Para ser lida no século XXI, a poesia atribuída a Gregório de Matos (1636–1696) dependeu dos códices manuscritos de copistas da época e do empenho de pesquisadores que tentam reconstituir o contexto e assim assentar a obra de nosso principal poeta e cronista colonial.
Com a imprensa proibida no Brasil colônia, Gregório de Matos não deixou nenhum texto autografado ou impresso. Sua poesia era oral, feita nas ruas e tinha um caráter predominantemente moralizante, educativo, a serviço da contrarreforma católica: "quem do mundo a mortal loucura, cura / a vontade de Deus sagrada, agrada". Embora também fosse uma poesia crítica aos erros da igreja e do governo, levando o poeta a receber a alcunha de "boca do inferno". Por causa de sua "lira maldizente" o poeta foi exilado, voltando ao Brasil para morrer não mais na Bahia natal, mas em Recife.
Se o Barroco foi a época do sujeito cindido (em crise) entre a fé e a ciência, a poesia de Gregório de Matos é marcada pela riqueza vocabular, sintaxe complexa, densidade sensorial e léxico próprio. O que levaria pesquisadores a identificarem gestos antecipatórios da antropofagia modernista no poeta colonial: "o primeiro antropófago experimental da nossa poesia", escreveu Augusto de Campos (O anticrítico, 1986).
Esquecido até o Romantismo quando foi publicado por Varnhagen (Florilégio da poesia brasileira, 1850), só em 1968 tivemos acesso ao que se considera ser as "obras completas" de Gregório de Matos, graças à iniciativa do escritor e crítico James Amado. Tendo sido valorizado e reinserido na história literária graças a livros como O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira (1989) de Haroldo de Campos. Livro que defende uma interpretação ético-estética da "história" e da obra de Gregório, e cujos argumentos estão calcados mais na função poética do que na função referencial da linguagem.
A biografia difusa e a oralidade dificultam, e a um só tempo seduzem, a construção do mito Gregório de Matos: poeta do improviso, do impulso, do repente. Qual um repentista, Gregório reproduzia dentro de uma estrutura métrica fixa rigorosa, importada da Europa, as variadas situações tropicais: "quem não cuida de si que é terra, erra"; "marinículas todos os dias / o vejo na sege passar por aqui"; "deste Adão de Massapé / procedem os fidalgos desta terra"; "há coisa como ver um Paiaiá / mui prezado de ser Caramuru"; "neste mundo é mais rico quem mais rapa"; "que falta nesta cidade? verdade".
Os livros de Ana Miranda Boca do Inferno (1989) e Musa praguejadora (2014) prestam um grande serviço à memória do poeta. Já o livro A sátira e o engenho de João Adolfo Hansen (1989) reconstitue a Bahia do século XVII analisando a persona satírica do poeta, cujo eu-lírico plural e adaptável às circunstâncias cantava mais o que murmurava o "corpo místico" (coletivo, ar da época) do que a afirmação de uma identidade (eu) diante do estado de coisas do Brasil daquele período.
Se o Barroco foi a época do sujeito cindido (em crise) entre a fé e a ciência, a poesia de Gregório de Matos é marcada pela riqueza vocabular, sintaxe complexa, densidade sensorial e léxico próprio. O que levaria pesquisadores a identificarem gestos antecipatórios da antropofagia modernista no poeta colonial: "o primeiro antropófago experimental da nossa poesia", escreveu Augusto de Campos (O anticrítico, 1986).
Esquecido até o Romantismo quando foi publicado por Varnhagen (Florilégio da poesia brasileira, 1850), só em 1968 tivemos acesso ao que se considera ser as "obras completas" de Gregório de Matos, graças à iniciativa do escritor e crítico James Amado. Tendo sido valorizado e reinserido na história literária graças a livros como O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira (1989) de Haroldo de Campos. Livro que defende uma interpretação ético-estética da "história" e da obra de Gregório, e cujos argumentos estão calcados mais na função poética do que na função referencial da linguagem.
A biografia difusa e a oralidade dificultam, e a um só tempo seduzem, a construção do mito Gregório de Matos: poeta do improviso, do impulso, do repente. Qual um repentista, Gregório reproduzia dentro de uma estrutura métrica fixa rigorosa, importada da Europa, as variadas situações tropicais: "quem não cuida de si que é terra, erra"; "marinículas todos os dias / o vejo na sege passar por aqui"; "deste Adão de Massapé / procedem os fidalgos desta terra"; "há coisa como ver um Paiaiá / mui prezado de ser Caramuru"; "neste mundo é mais rico quem mais rapa"; "que falta nesta cidade? verdade".
Os livros de Ana Miranda Boca do Inferno (1989) e Musa praguejadora (2014) prestam um grande serviço à memória do poeta. Já o livro A sátira e o engenho de João Adolfo Hansen (1989) reconstitue a Bahia do século XVII analisando a persona satírica do poeta, cujo eu-lírico plural e adaptável às circunstâncias cantava mais o que murmurava o "corpo místico" (coletivo, ar da época) do que a afirmação de uma identidade (eu) diante do estado de coisas do Brasil daquele período.
Quatro anos depois da publicação das "obras completas" por James Amado, voltando do exílio forçado pela ditadura militar, Caetano Veloso incluiu o canto do poema "Triste Bahia" no disco Transa (1972): "Triste Bahia! ó quão dessemelhante / Estás estou do nosso antigo estado!", diagnostica o sujeito cancional de Caetano em seu primeiro disco de grupo, gravado como um show ao vivo. Transa foi arranjado por Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque, Áureo de Sousa e Jards Macalé. E é sobre este último e sua relação com Gregório que vou me deter a partir de agora.
