, / É a hora da Abissínia, é a hora do bordel, / É a hora de Solange, é a hora do dentista, / É a hora da explosão, é a hora do relógio". Cantados uma única vez, acompanhados por instrumentos que marcam o tictac do tempo cronológico, os versos de Murilo se desdobram no "trem [que] divide o Brasil / como um meridiano", de Oswald. Cabe ao ouvinte escolher o trem polonês ou o trem das cores caetânico. Aliás, Caetano Veloso usou o termo "folhuda" na canção "Um sonho". O verso "fruta flor folhuda" serve bem à apreciação do disco de Juliana Perdigão: seu canto da "América folhuda".
O poema de Murilo Mendes problematiza os oito eventos ou os oito tempos determinados? A estrutura da fita de moebius dá o ritmo e a velocidade do poema. Juliana opta por cantá-lo próximo ao recitativo. Com pouco alongamento vocálico e marcando na voz quase falada a repetição "é a hora de...". Mecanicismo (pendular) e regularidade tencionam o "x" da questão do poema: o tempo não flui, o tempo retorna, aprisionando o sujeito cancional numa "má infinitude", diria Marx. Por fim, os pares expostos nos versos alexandrinos de Murilo não se anulam. Ao contrário, eles sugerem que a vida é feita da justaposição de eventos negativos e positivos. E que a valoração destes eventos é tarefa do leitor/ouvinte.
Mas dentre os poetas presentes no disco, Oswald foi o que mais recebeu voz: "Anhangabaú", "Música de manivella", "Noturno" e "O violeiro". Estes dois últimos poemas se unem numa única canção-marchinha de fim de carnaval. Todos do livro Pau Brasil (1925). "Música da Manivela", por exemplo, virou um reggae. A repetição mântrica dos versos "sente-se diante da vitrola / e esqueça-se das vicissitudes da vida" figurativizam a circularidade da manivela que ativa a música prazerosa, a ilusão entoativa.
Os versos de Oswald dialogam com o conteúdo verbal do poema de Leminski ("livros de vidro, / discos, issos, aquilos, coisas que eu vendo a metro, / eles me compram aos quilos") e alertam para o mercado de arte: "discos a todos os preços" - de fruidor a consumidor (automatizado, cumpridor da hora do relógio, massa), o ouvinte parece ter perdido a competência de apreender o saber que o sabor da voz em performance guarda. Produzido por Thiago França, o disco de Juliana Perdigão - suas pequenas epifanias, crônicas, declarações - é um convite à abertura do ouvido ao "mundo orecular".

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Oito horas
(Murilo Mendes / Juliana Perdigão)

É a hora do vulcão, é a hora da mazurca,
É a hora da Abissínia, é a hora do bordel,
É a hora de Solange, é a hora do dentista,
É a hora da explosão, é a hora do relógio.

