Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
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30 dezembro 2021
Discos de 2021
31 agosto 2021
O navio negreiro
Da primeira das seis partes do poema, Caetano oraliza apenas parte do primeiro verso "Stamos em pleno mar", desprezando todo o excesso romântico castroalvino e focando na tragédia: os "desgraçados", conforme diz o texto, transportados no porão do navio negreiro. Mas é na primeira parte do poema que o eu poemático - "deixai que eu beba / Esta selvagem, livre poesia..." - pede o auxílio das asas do Albatroz, para assim poder planar sobre o navio, ver e cantar o horror: "Que cena infame e vil!... Meu Deus! meu Deus! que horror", diz no final da terceira parte que, assim como a segunda, não tem nenhum verso oralizado por Caetano. Desse modo, ficamos sabendo que, diferentemente da Preta Susana, do romance Úrsula, publicado por Maria Firmina dos Reis em 1859, o eu poemático castroalvino não vive em si o horror do porão. Por sua vez, o texto da canção começa na quarta parte do poema: "Era um sonho dantesco...".
Para Flávio Kothe, "no cânone, ressoam as trombetas da vitória, não da luta dos oprimidos" (Kothe, 2000, p. 275); e "a literatura de Castro Alves faz parte de um processo de neutralização de qualquer revolta e cobrança dos negros" (Kothe, 2000, p. 301). Canônico, patriótico e onipresente na maioria dos livros didáticos, o poema tem recebido críticas tanto pelo seu anacronismo, já que aquilo que o poema roga (o fim do tráfico de pessoas) fora promulgado na Lei Eusébio de Queirós, em 4 de setembro de 1850, embora, na prática, a lei não tenha abolido o tráfico; quanto pela despotencialização do poema que inspirou Castro Alves, a saber: "Das Sclavenschiff", do alemão Heinrich Heine. Para o professor Flávio Kothe, "Castro Alves faz a sua fama básica com um poema que não é dele" (Kothe, 2000, p. 277). Castro Alves pode ter feito o seu poema a partir da tradução francesa de Gérard de Nerval, de 1854: "Le négrier". "A epígrafe que Castro Alves coloca em seu livro Os escravos provém de Heine e está em francês" (Kothe, 2000, p. 279).
Se "no navio negreiro, a única escrita é do livro de contas, que se refere ao valor da troca dos escravos" (Glissant, 2005, p. 17), a propagada intenção castroalvina de "humanizar" os escravizados não se efetiva, já que esses não têm voz no poema e são apresentados sempre a partir da ideologia cristã disseminada no espírito brasileiro do século XIX. Por isso também, é o messianismo romântico, promotor do controverso "levantai-vos heróis do novo mundo", a exigir da vítima a solução para o problema, que Caetano rasura ao inserir na oralização do poema um trecho de um canto de capoeira entoado em coro, formado por Nara Gil, Paula Morelenbaum e Belô Veloso.
Assim, ao "Senhor Deus" e às "preces [que] ressoam", Caetano insere o que de fato importa: o canto do escravizado de África. Se no poema a dança é imposta pelo chicote, na canção, a capoeira - que pergunta e responde "Que navio é esse que chegou agora? / É o navio negreiro com escravos de Angola" - é signo de luta, arte, resistência, ancestralidade. Essa é a rasura revisionista que Caetano faz no poema castroalvino. O arranjo para percussão de Carlinhos Brown também imprime protagonismo àquilo que fora silenciado no poema: a cultura de matriz africana. E Caetano sempre esteve interessado nessa biopolifonia que se espraiou na cultura brasileira.
É preciso notar que a vocoperformance de Caetano tem base no rap. 1997 é o ano também de Sobrevivendo no inferno, disco dos Racionais MC's que redefiniu para sempre o modo de fazer canção no Brasil, pois ritmo e poesia se juntaram para cantar o povo de um lugar até então excluído da indústria fonográfica. Essa informação é importante para pensar o contexto do poema de Castro Alves e sua consequente canonização literária, bem como a revisão crítica desse cânone feita por Caetano num contexto de emergência de vozes historicamente subalternizadas na formação de nossa literatura. Se o texto de Heine é para ser lido em silêncio, o de Castro Alves, tendo a forma da ode, pede a leitura em voz alta. Eis a importância da canção - rap - caetânica: vocaliza o que já era para a voz, mas subverte o lugar de quem fala por trás do texto.
É o apagamento do sujeito escravizado que Caetano ensaia contrariar ao evocar e inserir no corpo do texto castroalvino versos cantados de capoeira. O que o cânone literário apagou, a canção acende. Se "a literatura tem uma dívida moral com o sofrimento no país que ela nunca há de conseguir resgatar" (Kothe, 2000, p. 274), Caetano Veloso reforça sua fé na canção popular, na gaia ciência, no domínio público dos versos do canto de capoeira: a voz do poema de Castro Alves deixa de ser individual para se tornar coletiva no disco.
Castro Alves prefere apelar para Deus, para a Musa (que no disco é dramatizada pela cantora Maria Bethânia), para o Mar. Primeira invocação: "Senhor Deus dos desgraçados!"; segunda invocação: "Dize-o tu, severa Musa"; e terceira invocação: "Ó mar, por que não apagas, / Co'a esponja de tuas vagas / Do teu manto este borrão?". Essa trindade é recolhida na sexta parte do poema: "Meu Deus! meu Deus!"; "Silêncio!... Musa!"; e "O trilho que Colombo abriu na vaga".
