Saber é lembrar. Quando Caetano Veloso canta "Eu, você,
nós dois / Já temos um passado, meu amor / Um violão guardado / Aquela flor / E
outras mumunhas mais" está afirmando e elogiando a nossa genealogia
cancional. Observo o mesmo gesto crítico no modo geográfico com o qual a
Filarmônica de Pasárgada organiza suas letras, melodias e vocalizações.
Antes de entrar nessa questão, importa lembrar que, se por
um lado, a escrita simula fazer lembrar, posto que eterniza o passado ao
escrevê-lo, afinal, de acordo com Platão, conhecer é ver, por outro lado, a
escrita obriga o esquecimento, já que nos conformamos com o fato registrado.
Confortar-se é esquecer. Para lembrar é preciso o atrito entre o sujeito e a
"coisa" a ser lembrada.
A palavra vocalizada, ao contrário, mostra um ser a priori
existindo e morrendo em cada ato de fala/canto. No entanto, sendo a palavra
também registrável (como sugere Walter Benjamin), não estaria ela repetindo o
gesto da escrita? A profusão de registros sonoros – da mensagem de celular às
canções feitas em casa – força o esquecimento do registrado? Lembrar é saber.
Ou seja, só lembramos daquilo que não foi codificado, assentado, mas, sim, que
permanece na memória, dando nós na orelha.
O labirinto de versos, citações e referências utilizado pela
Filarmônica de Pasárgada é esse nó, essa exigência de conhecimento do passado
cancional. Labirinto auditivo, do ouvido: órgão da audição e gesto de ouvir.
Esse gesto artístico é político na medida em que trabalha com fragmentos de uma
cultura taxada de "sem memória". A seleção feita nos ajuda a entender
o ser canção no Brasil. A aprender consigo mesmo. "Já temos um
passado".
Na vitrola da Filarmônica de Pasárgada (Rádio lixão, 2014) giram João, Noel, Tom, Caetano, Djavan, Chico,
Tatit. Tudo a fim de inventar um mundo. "Nós dois" da canção de
Caetano Veloso citada aqui são: eu-cancionista e você-canção. A organização
interna das canções e a relação entre elas, derrubando a tradição para se
colocar de pé (Platão fez isso com Homero, por exemplo), criam um campo de
escuta para aquilo que se acredita ser o justo, o bem com o passado: arrumar,
harmonizar (logro apaziguador da indiferença orgânica), tornar próprio aquilo
que é coletivo, ou melhor, do universo compartilhado, passando do
individualismo (da massa) para o indivíduo (singular).
"Você / Eu sei / Precisa se lembrar / Precisa
saber", canta o sujeito de "Mil amigos", de Paula Mirhan e Marcelo
Segreto. Canção, aliás, dedicada a Caetano Veloso e Gal Costa. A canção
"Baby" se presentifica. Mais adiante o sujeito diz que "Você /
Eu sei / Precisa respirar / Precisa esquecer". Ora, ele sabe porque é
cantor e é sujeito cancional e, desse modo, é também o "lembrar" e o
"esquecer", além de ser o "respirar" do ouvinte. Ele dura
enquanto dura a canção. Ele é uma lembrança ativada pelo gesto de cantar e um
esquecimento a priori. Expiração.
Ao mesmo tempo, diz: "Não sei / Não sei / Cidade medo
mais de mil amigos / E um refrão a palpitar". Em tempos cíbridos, ouvir
canção é ouvi-la aos pedaços e atravessada por interferências. Mas fica um
refrão "Na minha camisa / No vento, no anular / No fone de ouvido / Na
foto, no toque do seu celular". E é no procedimento de condensar horizontalmente
refrões que reside a potência do trabalho da Filarmônica de Pasárgada.
O procedimento da banda nos cura da amnésia crônica, saneia
nossa memória cancional e, quiçá, para quem tiver ouvidos de ouvir, cultural. E
se qualquer ato de arte é um ato valorativo, a banda imprime valor à tradição
no gesto poético de montar, colar, colecionar versos e temas. A pergunta que a
banda nos faz é: reconhecemos os signos da malfadada brasilidade nas canções
que ouvimos? Sendo a canção popular talvez a nossa linguagem artística mais
difundida, mesmo colada ao entretenimento, quando ouvimos canção desvelamos o
Brasil? Há uma clara intenção de arrumar os ouvidos dos ouvintes. Isso fica
evidente quando a derradeira canção "recolhe", condensa versos das
canções anteriormente apresentadas.
Como sabemos, no Livro III de sua República, Platão cria o limite do audível. Ele atesta que o
audível deve ser submetido ao visível (ao teórico) e que o artista é mau artesão
porque pode simular ser tudo sendo nada, não tendo aptidão para nenhuma arte,
tais como a medicina, a carpintaria. A Filarmônica de Pasárgada, ao simular ser
João, Noel, Carmen, Djavan, nos sugere: a) que há extraordinariedade no chamado
lixo cultural; b) que a relação do presente com o passado não deve ser de
submissão, mas de dessacralização, valoração, deslocamento e apropriação.
Afinal, a canção "Que ninguém memoriza / Que você não precisa / [] não
pode parar".
***
Mil amigos
(Paula Mirhan / Marcelo Segreto)
Você
Eu sei
Precisa se lembrar
Precisa saber
De quem?
O que?
Que vai avante ante anteontem
Pelé guerrilha iê iê iê
Você
Eu sei
Precisa respirar
Precisa esquecer
Não sei
Não sei
Cidade medo mais de mil amigos
E um refrão a palpitar
Na minha camisa
No vento, no anular
No fone de ouvido
Na foto, no toque do seu celular
Que ninguém memoriza
Que você não precisa
Mas não pode parar
(Paula Mirhan / Marcelo Segreto)
Você
Eu sei
Precisa se lembrar
Precisa saber
De quem?
O que?
Que vai avante ante anteontem
Pelé guerrilha iê iê iê
Você
Eu sei
Precisa respirar
Precisa esquecer
Não sei
Não sei
Cidade medo mais de mil amigos
E um refrão a palpitar
Na minha camisa
No vento, no anular
No fone de ouvido
Na foto, no toque do seu celular
Que ninguém memoriza
Que você não precisa
Mas não pode parar
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