15 janeiro 2019

Trevas

Não fosse Ezra Pound (1885-1972) o autor da frase "os artistas são a antena da raça", o fato de Jards Macalé lançar a canção "Trevas" (adaptação do "Canto I", de Cantos, poema escrito por Pound), na mesma semana em que o governador do Estado do Rio de Janeiro vetou uma performance artística que abordava o modo como mulheres foram torturadas na ditadura militar brasileira, passaria por mera coincidência. "Trevas" demonstra que Jards Macalé está integralmente atento ao presente, ao lado sombrio do presente, do Brasil de 2019 e sua memória do sofrimento acumulado: "Chegamos ao limite da água mais funda", canta Pound/Macalé.
Não é a primeira vez que Macalé dá voz a poema de Pound. Gravado em 1983, mas lançado apenas CD em 1994, o disco Let’s play that traz Jards e Naná Vasconcelos juntos, numa dessas parcerias luminosas da história da canção brasileira. E temos ainda o clarinete de Roberto Guima. Naquela vez foi usado como base o último quarteto da "Ode 274" da Antologia clássica chinesa compilada por Confúcio. Traduzido por Augusto de Campos, via Ezra Pound: "Quem faz, faz bem. / Quem não, tem fim. / Um dom do chão / vem com o grão". Macalé usou a divisão métrica complicada proposta por Pound/Augusto para vocalizar o poema adaptado em canção. Diz a letra: "Quem faz faz bem / Luz de dia ou de noite / Não faz qual sol / Quem não tem fim / Não tem fim / Vem como o grão / E dom do chão".
Interessante observar que aí temos a referência ao sol - "Mão de Rei Wu / não cai, só sua. / Não faz qual sol / luz só de dia." - escreveu Pound, via Augusto. Há um claro contraste entre a "Luz" ("de dia ou de noite", 1983) e as "Trevas" (da "cidade coberta por névoa espessa", 2019). Cabe lembrar o poema "Sol", de Vladimir Maiakóvski, em tradução de Augusto de Campos: "brilhar pra sempre / brilhar como um farol / brilhar com brilho eterno / gente é pra brilhar / que tudo mais / vá pro inferno / este / é o meu slogan / e o do sol". Em 2019, o diagnóstico é o de que o brilho foi sufocado.
Poeta, músico e crítico de literatura, Ezra Pound foi traduzido no Brasil pelos poetas Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. E é essa tradução a utilizada por Jards Macalé para tornar canção uma composição feita nos anos 1970. "O amor não tem pressa, ele pode esperar em silêncio / Num fundo de armário", diria Chico Buarque aqui. Neste sentido, se Marcelo Fróes é o escafandrista que encontrou a demo da composição ao explorar a obra de Macalé, Jards é o sábio que se autoinvestiga e decifra o eco de poemas, "vestígios de estranha civilização", diria ainda Chico. Let’s play that esperou de 1983 a 1994 para ser lançado aos ouvidos do público.
Eis o trecho da tradução utilizado como base da canção "Trevas": "Sol rumo ao sono, sombras sobre o oceano, / Chegamos ao limite da água mais funda, / Às terras cimerianas, cidades povoadas / Cobertas de névoa espessa, jamais desvassada / Por brilho do sol, nem / Quando tende às estrelas, nem / Quando volve o olhar do céu, / Treva a mais negra sobre homens tristes". Se em "Luz" (1983) Jards teve a companhia de Naná Vasconcelos, em "Trevas" (2019) o cancionista está acompanhado do violão de Kiko Dinucci, do baixo de Pedro Dantas, da bateria de Thomas Harres, da guitarra de Guilherme Held e da produção artística de Romulo Fróes.
O trecho em inglês diz: "Sun to his slumber, shadows o’er all the ocean, / Came we then to the bounds of deepest water, / To the Kimmerian lands, and peopled cities / Covered with close-webbed mist, unpierced ever / With glitter of sun-rays / Nor with stars stretched, nor looking back from heaven / Swartest night stretched over wretched men there".
Trata-se de Ulisses, como aparece na Divina Comédia de Dante, visitando o mundo dos mortos: "cidades povoadas cobertas de névoa espessa, jamais desvassada por brilho do sol": é o futuro? É o presente? Ou é o passado que retorna (hoje-lá) e nos torna contemporâneos do sufoco (ontem-aqui)?
É também o Ulisses de Homero que, mesmo alertado por Circe, enfrenta os desafios para tornar-se o que é: o herói humano demasiado humano, esclarecido e trágico, digno de canto e autocanto. A feiticeira Circe aparece nos Cantos de Pound - "...came we then to the place / Aforesaid by Circe [... chegamos ao lugar / Predito por Circe]" -, assim como apareceu em Homero e Ovídio: a filha do sol, a que esclarece sobre os perigos inevitáveis do destino. Por exemplo, foi ela quem aconselhou Ulisses a tapar com cera os ouvidos dos marinheiros e a amarrar-se no mastro do navio e assim sobreviver ao canto das Sereias.