Observe-se que a aliteração do verso castralvino "que a brisa do Brasil beija e balança" serve de eco para o final da faixa do disco de Caetano, como que reafirmando a manutenção das práticas do século XIX no final do século XX. Não à toa "Todo camburão tem um pouco de navio negreiro", cantara O Rappa em 1994.
O disco Livro não foi a primeira vez que Caetano Veloso tratou a presença de Castro Alves em seu imaginário de cidadão e artista. Em texto para o Pasquim, de 02 a 09/04/1970, ele escreve: "na Praça Castro Alves o mar está acima do nível da mão do poeta e não há geografia que explique que descreva que estude o azul é do povo como o vermelho e o amarelo" (1977, p. 61); e "o Teatro Castro Alves é do corvo como o parto é dos com dor" (1977, p. 62). Essa última citação refere-se ao lugar do último show que Caetano e Gilberto Gil fizeram antes do exílio forçado pela ditadura civil-militar. O áudio do show ao vivo está registrado no disco Barra 69 (lançado em 1972). Já a primeira citação, a praça como lugar de convergência do carnaval baiano, ressurgiria anos mais tarde, na canção "Aquele frevo axé" (1999): "Meu amor / Ando na praça vazia e espero o sol se pôr / Vejo o clarão se extinguir / Por trás da mão do poeta".
Antes, o poema castroalvino "O povo ao poder" também ressurge revisado por Caetano, que parodia atualizando os versos em "Um frevo novo" (1972), pois o céu não é mais do condor, ave símbolo do movimento romântico do qual Castro Alves é ícone: "A praça Castro Alves é do povo / Como o céu é do avião / Um frevo novo, um frevo, um frevo novo / Todo mundo na praça e muita gente sem graça no salão", canta o tropicalista Caetano, valorizando a força da rua, espaço de disputas narrativas; valorizando o carnaval.
"Nossa dor, meu amor, é que balança nossa dor, o chão da praça", diz o verso de "Chão da praça", de Fausto Nilo e Moraes Moreira (1978), cantado por Caetano Veloso em Cê ao vivo (2007). "Dia 13 de maio em Santo Amaro / Na Praça do Mercado / Os pretos celebravam / (Talvez hoje inda o façam) / O fim da escravidão", canta em "13 de maio" (Noites do Norte, 2000). A praça é o lugar da voz caetânica. Voltarei a essas outras presenças de Castro Alves na obra caetânica noutro momento.
Importante destacar ainda que o final de "O navio negreiro" - notadamente o verso "Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!" - oferece o mote para "O herói" (Cê, 2006): "nasci num lugar que virou favela / cresci num lugar que já era / mas cresci a vera / fiquei gigante, valente, inteligente / por um triz não sou bandido / sempre quis tudo o que desmente esse país / encardido". Esses versos parecem reafirmar a "fatalidade atroz", o destino dado aqueles que vieram para cá escravizados, mas que, "por um triz", cumpre outra estrela, subverte a fatalidade: "descobri cedo que o caminho / não era subir num pódio mundial / e virar um rico olímpico e sozinho / mas fomentar aqui o ódio racial / a separação nítida entre as raças / um olho na bíblia, outro na pistola / encher os corações e encher as praças / com meu guevara e minha coca-cola".
Quem fala em "O herói" é uma voz em primeira pessoa - nasci, cresci, descobri. Voz que depreende-se de uma tomada de consciência do sujeito cancional, voz que rejeita, e aqui a citação a Castro Alves é direta, ser "a brisa que o Brasil beija e balança". Voz que canta: "já fui mulato, eu sou uma legião de ex-mulatos / quero ser negro 100% americano / sul-africano, tudo menos o santo / que a brisa do Brasil beija e balança".
Essa aparente recusa à mestiçagem pode estranhar à primeira audição, já que o pensamento mestiço é marca e defesa recorrente na obra de Caetano Veloso, mas ela surge aqui mais como diagnóstico de um novo tratamento dado às questões étnico-raciais no país. Ele mesmo já cantara em "Ele me deu um beijo na boca" (Cores, nomes, 1982): "Mas eu sou preto, meu nego / E sei que isso não nega e até ativa o velho ritmo mulato". Mantêm-se a lucidez e a utopia tropicalista, a lírica e a participação, a subjetividade e o engajamento. E Caetano Veloso esboça essas reflexões promovendo a revisão crítica do canônico, a partir do conterrâneo Castro Alves.
A poesia retórica, repleta de hipérboles e antíteses, embriaguez verbal, força da "inspiração" do gênio, "improvisos" que forçam à leitura em voz alta do texto castroalvino, serve para Caetano colocar em prática a lição de Maiakóvski: "tirando os monumentos do pedestal, devastando-os e virando, nós mostramos aos leitores os Grandes por um lado completamente desconhecido e não estudado" (1984, p. 167).
CANDIDO, Antonio. “O Direito à Literatura” in: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004.
GLISSANT, Édouard. Poétique de la Relation. Poétique III. Paris: Gallimard, 2005.
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Enilce do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013.
HEINE, Heinrich. Heine, hein? Poeta dos contrários. Trad. André Vallias. São Paulo: Perspectiva: Goethe-Institut, 2011.
