Pode-se
dizer que o uso das marcas da voz, o jeito de escrever poesia mais para ser
lida (e/ou declamada, recitada) em voz alta, e menos para a leitura silenciosa,
teve destaque com a proposta prosódica dos poetas modernistas, tomou força
estético-teórica com a poesia verbivocovisual dos poetas concretos, e mais
tarde foi incorporada pela poesia pós-Tropicália. Isso marca grande parte da
produção poética contemporânea e as pesquisas sobre o suporte da poesia.
O
poeta é instado a performer: neo-griots (vocalizam a história, a memória
coletiva), neo-aedos (vocalizam a própria poesia), neo-rapsodos (vocalizam
poesias compostas por outrem), neossereias (reencantam o mundo pós-humano). Com
isso ganham força os saraus, rinhas, batalhas, disputas vocais tão comuns no
tempo em que a poesia se confundia à própria linguagem.
A
tarefa de transformar a estrutura autotélica da poesia escrita na heterotélica
canção requer do cancionista conhecimentos inteartes. Cantar um poema é
encontrar a entonação embrionária das palavras; é reativar o uso primário da
linguagem. E reafirmar que a palavra cantada é anterior à palavra escrita. No
plano textual, versos viram refrão, há cortes, enxertos e deslocamentos de
palavras. E assim quem canta inventa uma parceria com quem escreveu.
Há
que se louvar quem enfrenta o trabalho de vocalizar
poemas-não-pensados-para-a-voz, poemas feitos para o papel, e aciona os laços
ancestrais de parentesco e parceria entre voz e letra. Imersos na era da
mediação tecnológica, cancionistas tem exercido distinto exercício de registrar
em disco a efêmera e incapturável performance de poesia.
É
o caso de Juliana Perdigão. Se os versos de Galáxias de Haroldo de Campos deu o
título do disco Ó (2016), agora foi
a vez do poema "Anhangabaú" ("sentados num banco da América
folhuda"), de Oswald de Andrade, emprestar a palavra exata. Em Folhuda (2019) Juliana Perdigão
apresenta 12 canções criadas a partir da obra de poetas modernistas e
contemporâneos: Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Paulo Leminski, Angélica
Freitas, Bruna Beber, Arnaldo Antunes, Renato Negrão e Fabrício Corsaletti. O
disco resulta num ensaio sobre a palavra cantada, a poesia oral, a vocalização
de poesia. Ensaio que é apresentado por um sujeito cancional que assume as
folhagens sonoras do reggae, punk rock, bossa nova, e as folhas dos livros de
poesia lidos pela cancionista.
Juliana
escolheu poemas de pouca complexidade lexical, muito próximos à prosa, a fim de
compor canções com mensagens rapidamente recebidas pelo ouvinte, sem perder de
vista certo lirismo diagnóstico e melancólico que marca o sujeito cancional do
disco: ora convocação - "vamos lá, companheiro / vamos lá que eu
tenho pressa, companheiro / o mundo está mudando / você está trancado no
banheiro" ("Mulher depressa", Angélica Freitas e Juliana
Perdigão); ora afirmação - "é macho / e é bicha / e gosta de mulher // que
é mulher / e é macho / e adora homem" ("Felino", Renato Negrão e
Juliana Perdigão); ora advertência - "o açucar da sua voz / não sairá dos
meus ossos" ("Açucar", Fabrício Corsaletti e Juliana Perdigão);
ora reflexão - "abri-vos, arcas, arquivos / súmulas de arquivos, /
fechados, / para que servem os livros?" ("Máquinas líquidas",
Paulo Leminski e Juliana Perdigão); ora convite - "sente-se diante da
vitrola / e esqueça-se das vicissitudes da vida" ("Música de
manivella", Oswald de Andrade e Juliana Perdigão).
De
fato, no disco de Juliana os paralelismos (infinitivo circular em 8) de Murilo
Mendes são os mais metafóricos e se desdobram na polarização política
brasileira atual, chamando atenção para o avanço fascista na Abissínia: "É
a hora do vulcão, é a hora da mazurca, / É a hora da Abissínia, é a hora do
bordel, / É a hora de Solange, é a hora do dentista, / É a hora da explosão, é
a hora do relógio". Cantados uma única vez, acompanhados por instrumentos que marcam o tictac do tempo cronológico, os versos de Murilo se desdobram no
"trem [que] divide o Brasil / como um meridiano", de Oswald. Cabe ao
ouvinte escolher o trem polonês ou o trem das cores caetânico. Aliás, Caetano
Veloso usou o termo "folhuda" na canção "Um sonho". O verso
"fruta flor folhuda" serve bem à apreciação do disco de Juliana
Perdigão: seu canto da "América folhuda".
O poema de Murilo Mendes problematiza os oito eventos ou os oito tempos determinados? A estrutura da fita de moebius dá o ritmo e a velocidade do poema. Juliana opta por cantá-lo próximo ao recitativo. Com pouco alongamento vocálico e marcando na voz quase falada a repetição "é a hora de...". Mecanicismo (pendular) e regularidade tencionam o "x" da questão do poema: o tempo não flui, o tempo retorna, aprisionando o sujeito cancional numa "má infinitude", diria Marx. Por fim, os pares expostos nos versos alexandrinos de Murilo não se anulam. Ao contrário, eles sugerem que a vida é feita da justaposição de eventos negativos e positivos. E que a valoração destes eventos é tarefa do leitor/ouvinte.
Mas dentre os poetas presentes no disco, Oswald foi o que mais recebeu voz:
"Anhangabaú", "Música de manivella", "Noturno" e
"O violeiro". Estes dois últimos poemas se unem numa única
canção-marchinha de fim de carnaval. Todos do livro Pau Brasil (1925). "Música da Manivela", por exemplo,
virou um reggae. A repetição mântrica dos versos "sente-se diante da vitrola
/ e esqueça-se das vicissitudes da vida" figurativizam a circularidade da
manivela que ativa a música prazerosa, a ilusão entoativa.
Os
versos de Oswald dialogam com o conteúdo verbal do poema de Leminski
("livros de vidro, / discos, issos, aquilos, coisas que eu vendo a metro,
/ eles me compram aos quilos") e alertam para o mercado de arte:
"discos a todos os preços" - de fruidor a consumidor (automatizado,
cumpridor da hora do relógio, massa), o ouvinte parece ter perdido a
competência de apreender o saber que o sabor da voz em performance guarda.
Produzido por Thiago França, o disco de Juliana Perdigão - suas pequenas
epifanias, crônicas, declarações - é um convite à abertura do ouvido ao
"mundo orecular".
***
Oito horas
(Murilo Mendes / Juliana Perdigão)
É a hora do vulcão, é a hora da mazurca,
É a hora da Abissínia, é a hora do bordel,
É a hora de Solange, é a hora do dentista,
É a hora da explosão, é a hora do relógio.
(Murilo Mendes / Juliana Perdigão)
É a hora do vulcão, é a hora da mazurca,
É a hora da Abissínia, é a hora do bordel,
É a hora de Solange, é a hora do dentista,
É a hora da explosão, é a hora do relógio.