A canção tem uma magia capaz
de levar o ouvinte a sentir-se íntimo de quem canta. Essa intimidade surge pelo
que se é cantado, pelo modo que se é cantando, pela voz de quem canta. Logo, quanto
maior a intimidade entre cantor e ouvinte, maior a eficácia da canção.
Pensando no dito e no
modo de dizer, para que uma canção tenha o efeito pretendido, é preciso
intimidade também com o que é cantado. E a intimidade com as palavras do texto
da canção “Sem fronteiras” autoriza Chico Oliveira a dizer o que diz, no modo
como diz. Um “músico militante” dizem as várias notas sobre a partida de Chico.
Mas não deveriam ser militantes todos os músicos? Se não de partidos políticos,
ao menos da música? Chico era dos dois. Isso legitima versos como “Eu sou do
Sul e do Norte / Do ocidente, do oriente / Não tenho visto nem passaporte”. Se,
como é comum pensar, as manifestações estéticas respondem à urgência expressiva
de artistas, a letra de “Sem fronteiras” seria apenas edificante se Chico não fosse um militante político. Ou
seja, Chico queria intervir tencionando ética e estética e para isso precisa-se
de técnica, intimidade: a integração espontânea, “natural” entre artista e obra.
Não basta o dito, a voz
de Chico se amalgama aos acordes de seu violão percussivo. A canção tem tom e
ritmo de convite, uma trincheira de alegria em tempos de pandemia. Alegria carnavalesca,
que não nega a tragédia do cotidiano: a enorme quantidade de preconceitos
criadores de fronteiras entre os seres. Essa tropical melancolia pode ser
percebida na performance vocal pouco festiva, quase passional, de Chico. Ao
cantar as duas primeiras partes da letra, sua voz, em harmonia com o que é
dito, diagnostica nossa identidade coletiva. Essa proposta entoativa é executada
contrastivamente com o ritmo acelerado do violão, figurativizando um sujeito cancional
em trânsito, caminhando e percebendo o mundo.
Sendo uma trama de
ritmos brasileiros porque universais, a toada do violão de Chico presentifica a
alegria compartilhada. E o ouvinte vê-se instado a agir para que o mundo mude. Não
é à toa que Chico tenha tocado em grupos e blocos cujo ímpeto venha da rua, dos
encontros que o carnaval de rua proporciona: Cordão do Boitatá, Rio Maracatu, Orquestra
Itiberê, Monobloco, Noites do Norte, Forró sem Fronteiras. Chico estava
interessado em agregar seu virtuosismo musical à massa: onde ninguém (ou cada
qual) é protagonista.
Só na terceira parte da
letra, que funciona como refrão, quando canta e pede “Liberdade pra pensar os
rumos do mundo / Paciência pra junto poder navegar / Amizade pra ver o que é
mais profundo / E coragem pra fazer o mundo mudar”, é que a voz e a toada se
encontram tematizando a celebração do que está por vir: o projeto utópico resultado
da vivência e que contagia quem ouve. Só na utopia criada pela canção é que o
verbo – “eu sou” – tem a mesma indicação significativa, arranjada e cantada por
alguém que vive o que diz. Ora, utopia não é alienação, nem o carnaval é fuga.
Pelo contrário, ambos impõem o adensamento da mirada no espelho. O sujeito
cancional criado por Chico sabe que a utopia é resultado tanto do olhar
retrospectivo, haja vista que o sujeito conhece bem a história da nossa
cultura, no caso, cita as mulheres negras, indígenas e subalternizadas, quanto
de uma experiência renovada possível: liberdade, paciência, amizade, coragem,
que, por sua vez, ele, pela via da empatia, aprendeu a crer e exercitar com
estas mulheres. Novamente, é a intimidade cancional, essa abertura ao outro, o
que está em ação aqui.
Do primeiro verso
negativo “Meu canto não tem fronteiras”, ao derradeiro “coragem pra fazer o
mundo mudar”, passando pelo “Eu não me dou por satisfeito”, a canção “Sem
fronteiras” trata do caminhar na estrada, do ir indo, da observância do ritmo
histórico que trouxe o sujeito cancional até aqui: ao canto. Assim, “Sem
fronteiras” é metacanção, é Chico Oliveira afirmando o que é seu canto e, de
viés, sugerindo o que é ser humano no meio (não no centro narcísico), na massa:
“Já não me importa o sotaque que me / espera no fim da estrada de sotaques”.
Perder-se para encontrar-se, eis o ímpeto.
Num Brasil cada dia
mais avesso ao outro, a canção de Chico canta um projeto utópico – “Enquanto as
águas não forem claras / Eu não me dou por satisfeito” – de manutenção da convivência
empática: “Eu sou a escrava vendida / Eu sou a índia caçada / Eu sou os
desesperados ao ver a casa debaixo d'água / O Rio Doce é meu leito”. O
repertório pessoal é compartilhado e afeta o outro com uma intimidade singular.
Nesta perspectiva cria-se uma rede lírica de afetos partilhados, como cada um
sendo o que é: qualquer coisa, joia.
Não conheci Chico
Oliveira (1986-2020) pessoalmente, embora tenha visto o músico integrar (misturado
em) alguns dos grupos e blocos nos quais tocou. Mas há uma intimidade profunda
entre o artista que canta “Sem fronteiras” num vídeo caseiro e o pesquisador de
canção que sou.
***
Sem
Fronteiras
(Chico
Oliveira)
Meu
canto não tem fronteiras
O
mundo é minha morada
Eu
sou do Sul e do Norte
Do
ocidente, do oriente
Não
tenho visto nem passaporte
Eu
sou a escrava vendida
Eu
sou a índia caçada
Eu
sou os desesperados ao ver a casa
debaixo d´água
debaixo d´água
O
Rio Doce é meu leito
Enquanto
as águas não forem claras
Eu
não me dou por satisfeito
Liberdade
pra pensar os rumos do mundo
Paciência
pra junto poder navegar
Amizade
pra ver o que é mais profundo
E coragem pra fazer o mundo mudar
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