KOTHE, Flávio R. O cânone imperial. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000.
MAIAKÓVSKI, Vladimir. Como fazer versos. In: A poética de Maiakóvski. Org. e Trad. de Boris Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 1984.
VELOSO, Caetano. Alegria, alegria. Uma caetanave organizada por Waly Salomão. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, 1977.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
31 julho 2021
Os três mal-amados
Fato é que o poeta, que Caetano apresenta como "o maior poeta brasileiro surgido depois do modernismo, pertencente, pela idade, à geração de 45, mas em tudo oposto a ela: um poeta das coisas vistas com olho lúcido e expressas em linguagem seca e rigorosíssima" (Veloso, 1997, p. 212-213) e afirma como "meu poeta favorito - e o que mais extensamente li, (...) diante dele tudo parecia derramado e desnecessário" (Veloso, 1997, p. 339); esse poeta que escrevera “saio de meu poema / como quem lava as mãos” (Melo Neto, 1999, p. 93) afirmou: “É essencial em poesia ter um som, uma ligação com a fala. Mas é uma dicção diferente, que não é cantável. Realmente não gosto de música, nunca gostei. Sou um poeta visual, não auditivo. A única música que gostei foi o flamenco, que é dissonante, pois o sujeito canta no extremo da voz” (Gazeta Mercantil, 1997).
João Cabral de Melo Neto sabia que a noção de lírica mudara no momento em que a poesia escrita passou a superar a poesia cantada na cultura. O corpo e a voz do poeta tinham um modo-de-usar-e-dizer o poético que não será o mesmo no papel. Cabral quis limpar a palavra escrita de toda reminiscência de um tipo de lirismo próprio à voz. Mas ele sabia também que a música, a entonação implícita persiste nas palavras, mesmo escritas. Seu trabalho foi o de escamotear este impulso vocal externo ao poema escrito e iluminar a palavra no suporte da página.
É por esta perspectiva que entendemos o que Paul Zumthor escreve em A letra e a voz: "O texto 'literário' é fechado: simultaneamente por causa do ato que, material ou idealmente, o circunscreve e na intervenção de um sujeito que efetua esse fechamento. Mas essa intervenção provoca o comentário, suscita a glosa, de modo que, nesse nível, o texto abre-se, e um dos traços próprios à 'literatura' é sua interpretabilidade. O texto tradicional, em contrapartida, pelo simples fato de que transita pela voz e pelo gesto, só pode ser aberto, numa abertura primária, radical, a ponto de escapar, por lampejos, à linguagem articulada; por isso ele se esquiva à interpretação, pelo menos a toda interpretação globalizante" (1993, p. 283-284).
João Cabral tinha consciência da potência de nossa canção popular e afirmou: "Eu acho que a música popular pode ajudar enormemente a poesia, não no sentido de esta poesia vir a ser melhor, mas no sentido de aumentar a propagação da poesia" (O Globo, 27/10/1973). E desde 1966 quando Airton Barbosa e Chico Buarque musicaram Morte e Vida Severina (1955) para o teatro, até o disco Transfiguração (2006) da banda Cordel do Fogo Encantado, em que a vida de Severino é base para a canção "Morte e Vida Stanley", passando pelo disco de Cátia de França, Vinte palavras ao redor do sol (1979), com título inspirado nos versos de João Cabral de Melo Neto - "Falo somente com o que falo: / com as mesmas vinte palavras / girando ao redor do sol", e pela citação caetânica (1989), pelo disco Severino (1994) da banda Paralamas do Sucesso, a antilírica cabralina tem presença na canção popular. Destaque-se aqui a declamação feita por José Paes de Lira, Lirinha, então vocalista do Cordel do Fogo Encantado, de trechos do poema em prosa "Os Três Mal-Amados" (O palhaço do circo sem futuro, 2002).
No texto “o que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”, Ruth Finnegan sugere diferenças e aproximações entre canto, declamação e recitativos, três modos da palavra cantada, entre outros. A partir de um conceito amplo de canção, a autora, para quem “quando você procura ‘canção’ no catálogo de uma biblioteca, encontra listas intermináveis de textos predominantemente verbais. É neles que se crê poder encontrar a verdadeira realidade – e não certamente na efêmera e incapturável performance” (Finnegan, 2008, p. 20-21), ajuda-nos a compreender a substância complexa e fugidia da performance. “A performance cantada é evanescente, experimental, concreta, emergindo na criação momentânea dos participantes. Como bem formulou Peggy Phelan, ‘a única vida da performance é no presente’” (idem, p. 24). Não é essa experiência o que vivem Lirinha e seu público durante “Os Três Mal-Amados”?
Sintonia, êxtase, catarse são termos apropriados. Ou, melhor, "o ritmo constitui a força magnética do poema. Por suas repetições, a voz sistematiza uma obsessão; pela sincope, ela faz explodir os signos em uma simbolização virtualmente histérica: transmite-se assim um conhecimento liberto de temporalidade, identificado com a própria vida, palpitação imemorial” (Zumthor, 2010, p. 185). No caso, a repetição é marcada por "O amor comeu..." presente no início das frases selecionadas do personagem Joaquim. Não é à toa, já que ele também aparece na "Quadrilha" de Carlos Drummond de Andrade, referência para Cabral. Lirinha deixa de fora as queixas de João e Raimundo sobre Teresa e Maria, respectivamente.