E já que estamos lendo a tradução, lembramos o trabalho feito por José Lino Grünewald: "Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano / Chegamos aos confins das águas mais profundas. / Até o território cimeriano, / E cidades povoadas envolvidas / Por um denso nevoeiro, inacessível / Ao cintilar dos raios de sol, nem a / O luzir das estrelas estendido, / Nem quando torna o olhar do firmamento / Noite, a mais negra, sobre os homens fúnebres".
Não há interesse aqui em discutir a mais eficaz tradução, mas apontar que ambas mantem o clima necessário à canção de Macalé: "Treva a mais negra sobre homens tristes"; "Noite, a mais negra, sobre os homens fúnebres". Noite e treva; tristeza e morte; pares semânticos utilizados para figurativizar o horrível vivido pelo sujeito cancional ("homem de má estrela") de Macalé.
Tratando de um poema cantado, ou seja, de quando o cantor revocaliza as palavras, ou, como diria Luiz Tatit, de quando busca a "entonação embrionária" das palavras, já que toda palavra, antes de escrita, é som, recorro ao texto que Gerald Thomas escreveu para apresentar a tradução de Grünewald: "Cantar um poema já é uma coisa sublime, difícil, quase impossível. Agora, escrevê-lo sem cantá-lo, mas chamá-lo de Cantos, como se escrevê-lo cantado, assim como um compositor surdo, Beethoven, tendo que imaginar sua sinfonia inteira naquelas cinco linhas de uma partitura… ah, isso é trabalho de um Hércules! Ou de um Ulisses ou qualquer outra odisséia qualquer galaxiana, física, metafísica, já que não se pode “quedar” (uso o espanhol porque o português não me parece apropriado: ficar, parar, cair…) nas meias verdades ou nas meias palavras ou meias intenções de um trabalho tão completo, mas tão completo que ele se torna VITAL".
É isso, Jards revitaliza o que é vital em Pound: o sufoco e o ambiente lúgubre do indivíduo em busca de voz. Este o trabalho do cancionista ao equilibrar aparência e profundidade, bossa nova e heavy metal, movimento e passionalidade, guitarra e violão, a fim de apontar o que ameaça e o que é promessa (de ruína): as "almas manchadas de lágrimas recentes", do poema de Pound.
No poema, Tirésias pergunta a Ulisses "Por que, homem de má estrela, / Encaras os mortos sem sol e este reino sem júbilo? / Longe do fosso! Deixa que eu beba o sangue / E vaticina"... "Odisseu, / Retornarás através do rancoroso Netuno, sobre mares turvos / Perderás todos os companheiros". Na canção, a metáfora é aberta por Macalé quando este coloca a própria cabeça numa bacia d'água. As palavras saem sufocadas, torturadas. A performance vocal mimetiza o horror de um "sol rumo ao sono", à naturalização do absurdo.
Para Paul Zumthor, em Escritura e nomadismo, "a performance é a materialização de uma mensagem poética por meio da voz humana e daquilo que a acompanha, o gesto, ou mesmo a totalidade dos movimentos corporais". E acrescenta que "a performance é uma realização poética plena: as palavras nela são tomadas num único conjunto gestual, sonoro, circunstancial tão coerente (em princípio) que, mesmo se distinguem mal palavras e frases, esse conjunto como tal sentido". O trabalho de Jards, deste modo, presentifica um corpo. "A voz emana de um corpo, não somente no sentido psicológico do termo, mas igualmente no sentido em que falamos de corpo social. Na voz estão presentes de modo real pulsões psíquicas, energias fisiológicas, modulações de existência pessoal", completaria Zumthor. O som e a presença de Macalé realizam a performance poética. "Quanto à presença, não somente a voz, mas o corpo inteiro está lá, na performance. O corpo, por sua própria materialidade, socializa a performance, de forma fundamental", segundo Zumthor.
A obra "A Voz do Ralo é a Voz de Deus", do coletivo És uma maluca, torna-se emblema de resistência ao enfrentar a censura e ser apresentada na rua. A canção de Jards torna-se emblema da arte novamente sufocada, neste 2019 que tristemente está apenas começando. "Levanto o olhar pro céu: trevas".
O sol há de brilhar mais uma vez?

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(Jards Macalé / Ezra Pound)

Sol rumo ao sono, sombras sobre o oceano
Cidade coberta por névoa espessa
Jamais devassada por brilho do sol

Chegamos ao limite da água mais funda
Levanto o olhar pro céu, trevas
A mais negra sobre homens tristes