Num ano em que temos,
entre outros tantos exemplos do vigor da música brasileira, da sereia do mangue
Elza Soares, aquela que vai cantar até o fim, à selvática Karina Buhr,
passando pela Gal Costa sem medo nem esperança, pelo “barulho feio” de Mariana Aydar (a
gente no meio), pela soledade de Cida Moreira, pela patrya yndia de Ava Rocha,
pela mama kalunga de Virginia Rodrigues e pelo canto a Atôtô do Metá Metá; sem
contar o rá de Ogi, o canto de Danilo a Dorival, os niños heroes de Negro Leo,
as conversas com toshiro de Rodrigo Campos, a macumba de Johnny Hooker, o
estado de poesia de Chico Cesar, o baile solto de Siba, o carbono de Lenine, o
blam blam de Jonas Sá... (a lista é ampla e múltipla)... escrever que a música
chegou ao fim, que não tem mais papel relevante, é algo que nem mereceria comentários. Mas é por demais forte simbolicamente para eu
não me abalar.
Repisar a mal
interpretada afirmação de Chico Buarque sobre o “fim da canção” - Chico falava,
com lucidez, de um certo modo de fazer e consumir canção no Brasil - é, no
mínimo, querer provocar um frisson cafona na leitura do diário matinal. Para não me estender, evoco a
afirmação do mestre Luiz Tatit a respeito do tema. Algo mais ou menos assim: “enquanto
houver humano, haverá canção”. E música. E isso já deveria dizer tudo. E diz. Mas
a gente gosta de polêmica, o mercado precisa da polêmica. O espetáculo precisa
continuar.
No atual momento de
descentralização das produções culturais, os complexos mecanismos de
legitimação do artístico não passam mais pelos caducos sistemas. E os sistemas se ressentem disso. Como pesquisador, bem sei que dar
conta da criação estilhaçada em torno da canção brasileira é mesmo tarefa
sisífica. É bem mais fácil negar tudo e dizer que a música chegou ao fim. Assim
faz a TV, por exemplo, com suas trilhas sonoras repletas de “roupas novas” para
“canções velhas”, ou seja, já devidamente testadas e aprovadas pelo consumidor.
O rádio segue o mesmo ritmo.
A questão é que não há
mais UMA ideologia cultural a ser musicada. Se é que já existiu. As ideias de
horizontalidade e polifonia (finalmente) caracterizam nossa nacionalidade. Penso
que a música continua a ser a linha de frente do debate cultural. Porém, encontrando-se
com parceiras de outras linguagens, agregadas a ela pelo menos desde a
tropicália, passando pelo manguebeat, pelo funk carioca e rap paulista, além do
tecnobrega paraense, (para ficar no exemplo de alguns dos grandes movimentos), a música não é mais (apenas) grito de alerta. A música é
coletivos, é colaborativa. Basta ir a qualquer atividade “de rua” para ver, ou
melhor, ouvir: a música está lá – quente, ritmando, forjando-se. "Ouça como canta louve como conta prove como dança", sugeriu Haroldo de Campos em suas Galáxias. A música aceitou o desafio. E a canção.
Querer uma música (ou
uma canção) que represente o nacional no atual estado de subjetividades é uma
querência, no mínimo, pueril. Como distinguir a margem do centro hoje? Margem é
quem vende pouco? É quem não aparece na TV? Centro é quem vende muito? Quem
lota estádios? Portanto, mantemos a perspectiva do mercado para pensar a arte e
os afetos? Emicida está aí problematizando a tal “inserção social”.
Oswald de Andrade
anotou no manifesto antropófago: “Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
Roteiros. Roteiros. Roteiros”. É por aí que passa a construção do espaço social
hoje. Parece que a música entendeu muito bem que uma reconciliação das
populações como uma "identidade nacional" é inviável. “Brasil, braseiro de rosas”,
escreveu Sousândrade. Constantes globais? Qual o quê? Passamos de povo à
multidão. E a multidão é a aglomeração (barulhenta) de individualidades. Nega-se
a ideia de massa e do apagamento das diferentes em benefício de um “bem comum”;
e afirma-se o cartaz pessoal e intransferível, o choque multicolorido das
diferenças. Ao preservar as especificidades micro-coletivas internas à
multidão, a atual música brasileira dá vigor à diversidade macro-coletiva do
povo novo. Bem como à nossa imagem de país, de sociedade e de afetos.
Querer resgatar as imprescindíveis
imagens de Villa-Lobos e Mário de Andrade como argumento é, no mínimo, falta de
informação. Afinal, grande parte dos cancionistas aqui citados é
ouvinte-leitora desses mestres da ideia de nacionalidade. Cabe lembrar que o próprio Mário preferia trabalhar o termo "entidade", no lugar de "identidade", para pensar o país. Ouça quem tiver
ouvidos para ouvir. Estão lá, na música atual: as culturas marginais (folclóricas?) e a pesquisa
instrumental. Mas está tudo tão devidamente e esteticamente
(antropofagicamente) trabalhado e disseminado que dá mesmo muito trabalho de ouvir.
Não vou me dar à labuta de discutir a indistinção entre popular e erudito. Aliás, note-se que
usei os termos canção e música de forma propositalmente misturada também. Agora, dê-me licença, que vou ali ouvir o “Anganga” de Juçara Marçal e Cadu Tenório.