A relação entre
sereia e cancionista aqui quer situar-se nos debates acadêmicos gerados na
encruzilhada da "imanência versus transcendência" (NIETZSCHE: 2001;
2011), da "performance vocal" (ZUMTHOR: 2010), da "gestualidade
vocal" (TATIT: 1996) e da "vocalização do logos" e
"expressão vocal" (CAVARERO: 2011). Para gerar um conceito de sereia
como estrutura mítico-estética fortemente ligada à cultura brasileira em sua
pluralidade de mitos, línguas, tradições e estéticas, cunhei a expressão
neo-sereia.
A neo-sereia é a
reciclagem antropofágica da sereia mítica. A nova sereia evocada aqui surgiu
para dar conta do instante-já da canção, diante da inexistência de um termo que
compreendesse em si a sinestesia do fato cancional: do breve momento em que o
cancionista é mais que um cantor, intérprete, enunciador e se promove a sereia
singular do ouvinte. Ou seja, a neo-sereia está no interlugar que vai do ouvido
aberto à escuta do ouvinte à boca indiciadora de alguém vivo do cancionista.
Dito de outro, o cancionista é neo-sereia quando canta o ouvinte de modo
singular e essa singularidade vem da disposição (voluntária) do ouvinte em
ouvir o cancionista. A neo-sereia instiga o ouvinte a experimentação da vida.
A
reprodutibilidade técnica me permite pensar essa sereia contemporânea:
resultado da ação do cancionista e do ouvinte; sereia que guarda o mesmo ímpeto
da esfíngica sereia homérica, com o suplemento dos meios técnicos de mediação
de hoje. A ideia de uma transsereia, uma sereia trans-histórica contida no
núcleo duro do gesto de ser cantor, está na base das performances vocais que
aqui analiso.
Sei que o uso do
prefixo "neo", em sua banalização contemporânea, provoca incômodos
epistemológico e filológico. No entanto, como a proposta de um léxico para as
análises de performance vocal é também um dos objetivos deste trabalho, e a
"banalização" da escuta cotidiana, "relaxada" é seu corpus,
creio que o "neo", como o, literalmente, "novo", abrange e
dá conta da tarefa a ser executada. O novo de novo, de cada escuta de
"mesma" canção.
Desse modo, nem
todo cancionista é neo-sereia, mas toda neo-sereia é um cancionista
midiatizado. Procuro demonstrar isso com uma detalhada revisão do mito da
sereia e sua permanência nos modos de escuta contemporânea de canção, quando identifico
não mais uma relação de transcendência entre ouvinte e cantor, mas de
imanência, com este cooperando com aquele na sua expressão imanente, ambos,
cúmplices fratriarcalmente. Assim, por ser a certeza da presença de alguém vivo
- com boca, garganta, úvula, saliva -, a neo-sereia perde qualquer caráter
metafísico e foca na corporalidade, na performance de um corpo que vocaliza sua
unicidade.
A fim de evitar
o uso abusivo do termo, estabeleço uma semiologia da neo-sereia, apontando com
rigor didático as especificidades da categoria. Para isso, através da análise
das canções, proponho uma série de processos constitutivos da construção
metafórica do termo: os mecanismos de artificialização do cantor sendo
neo-sereia, por exemplo. Tais mecanismos alicerçados na mídia utilizada
sustentam a base da poética da neo-sereia.
A neo-sereia não
é um simulacro (BAUDRILLARD: 1991) da sereia, não é um avesso do real. Ao
contrário, é o real do avesso, já que contém em si os sintagmas da sereia
mítica e indicia a presença física de alguém. Ou seja, a neo-sereia devora o
suposto modelo original sem querer atingir a essência deste que inexiste e está
disposta a fingir “deveras” fundindo alquimicamente simulacro e real. Em
síntese, "sujeito teatral" (BARTHES. S/Z, 1992), a neo-sereia revela o "logro magnífico", a
"trapaça salutar" (BARTHES: Aula,
1992) que finca o ouvinte e o cancionista à vida. E é justamente este fincar que assusta e é terrível e belo
na neo-sereia: sua demoníaca capacidade de colocar o ouvinte e o cantor na
vida, no mundo.
Diferente da
musa, cujo canto é mudo aos ouvidos dos comuns mortais e só acessível pela
mediação do poeta ou do rapsodo (CAVARERO: 2011), a sereia decodifica o canto
pretensamente divino (transcendente) oferecendo-o a todos os ouvintes
indistintamente. Por sua vez, a neo-sereia concentra o canto da musa (testemunha
ocular, relatora do relato absoluto) e da sereia (narradora que
"resume" o relato da musa).
É um religare à musa, em forma de evocação, o
que compõe a canção "Musa da música", de Dante Ozzetti e Luiz Tatit.
Do turbilhão das discussões sobre os modos de fazer canção na
contemporaneidade, o sujeito da canção embala (guarda e nina) uma figura de
musa que virá restituir à canção sua potencialidade - "que é capaz" -
de ser-cantante do ouvinte.
Conta, canta,
tenta, sente, mostra, zela, troca e grita são os verbos que abrem cada estrofe
da letra e indiciam a ação da "musa da música", esta entidade que
convida o ouvinte a experimentar a vida. Na voz de Ná Ozzetti (Embalar, 2013) o sujeito, tal como pede
a letra, "aposta na canção", na palavra cantada muito próxima à
palavra falada.
Se a canção
"protela a extinção" do ouvinte e do cantor, a neo-sereia - Ná
Ozzetti cantando e chegando a mim via fones de ouvido do celular - é a
musa-sereia que afirma isso: "Musa da música / Mãe das Américas / Filha da
África-fé / Filha da África fé / Na poética pós / Na genética pré", no carrefour, na encruzilhada do relato
historiográfico com os miasmas da memória mítica, linguística, estética da
cultura brasileira.
***
(Dante Ozzetti / Luiz Tatit)
Conta
Que desponta
Que está pronta
Que é capaz
Canta
Não adianta
Mal levanta
Canta mais
Tenta
Experimenta
Movimenta
Não tem paz
Sente
De repente
Que é urgente
Corre atrás
Mostra
Pra quem gosta
Que aposta
Na canção
Zela
Por aquela
Que protela
A extinção
Troca
A que sufoca
E não lhe toca
O coração
Grita
Que é bonita
A que excita
E dá tesão
Musa da música
Mãe das Américas
Filha da África-fé
Musa da música
Mãe das Américas
Filha da África fé
Na poética pós
Na genética pré