Os versos "Por seres tão inventivo / E pareceres
contínuo", de Caetano Veloso soam para mim como síntese da audição do
disco Barulho feio (2014), de Rômulo
Fróes. Mas penso também no conto “Ideais do canário”, de Machado de Assis.
Primeiro porque a certa altura Rômulo faz uma referência direta a uma
"gaiola de ouro, canário sem choro (...) Vida sem gosto, não te quero mais
/ Mas os animais, lambem meu rosto". Segundo porque nesse conto temos
tanto o discurso do narrador, que só aparece diretamente em contato com o
leitor no primeiro parágrafo, já que ele empresta a voz da narrativa, numa
consciente falsa tentativa de capturar o real, ao seu protagonista; quanto a
narrativa em si, o relato de Macedo a cerca dos acontecimentos que lhe fizeram
se tornar “todo canário”. Algo muito próximo do gesto do sujeito-flaneur criado
por Rômulo.
Os dois planos se entrecruzam para a textura do texto. Assim
também acontece nas canções desse disco. O fio narrativo da "vida
real" - o som direto capturado nas ruas de São Paulo - é significado qual
colar de pérolas que as canções são. A "vida real" permite a Rômulo a
criação de uma narrativa complexa, fragmentada, mas melódica, tanto pela
entrada e saída de foco das vozes das ruas, quanto pelo encadeamento das
canções-adornos.
A semelhança com o discurso do canário de Machado é
pertinente, ou seja, a arte e os acontecimentos cotidianos surgem como uma
perspectivação da realidade. O canário lembra à personagem Macedo, e ao leitor,
que o mundo é uma criação do homem, assim como os sujeitos das canções lembram
ao ouvinte que os acontecimentos são invenções, ficções. “Fora daí (da loja do
belchior, da canção, da ficção), tudo é ilusão e mentira”, escreveria Machado.
"Mente pra mim, mas não mente pra mim / Me diz a verdade, fica à
vontade", canta Rômulo. Cantando, o cancionista rearranja o real.
Ao longo de “Ideias de canário” o narrador cria a ilusão de
que quem está narrando é Macedo: “disse ele”, pontua no segundo parágrafo.
Porém, o conto é, de fato um “resumo da narração” de Macedo, como está
destacado já no primeiro parágrafo. Ora, não é outro o gesto de Rômulo Fróes ao
sugerir que quem está cantando é a rua e suas personagens "anônimas".
O sujeito-flaneur criado por Rômulo é metonímia do próprio ouvinte
contemporâneo de canção, que tem suas audições em aparelhos móveis interferidas
pelos diversos sons da cidade ao redor.
O sujeito-flaneur ouve as ruas porque sabe que o acaso
mostra novas trilhas. E a rua, por sua vez, participa das canções reivindicando
para si a origem da palavra cantada. Desse plano, os referentes devem ser
buscados dentro da própria textura do disco. Destaco aqui a canção que dá nome
ao trabalho: "Barulho feio", de Rômulo Fróes e Nuno Ramos.
A canção demora a entrar, está engasgada, há um
"barulho feio" interferindo. Um ruído que parece ser o som de um
microfone roçando um tecido. Entra o violão e em seguida a voz. Montando a base
cancional. Mas aos poucos entram em cena também outros sons: o baixo acústico
de Marcelo Cabral e a guitarra de Guilherme Held. E o barulho não desaparece
por completo, apenas está fora do foco, ou foi incorporado, ou tornou-se
naturalizado dentro da canção.
Esse jogo de protagonismo e coadjuvância entre a canção assobiável
e o barulho atravessa o disco. É o motor da obra. Sons que se acumulam e se
dispersam, como as vozes de uma metrópole. Essas vozes ocupam os espaços
deixados pela ausência da voz do cantor. E vice versa. “Mas atenção, escuta o
rádio / Minha canção vai acender teu silêncio como um raio”, diz o sujeito de
"Como um raio", outra canção de Romulo Fróes e Nuno Ramos presente no
disco. Desse modo, podemos dizer que não há diferenciação nítida das instâncias
rua e canção. Uma está e é na outra.