Lirinha realiza um trabalho de antologista, posto que seleciona quais partes do poema oralizar, encarnando a figura do repentista. Das onze falas de Joaquim, o cancionista escolhe três - as falas mais viscerais? O timbre potencializa o cognitivo, o ouvinte é instado à ação. A declamação visceral do vocalista Lirinha ficou famosa durante a turnê da banda e seu coro sempre emocionado. Se no poema lemos os nomes dos três personagens, na performance temos uma multidão de vozes comidas pelo amor.
Quando Lirinha chega à derradeira fala - "O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - o público já está seduzido e extasiado. Neste jogo entre expressão e comunicação, Lirinha aprofunda e embaralha o que João Cabral anotara na orelha do livro Duas águas: "de um lado, poemas para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aprofundamento temático quase sempre concentrado exige mais do que leitura, releitura; de outro lado, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos" (1956).
Se por um lado, e de modo mais comumente praticado, temos cancionistas que cantam poemas escritos, vertendo poesia em letra, permitindo a reminiscência mais rápida do texto; por outro lado há cancionistas que deglutem, torcem, parodiam a poesia escrita antes de torná-la letra de canção. Em ambos os casos a parceria entre poetas e letristas é firmada. Mas o segundo caso exige de quem escuta um trabalho maior, a fim de aprofundar o registro da autoria de quem labora, citando direta ou indiretamente, o poema escrito ao cantá-lo. Ao que parece, nestes casos a leitura da poesia demorou mais, não se esgotou na primeira vez, quando o ímpeto de cantar, dizer o texto em voz alta aparece. Há aqui um processo de devoração do conteúdo de leitura acumulado. Em "Os Três Mal-Amados" Lirinha embaralha tais categorias com precisão.
FINNEGAN, Ruth. O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”. MATOS, Cláudia Neiva de; TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS, Fernanda Teixeira. Palavra cantada: ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
MELO NETO, João Cabral. Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1999.
______. Música. Gazeta Mercantil, 28/12/1997. Documento on-line não paginado. Disponível em: http://www.tirodeletra.com.br/musica/ JoaoCabraldeMeloNeto.htm. Acesso em: 09 ago. 2021.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a "literatura" medieval. Trad. Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
______. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat, Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
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O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome. O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos. O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
30 junho 2021
Vagalumes
Arnaldo é um artista que desde o começo de sua obra enfrenta o risco, porque ele cria numa clave de experimentação verbivocovisualperformática que transita por variados suportes e linguagens. “Assim como há os poemas que dependem de um trabalho gráfico-visual, há aqueles mais voltados à oralidade, onde as assonâncias e o ritmo têm papel fundamental. Alguns beiram a linguagem da canção. Nas performances poéticas que apresento, costumo explorar diferentes registros de emissão vocal das palavras – faladas, cantadas, entoadas, berradas, sussurradas, incorporando ruídos – dando a elas novas sugestões de sentidos”, diz ele na mesma entrevista.
Paralela à discografia autoral, a presença da verve letrista de Arnaldo Antunes na discografia da cantora Marisa Monte é recorrente. Ela abre seu primeiro disco MM (1989) com “Comida”, de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto; o segundo disco Mais (1991) começa com a radiofônica “Beija eu”, de Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Arto Lindsay; em 1994, no disco Verde, anil, amarelo, cor de rosa e carvão, Marisa canta “Alta noite”, de Arnaldo Antunes, além de registrar a assinatura dos dois em “De mais ninguém” e “Bem leve”; antes, no projeto Nome (1993), de Arnaldo Antunes, ela coloca voz em “Cultura”, “Carnaval”, “Direitinho” e “Alta noite”; e em Memórias, crônicas e declarações de amor (2000), os dois assinam “Não vá embora” e dividem com Carlinhos Brown a autoria de “Não é fácil” e “Água também é mar” – além de Arnaldo oralizar trecho do livro Primo Basílio de Eça de Queiróz em “Amor, I love you”, de Marisa Monte e Carlinhos Brown.
Brown é o outro eixo de um tripé sonoro importante. Com o projeto Tribalistas (2002 e 2017) o trio se afina definitivamente e sacode o mercado musical brasileiro. A afinação marca também os trabalhos individuais dos três, com participações, coproduções, etc. Ainda na discografia de Marisa Monte, Universo ao meu redor e Infinito particular (2006) e O que você quer saber de verdade (2011) são discos que registram a sonoridade da tribo.
A parceria com Arnaldo Antunes se mantém em Portas, disco que Marisa Monte lança no pandêmico 2021. Para voltar à questão inicial, ou seja, a musicalização de poemas, destaco, destaco “Vagalumes”, canção que tem por base o poema “On-off”, publicado por Arnaldo no livro Algo antigo (2021). “Vaga-lume”, escrito assim com hífen, é palavra que encerra o poema “On-off”, concluindo um ciclo verbivisual em que forma é conteúdo e exige a imaginação do leitor para o jogo lúdico das aproximações sonoras das palavras.
