O 26º Prêmio da
Música Brasileira cumpriu a promessa de homenagear Maria Bethânia em seus
50 anos de ofício. A celebração reuniu cancionistas e atores - gente do palco,
esse quintal de Bethânia - para percorrer a trajetória artística da "dona
do dom", "diva das divas", como disse Alcione. Aliás, coube a
Alcione quebrar o protocolo. A amiga de Bethânia contou um causo em que a
alteza apareceu nossa demais, humanizada, despida das notícias de canonização
com as quais até então - e por toda a noite - a festa a vestia. A homenageada
corou e gargalhou junto com a plateia do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Fernanda Montenegro foi substituída por Juca de Oliveira para
abrir a noite. O texto lido falou de voz, falava da voz e de sua dona, da dona
da voz, da cantora autora que Bethânia é. Clássicos, mas distantes do
laudatório vazio, o roteiro e o texto escritos por Zélia Duncan (compositora
ainda não gravada por Bethânia) permitiram o assentamento bio-sonoro da
homenageada. Zélia ajustou admiração e pesquisa, a fim de compor um panorama da
rosa dos ventos cantada nesses 50 anos.
Visivelmente emocionada - emoção que perdurou toda a
cerimônia -, Bethânia fez sua entrada. Errou a letra de "O Quereres"
(Caetano Veloso), fez dengo de majestade e o público aplaudiu. Estava
constituída assim a empatia entre ela e aqueles que ali estavam para bater a
cabeça em devoção à musa-sereia.
Alguns números merecem destaque. Entre eles, o que juntou os
compositores gravados por Bethânia no disco Âmbar (1996) Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes e Chico César -
três dos melhores de uma geração; o número passional que uniu a já citada
Alcione - ovacionada após a interpretação arrebatadora de "Negue"
(Adelino Moreira e Enzo Almeida Passos) -, Letícia Sabatella (com a declamação
de "Quando o amor vacila") e Johnny Hooker que, vestido a la carcará,
performou "Lama" (Paulo Marques e Alice Chaves); Nana e Dori Caymmi
cantando "Pra dizer adeus" (Edu Lobo e Torquato Neto); Mariene de
Castro evocando os orixás; Mônica Salmaso e Jackson Antunes revisando os temas rosianos
e mariandradinos do disco Brasileirinho (2003);
e Fabiana Cozza cantando com Roque Ferreira as canções deste gravadas por
Bethânia. Além de Caetano Veloso que juntou "Queda d'água" e "É
de manhã" para saudar a "presença toda sã" da mana no céu da
canção nacional.
A interpretação de Matheus Nachtergaele para o trecho VIII
de O guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa),
popularmente conhecido como "Poema do menino Jesus", coroou a noite
constelar. E a gira festiva foi encerrada por Bethânia cantando "Explode
coração" (Gonzaguinha) e, embalada por "Vento de lá" (Roque
Ferreira), recebendo os convidados numa meia ciranda.
Numa festa com tamanha importância para a artista e para a Música
Popular Brasileira, algumas ausências foram sentidas: Clarice Lispecto (citada en passant), Gal Costa (dupla doce bárbara de Bethânia) e, claro, Chico Buarque de Holanda. Jaime Alem, por
sua vez, figurava na galeria do teatro. Gilberto Gil estava lá, mas subiu ao
palco apenas para receber prêmio. Aliás, a festa elencou também excelentes
amostras daquilo que tem sido feito na MPB de hoje. Apesar das confusas
categorias de premiação.
De "Missa agrária" (Carlos Lyra e Gianfrancesco
Guarnieri) e "Carcará" (João do Vale e José Cândido) a "Explode
coração" (Gonzaguinha), a noite sagrou Maria Bethânia como A menina dos olhos de Oyá, a grande
dama da canção, a que clareia o terreiro sonoro que o Brasil é, aquela que em
sua trajetória luzidia en-canta no mau e no bom tempo.