Essa busca de beleza, ou de harmonia na dissonância é o
estímulo dos sujeitos cancionais. Ao final, a canção devolve o protagonismo às
ruas. Ouvimos o que parece ser uma manifestação, restos de um depoimento
exaltado - "Eu já tô de saco cheio" - como a referendar e ratificar aquilo
que o sujeito da canção acabou de dizer: "Ninguém cantará, ninguém vai
chorar / Por mim". Antes disso, o sujeito canta apontando de onde vem a
canção: "Taí meu gogó, é só pra você / Me pega aqui dentro, você vem no
vento / Não quero você, invento você / Tô cheia de ódio, quebrei o agogô /
Criei a serpente, furei o meu bumbo / Porém lá no fundo, ouvi de repente / Toda
essa gente".
Ouvir gente é exercício de quem canta. Para capturar nos
modos da palavra falada os elementos de formação e invenção da palavra
cantada. O som das ruas também é manipulado a serviço do estético. "Quero
você, invento você", canta o sujeito. Artista inventivo, Rômulo Fróes
trabalha forçando os limites da canção. Seu trabalho como cancionista vai se caracterizando
pela diversidade de técnicas e procedimentos. Mas é sobretudo nas combinações
intrigantes e acumulativas de materiais sonoros que reside a ética de sua obra.Canário e urubu.
Barulho feio é um disco que equilibra invenção e tradição,
afirmando, como fez Gal Costa ao cantar que "o autotune não basta pra
fazer o canto andar pelos caminhos que levam à grande beleza", que
"barulho feio tem gente no meio". O resultado parece sempre ser um
ensaio geral do gesto em direção à potência-ó.
***
(Romulo Fróes / Nuno Ramos)
Barulho feio, tem gente no meio
De ponta cabeça, a minha cabeça
Bicho sem dono, sofro sem sono
Cadê todo mundo? Será que no fundo?
Gaiola de ouro, canário sem choro
Dentro do quarto, pássaro preto
Vida sem gosto, não te quero mais
Mas os animais, lambem meu rosto
Mente pra mim, mas não mente pra mim
Me diz a verdade, fica à vontade
Pele de cobra, coxa de atriz
Fui infeliz, sou eu quem te diz
Ninguém cantará, ninguém sofrerá
Ninguém pintará, nem publicará
Ninguém filmará, ressuscitará
Ninguém sambará, ninguém lembrará
De mim
Láialáialáialáia...
Tomo o metrô, tô no shopping sem dó
Taí meu gogó, é só pra você
Me pega aqui dentro, você vem no vento
Não quero você, invento você
Tô cheia de ódio, quebrei o agogô
Criei a serpente, furei o meu bumbo
Porém lá no fundo, ouvi de repente
Toda essa gente, laialalaiá
Um cara de sorte, quem é que me morde
Pessoa esquisita, frase esquisita
Amor sem futuro, por isso ele é puro
Tô dentro dum corpo, procuro outro corpo
Meu corpo é jardim, um sol só pra mim
Na veia da noite, no umbigo da noite
Carícia total, um cara legal
Ninguém cantará, ninguém vai chorar
Por mim
Láialáialáialáia...
Barulho feio, tem gente no meio
De ponta cabeça, a minha cabeça
Bicho sem dono, sofro sem sono
Cadê todo mundo? Será que no fundo?
Gaiola de ouro, canário sem choro
Dentro do quarto, pássaro preto
Vida sem gosto, não te quero mais
Mas os animais, lambem meu rosto
Mente pra mim, mas não mente pra mim
Me diz a verdade, fica à vontade
Pele de cobra, coxa de atriz
Fui infeliz, sou eu quem te diz
Ninguém cantará, ninguém sofrerá
Ninguém pintará, nem publicará
Ninguém filmará, ressuscitará
Ninguém sambará, ninguém lembrará
De mim
Láialáialáialáia...
Tomo o metrô, tô no shopping sem dó
Taí meu gogó, é só pra você
Me pega aqui dentro, você vem no vento
Não quero você, invento você
Tô cheia de ódio, quebrei o agogô
Criei a serpente, furei o meu bumbo
Porém lá no fundo, ouvi de repente
Toda essa gente, laialalaiá
Um cara de sorte, quem é que me morde
Pessoa esquisita, frase esquisita
Amor sem futuro, por isso ele é puro
Tô dentro dum corpo, procuro outro corpo
Meu corpo é jardim, um sol só pra mim
Na veia da noite, no umbigo da noite
Carícia total, um cara legal
Ninguém cantará, ninguém vai chorar
Por mim
Láialáialáialáia...
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