A metáfora é certeira: o vaga-lume é o “chispa chama” que liga e desliga – daí o “on-off” com hífen – a memória (crítica) do leitor. A fim de figurativizar o ritmo acelerado entre presença e ausência visual do vaga-lume, o poema é composto por versos trissílabos, mesma estrutura utilizada por Manuel Bandeira no famoso e veloz ritmicamente “Trem de ferro”. Ou seja, imitando o “pisca-pisca”, os versos com três sílabas poéticas imprimem cadência e alternância rápida entre sílabas fortes e fracas. Eis o poema do livro:
recendeia
descandeia
refaísca
desfagulha
recentelha
desatiça
recintila
descorisca
relampeia
desestrela
reacende
pisca-pisca
reluzente
desilude
renitente
vaga-lume
Marisa Monte sabe que o quarteto é forma clássica eficaz à oralização. As quadrinhas guardam nossa filosofia popular. Ao musicar o poema, os versos são separados em grupos de quatro e cantados emulando um fado, numa rara mudança no tom rítmico que marca o disco Portas do começo ao fim. Segue-se a sequência do poema até “reacende”, quando, ao invés de cantar “pisca-pisca” (o verso ímpar, o verso que rompe com a reiteração on-off das iniciais 're' e 'de' das palavras justapostas), Marisa Monte salta para “reluzente / desilude / renitente / vaga-lume”.
Em seguida, dentro do clima sonoro nostálgico da melodia – sustentada pelo meticuloso trabalho de Marisa Monte no violão; Dadi nos ukulele, baixo, piano Fender Rhodes; Davi Moraes nos violão, guitarra, bongo, shaker, unha; e Pedro Baby com guitarra Fractal e shaker –, a palavra “manhã” é repetida para fazer as vezes de refrão. É assim que o que era sugestão no poema torna-se luz branda, acende e permanece solar, bisando uma “canção de amor” – essa fórmula em que textos de rápida comunicabilidade são emoldurados em alongamentos das vogais e batida lenta, tão presente em nosso cancioneiro.
“Para a canção, acabei criando uma parte nova, que não consta no poema original como está no livro”, diz Antunes na entrevista a Barão. Assim, um trecho, digamos, mais narrativo-figurativo foi acrescentado ao texto do poema. Volta o pisca-pisca suprimido: “Pisca-pisca pesca o olho com a luz da sua isca / Quando apaga recomeça como o ar que se respira / Fogo fôlego varia como água que respinga / Uma coisa tão pequena pode transformar a vida”. Desse modo, a letra da canção explica para o ouvinte a metáfora do poema; o que era latência e ferocidade – os pares significantes, a promessa não cumprida da luz na escuridão – é diluído na manhã reconfortante que a voz bonita da cantora engendra.
Ao piscar, o vaga-lume nos lembra do real que resiste à ilusão da luminosidade. A dúvida que o vaga-lume representa torna-se promessa da felicidade. O vagalume é reduzido a índice da nostalgia de um suposto espaço/tempo idílico que a voz de acalanto promete restituir. O plural no título da canção parece indicar a comunhão entre quem ouve e quem canta. Para usar um elemento que Marisa Monte ostenta na capa do disco Portas, a cantora apresenta uma “chave” de leitura. Mas, se para Pasolini e Didi-Huberman, os vaga-lumes resistem e sobrevivem ao excesso do progresso vazio com a politização de nossa capacidade humana de imaginar, como acontece no poema “On-off” de Arnaldo Antunes, na canção “Vagalumes” essa capacidade é subestimada.
Temos no Brasil uma forte tradição de musicalização/oralização de poesia. O mesmo Arnaldo Antunes, por exemplo, já musicou poema de Augusto dos Anjos sem detrimento da densidade estruturante da poesia em si, ao contrário, atualizou a força do texto. Também Marisa Monte musicou poema de Octávio Paz em versão de Haroldo de Campos e potencializou o texto. Nesses casos, ambos demonstram que, ao encontrar e vocalizar a melodia imanente no arranjo de palavras, quem canta atua a fim de singularizar e expandir a experiência estética do poema.
Obviamente, o texto para ser lido/cantado requer tratamento próprio e diferente do texto para ser lido/visto na página do livro, mas ambos são expressões de uma mesma força motriz, a poesia. No caso de “On-off”, ou melhor, de “Vagalumes”, a potência perene da poesia, o que faz com que o leitor retorne a ela, é turvada, alienada.
O vagalume que a poesia é fica em segundo plano. Se o ouvinte volta a ouvir a canção é para ter conforto – o que quer que isso signifique no Brasil de 2021. Parafraseando o poema de Carlos Drummond de Andrade, musicado por Milton Nascimento, Marisa Monte canta uma canção que faz adormecer os homens e as crianças. “Vagalumes” é puro acalanto. O poema “On-off” não.
Não é a primeira vez que Marisa Monte e Arnaldo Antunes “ajustam” um poema deste último para uma canção. No disco O que você quer saber de verdade temos “Amar alguém”, do livro N.D.A. (2010). Daquela vez, se o título do poema foi mantido para nomear também a canção, a seleção e a montagem dos versos foram radicais. O que poderia ser lido como um poema sobre o amor na contemporaneidade, com toda a complexidade que o tema exige, verteu-se em mais uma letra agradável, positiva, tranquilizadora. Novamente a promessa de conjunção amorosa dá o tom.
Trechos do poema como “ninguém comanda a tentação que tem / cupido não divulga quando vem / deixando o alvo tenro sem porém”, ou “os corpos vivos sofrem atração / apaixonados não têm coração”, ou ainda “amar é só continuar querendo / embora cause tanto sofrimento” não são cantados. Muito Apolo, pouco Dionísio; novamente, muita luz, pouca sombra.
A canção “Amar alguém” é assinada por Arnaldo Antunes, Dadi e Marisa Monte. No canto, mantem-se a estrutura dos quartetos presentes no poema do livro. Mas a partir da terceira estrofe os versos passam a se misturar, vindos das outras estrofes do poema. Mais do que refrão, o verso eficaz para postagens em redes sociais – “Amar alguém só pode fazer bem” – é repetido várias vezes, apaziguando qualquer ameaça de dor.
No poema, Arnaldo Antunes aciona a tradição de poemas de amor ao evocar os versos “transforma-se o amador na coisa amada, / por virtude do muito imaginar”, de Luís de Camões; bem como a tradição da canção de massa, posto que o poema termina com “por isso então não chora mais, meu bem”. A referência a “não sofra, não pense, não chore mais, meu bem”, de “Esqueça (Forget Him)”, versão de Roberto Côrte Real para canção de Mark Anthony, é evidente. Essa canção, eternizada na voz de Roberto Carlos, foi gravada por Marisa Monte para a trilha sonora do filme A taça do mundo é nossa (2003).
A rede que alimenta a poesia de livro e a canção popular brasileira é vasta e desierarquizada. Marisa Monte, cantora de voz afinada e de emissão perfeita forjada nos estudos de canto, na Portela e na escuta das canções de rádio, demonstra ter consciência disso. Basta ouvir sua discografia. Porém, nos dois casos aqui destacados, identificamos um investimento na seleção e positivação de palavras reconfortantes, uma domesticação da ferocidade da linguagem poético-cancional. Domesticação incômoda especialmente num momento em que, como diria Maiakovski, “não é tempo / de palavrinhas amorosas”.
Gisele Barão entrevista Arnaldo Antunes: https://rascunho.com.br/entrevista/a-criacao-me-sustem-me-da-saude/
(Marisa Monte / Arnaldo Antunes)
Chispa chama
Recendeia
Descandeia
Refaísca
Desfagulha
Recentelha
Desatiça
Recintila
Descorisca
Relampeia
Desestrela
Reacende
Reluzente
Desilude
Renitente
Vagalume
Manhã
Pisca-pisca pesca o olho com a luz da sua isca
Quando apaga recomeça como o ar que se respira
Fogo fôlego varia como água que respinga
Uma coisa tão pequena pode transformar a vida
Manhã
30 abril 2021
Triste Bahia
31 março 2021
Dias dias dias
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1978.
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006.
MENEZES, Philadelpho. Poética e visualidade: uma trajetória da poesia brasileira contemporânea. Campinas: Unicamp, 1991.
NAVES, Santuza Cambraia. Velô, de Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.
SANTAELLA, Lucia. Convergências: poesia concreta e tropicalismo. São Paulo: Nobel, 1986.
28 fevereiro 2021
Escapulário
Por exemplo, em 1971, Caetano publica um poema-montagem no jornal contracultural Flor do mal com várias citações, colagens, referências e, entre outras visões da nacionalidade, ele justapõe: "não quero o reino dos céus: / só me interessa o que não é meu. // a cruz do crucificado: / o chico e o roberto carlos // mesmo do lado de fora: / não permita deus que eu morra" (VELOSO, 1977, p. 82).
É esse Caetano que cita e ressignifica o aforismo oswaldiano "só me interessa o que não é meu" que quero comentar, ao propor uma leitura da canção "Escapulário" (Joia, 1975), feita a partir do poema homônimo de Oswald (Pau Brasil, 1925). Nele a herança católica brasileira é devorada através do uso parodístico e recontextualizado da oração "Pai Nosso", como veremos. Os discos complementares Joia e Qualquer coisa são acompanhados por manifestos. Na terceira estrofe (ou parágrafo; ou aforismo) do "Manifesto do movimento Joia" lemos: "respeito contrito à ideia de inspiração. jóia. meu carro é vermelho. inspiração quer dizer: estar cuidadosamente entregue ao projeto de uma música posta contra aqueles que falam em termos de década e esquecem o minuto e o milênio". Reafirma-se o questionamento da herança: gesto oswaldiano. Daí também porque Caetano evocar e embaralhar (supostos) opostos - Chico Buarque e Roberto Carlos - no poema de 1971.
Se "Escapulário" é o poema que abre o livro Pau Brasil, a canção homônima, ou, o poema cantado em ritmo de samba, com o coro de As gatas (do programa do Chacrinha), a percussão do grupo Cream Crackers e a bateria de Tuty Moreno, fecha o disco Joia de Caetano. Parece coerente que depois de evocar a musa - "Minha mulher" -; cantar os elementais da paisagem brasileira - "Guá", "Pelos olhos", "Asa, asa", "Lua, lua, lua, lua" -, singularizar a potência da gente que vive aqui - "Canto do povo de um lugar", "Pipoca moderna", "Joia" - e abrir-se ao mundo - "Help", "Gravidade", "Tudo, tudo, tudo", "Na asa do vento", o instinto de nacionalidade de Caetano engendre um samba, "o grande poder transformador", como cantará em "Desde que o samba é samba" (Tropicália 2, 1993). "Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança", escreveu Oswald no "Manifesto da Poesia Pau Brasil".
Está posta a discussão da poesia que, segundo Oswald, "existe nos fatos". Os significantes do pensamento e da poética, logo, da ética e da estética oswaldianos espraiam-se de modo singular na obra de Caetano. E "Escapulário", com sua des-ressacralização do sagrado (a oração), pelo profano (o samba), é um bom exemplo disso. Caetano entende a "rubrica" deixada por Oswald na edição de 1925 impressa pelo "Sans Pareil" de Paris: "Pau-Brasil. Cancioneiro de Oswald de Andrade". Ou seja, Caetano vocoperforma um texto que pede a voz, a vocalização, o corpo carnavalizado do sujeito poético. Caetano realiza o desejo oswaldiano, a saber: "a carnavalização antropofágica que rompe com o dominador usando-o satiricamente como a própria arma de luta", elabora Bina Friedman Maltz (1993, p. 10).
Mas a relação entre os dois poetas tem mais filigranas de intimidade. Como não reconhecer nos versos de "Enquanto seu lobo não vem" (Tropicália ou Panis et circensis, 1968) - "Vamos passear na floresta escondida, meu amor / Vamos passear na avenida / Vamos passear nas veredas, no alto meu amor / Há uma cordilheira sob o asfalto / (Os clarins da banda militar...) / A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas / (Os clarins da banda militar...) / Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas / (Os clarins da banda militar...)" - ecos carnavalizantes, irônicos de "Na avenida / A banda de clarins / Anuncia com os seus clangorosos sons / A aproximação do impetuoso cortejo" (Pau Brasil)? E não é a mesma avenida que no final de O santeiro do Mangue surge: "Não há mais o Mangue, dizem / - Aquela nojeira! / Puseram por cima do Mangue Timoschenko / Os lustres / Duma avenida ilustre"?
Do mesmo modo que os versos "Nem quero saber se o diabo / Nasceu foi na Bahia / O trio elétrico / O sol rompeu / No meio dia" ("Atrás do trio elétrico") parecem parodiar o aforismo 13 do “Manifesto antropófago”, que diz: “Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará”. Se Oswald escreveu esse aforismo inspirado no maxixe “Cristo nasceu na Bahia”, de Sebastião Cirino e Antônio Lopes de Amorim Diniz (Duque), de 1926 – “Dizem que Cristo nasceu em Belém”, diz o primeiro verso da letra –, Caetano inverte as potências e tenciona o polo diabólico, amalgamando literatura e canção (cultura popular), gesto modernista condensado no aforismo 17 “Só podemos atender ao mundo orecular”, ou seja, fazer do ouvido oráculo, restituir a ontológica potência vocal da poesia, que Caetano mantém e desenvolve.
Caetano Veloso é baiano de Santo Amaro, autor dos versos "O carnaval é invenção do diabo / Que Deus abençoou / Deus e o diabo no Rio de Janeiro / Cidade de São Salvador / (...) / Cidades maravilhosas / Cheias de encantos mil / Cidades maravilhosas / Dos pulmões do meu Brasil" ("Deus e o diabo"), que, por sua vez, ao espelhar a Bahia no Rio, parecem desdobrar o aforismo dois – “O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança” – do “Manifesto da Poesia Pau Brasil”. Essa horizontalidade entre o maxixe e Wagner interessou a Oswald e repercute na obra de Caetano.
Voltando a tratar de "Escapulário", e ampliando o jogo intertextual oswaldiano, como não identificar no pedido do sujeito do poema - "Dai-nos Senhor" -, a súplica de Eduleia, personagem de O santeiro do Mangue? "Onde estás Senhor que não ouves o canto sangrado da prostituta, a prostituta que quer sair desta vida, que não faz para comer", clama aquela a quem só restam "a cachaça e o amô", ao invocar o corrosivo Jesus das Comidas, que, por sua vez, ao final do colóquio, diz "Eu me recolho ao Corcovado", revelando o Senhor do "Pão de açucar" a quem o sujeito de "Escapulário" roga. Além disso, na "Oração do Mangue", temos "os braços parados do Cristo / do Corcovado". Essa circularidade de significantes, essas autorreferenciações via assimilação crítica, também ocorrem com frequência no cancioneiro de Caetano. São muitos os versos retornados, reelaborados.
Podemos supor ainda que é dos versos de O Santeiro ("Tem por sentinelas / Equipagens e estrelas / Taifeiros madrugadas / E escolas de samba") que Caetano recolhe o ritmo eficaz para a canção "Escapulário": o samba! Note-se que o termo "escapulário" aparece em O santeiro do Mangue, quando o Coro canta "Vam fudê vam / Vam buchê vam / Temos um escapulário aqui / E duas troquesa lá / Vem cá". Do mesmo modo que a referência ao determinismo conformista religioso ecoa em "Será feita a sua vontade" no trecho "Uma criança não tem defesa / Nasceu norro / É fêmea / O que ela vai ser? / O que a sociedade mandar / Será feita a sua vontade / É destino / Das classes / Menos favorecidas". Para o saudoso professor Renato Cordeiro Gomes, "a este teocentrismo, Oswald, à maneira de Brecht, opõe o sociocentrismo. Informado pela filosofia marxista, vê a religião como ópio do povo, motivo de alienação e instrumento para manter imutável uma ordem social injusta, de privilégios, comprometida com a sociedade capitalista, burguesa e cristã" (1985, p. 29-30).
Percebe-se que não é à toa que O santeiro do Mangue é dedicado à "poesia em Cristo" de Murilo Mendes e Jorge de Lima. Eis o polêmico Oswald em ação: "O pau nosso de cada dia", diz um São Tesão em sua contra-ideologia; "O pau nosso / Dai-nos hoje", diz o Coro das Mulheres de Jerusalém. Ou seja, "efetua-se um jogo de forças: a questão religiosa permanece como um substrato que borra a superfície do texto, como num jogo dramático entre coadjuvante e protagonista" (GOMES, 1985, p. 34). Interações dialéticas, tomemização do tabu, assim como quando Oswald nomeia Seu Olavo o santeiro de seu poema dramático. Uma referência ao "príncipe dos poetas" Olavo Bilac? "Desde Bilac / Somos internacionalistas e portugueses juniors", escreve no poema "Estrondam em ti as iaras"; "Por que será que só no Mangue inda compra santo?", pergunta em sua ópera-chanchada. "Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses", defende no aforismo 24 de seu "Manifesto antropófago". Que poesia é essa que circula no Brasil? A quem ela se destina? De quem? Por quem? "O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito", escreve Oswald no "Manifesto da Poesia Pau Brasil".
Há ainda a crítica ao modo de vida burguesa nos versos "Eu quis cantar minha canção iluminada de sol / Soltei os panos sobre os mastros no ar / Soltei os tigres e os leões nos quintais / Mas as pessoas na sala de jantar / São ocupadas em nascer e morrer" (“Panis et circenses”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil) que, sintomaticamente, repercute por reminiscência o aforismo "A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.", do "Manifesto da Poesia Pau Brasil". Ou seja, a pregnância da obra de Oswald na obra de Caetano é vasta e significativa.
Poderia ainda listar diálogos entre os versos "Mucosa roxa, peito cor de rola / Seu beijo, seu texto / Seu queixo, seu pelo / Sua coxa" ("Deusa urbana", Cê, 2006) e o sexo no Mangue: "Mucosas / (...) / Cor de coxa nua"; entre o Mangue enquanto "desafogo dos machos, válvula de garantia das famílias e gáudio honesto dos imperialistas em trânsito" e o brado "Seja imperialistas!", da canção "Língua" (Velô, 1984) - canção, aliás, que tem o enigmático "Será que ele está no Pão de Açúcar?" - ele quem? O Jesus das comidas de O Santeiro do Mangue? Esse poema dramático que, assim como Caetano citou Gonçalves Dias no poema de 1971, diz: "Ó leques das Palmeiras do Mangue / Suave Mangue / Sob o cristal da noite estelar / Pareceis abonar as felicidades meretrícias / Que psalmodiam / Com Deus me deito / Com Deus me levanto / Esmeraldas noturnas / Para os caçadores dos palmares do Mangue".
É conhecida a paródia "Minha terra tem palmares / onde gorjeia o mar" ("Canto de regresso à pátria", de Pau Brasil, 1925) que Oswald faz para "Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá" ("Canção do exílio", Primeiros cantos, 1847), de Gonçalves Dias. Cânone em constate revisão é um gesto antropófago de Oswald, de Caetano, quando canta a idílica juventude na terra natal: "Itapuã / Quando tu me faltas, tuas palmas altas / Mandam um vento a mim / Assim, Caymmi", canta em "Itapuã" (Circuladô, 1991).
Caetano regravou a canção "Escapulário" no disco Abraçaço ao vivo (2014), quando forças ultraconservadores novamente começaram a ameaçar a democracia e a utopia antropofágica defendida por Oswald e Caetano. Sintomaticamente, "Escapulário" aparece entre as canções "Estou triste" e "Funk melódico", ou seja, entre o diagnóstico e a terapia: a metáfora - a poesia, que "existe nos fatos". É bom lembrar que a capa do disco Joia foi censurada pela ditadura civil-militar na época do lançamento. Os corpos nus do cancionista, de Dedé (mãe de seu filho) e Moreno (seu filho) desenhados incomodaram a pudica sombra desumana dos moralistas.
A pergunta da canção "Podres poderes" (Velô, 1984), que aparece como síntese do poema dramático oswaldiano, ainda tem pertinência: "Será que nunca faremos senão confirmar a incompetência da América católica, que sempre precisará de ridículos tiranos?". Essa parceria crítica entre Oswald de Andrade e Caetano Veloso finca posição aqui. Do mesmo modo que, se O santeiro do Mangue termina com um canto de esperança e desejo de uma sociedade onde "não existam mais os reis do Mangue", nem "senzalas Atlânticas", a obra de Caetano empenha-se no "otimismo programático", conforme afirmou na live feita com Paul B. Preciado, sob mediação de Ángel Gurría-Quintana para a FLIP em 05 de dezembro de 2020.
ANDRADE, Oswald de. O Santeiro do Mangue. São Paulo: Globo, 1991.
GOMES, Renato Cordeiro. Plural de vozes na festa (?) do Mangue - uma leitura de O santeiro do Mangue, de Oswald de Andrade. Dissertação de Mestrado. PUC-Rio, 1985.
MALTZ, Bina Friedman. Antropofagia e tropicalismo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1993.
VELOSO, Caetano. Alegria, alegria. Uma caetanave organizada por Waly Salomão. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, 1977.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das letras, 1997.
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