Em disco que acaba de ser lançado Jards Macalé canta versos de Gregório de Matos e deles retira o título do disco e da canção: "Besta fera". "A ignorância dos homens destas destas eras / sisudos faz ser uns, outros prudentes, que a mudez canoniza bestas feras". Se a poesia de Gregório passou da voz à letra, o cancionista recupera o caráter vocoperformático da obra gregoriana para esse nosso tempo de aprofundamento de crise ética e estética.
Neobarroco? Para Severo Sarduy, o barroco foi "a apoteose do artifício, da ironia e irrisão da natureza" e o neobarroco "reflete estruturalmente a desarmonia, a ruptura da homogeneidade, do logos enquanto absoluto, a carência que constitui nosso fundamento epistêmico" (ver o texto "O barroco e o neobarroco"). O disco Besta fera é incorporação, citação e paródia. Mas também diagnóstico, metáfora e metonímia do estado de coisas da vida e da arte contemporânea.
Em disco que acaba de ser lançado Jards Macalé canta versos de Gregório de Matos e deles retira o título do disco e da canção: "Besta fera". "A ignorância dos homens destas destas eras / sisudos faz ser uns, outros prudentes, que a mudez canoniza bestas feras". Se a poesia de Gregório passou da voz à letra, o cancionista recupera o caráter vocoperformático da obra gregoriana para esse nosso tempo de aprofundamento de crise ética e estética.
Neobarroco? Para Severo Sarduy, o barroco foi "a apoteose do artifício, da ironia e irrisão da natureza" e o neobarroco "reflete estruturalmente a desarmonia, a ruptura da homogeneidade, do logos enquanto absoluto, a carência que constitui nosso fundamento epistêmico" (ver o texto "O barroco e o neobarroco"). O disco Besta fera é incorporação, citação e paródia. Mas também diagnóstico, metáfora e metonímia do estado de coisas da vida e da arte contemporânea.
A canção-título é composta sobre o poema atribuído a Gregório "Aos vícios", de tom confessional, revisionista e afirmativo. O poeta presta contas de sua "lira maldizente" em vinte tercetos decassílabos heróicos. Jards selecionou nove destes tercetos e reanima (devolve à voz) o texto oral de Gregório, com o objetivo de cantar as "torpezas do Brasil, vícios e enganos".
O metapoema de Gregório transforma-se na metacanção de Jards em defesa da liberdade artística: primeiro pela temática - "de que pode servir calar quem cala? / nunca se há de falar o que se sente?! / sempre se há de sentir o que se fala"; segundo pela relação intertextual ("Eu sou aquele que..." inicia o poema) com outras canções - destaquem-se os versos "eu sou aquele pierrô / que te abraçou, / que te beijou, meu amor", de Zé Keti e Hildebrando Pereira Matos; e "eu sou aquele que o tempo não mudou / embora outro, eu sou o mesmo / eu sou um mero sucessor", de Péricles Cavalcanti; terceiro pelo arranjo de Rodrigo Campos e seu cavaquinho mimetizador do desfile tortuoso percorrido pelo samba nacional. Nelson Cavaquinho, Adoriran Barbosa, Dorival Caymmi são incorporados nesse processo. "Eu sou" todos e sou eu, eu sou aquele e sou este, sugere o sujeito cancional autônomo porque antropófago de Macalé.
No livro Barroco e modernidade (1998) Irlemar Chiampi anota que o barroco "é encruzilhada de signos e temporalidades" e "funda a sua razão estética na dupla vertente do luto/melancolia e do luxo/prazer". O sujeito cancional de Jards Macalé tenciona o ocaso da verdade, tanto por abrir-se a coletividade - o disco tem produção musical de Kiko Dinucci e Thomas Harres e direção artística de Romulo Fróes -, quanto por engendrar um encadeamento narrativo autorreflexivo: "nem quero que saibam / o valor de minhas canções / se boas ou más, pouco me importam" ("Valor", Jards Macalé).
A musa de Gregório assemelha-se à musa de Jards: ambas praguejam - "longo caminho do sol / breve o caminho do chão / breve a canção, essa morta vida", canta acompanhado de Romulo Froes em "Longo caminho do sol" (Jards Macalé, Kiko Dinucci, Thomas Harres, Clima). A função crítica da poesia de Gregório é reativada, posto que atemporal: "quantos há que os telhados têm vidrosos, / e deixam de atirar sua pedrada, / de sua mesma telha receosos?". E quem veste a carapuça?
Gregório ressurge contemporâneo de Jards. "Diz logo prudentaço e repousado: / fulano é um satírico, é um louco, / de língua má, de coração danado", diz um dos tercetos suprimidos pelo cancionista que em plena ditadura militar idealizou e dirigiu o show coletivo O banquete dos mendigos, em comemoração aos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ambos artistas cantam até o fim o ocaso, a crise, a agonia: "tudo fervia e eu cantava".
"Todos somos ruins, todos perversos, / só nos distingue o vício e a virtude, / de que uns são comensais, outros adversos. // quem maior a tiver, do que eu ter pude, / esse só me censure, esse me note, / calem-se os mais, e haja saúde", cantou Gregório de Matos no Brasil colonial, recanta Jards Macalé no Brasil de 2019.
O metapoema de Gregório transforma-se na metacanção de Jards em defesa da liberdade artística: primeiro pela temática - "de que pode servir calar quem cala? / nunca se há de falar o que se sente?! / sempre se há de sentir o que se fala"; segundo pela relação intertextual ("Eu sou aquele que..." inicia o poema) com outras canções - destaquem-se os versos "eu sou aquele pierrô / que te abraçou, / que te beijou, meu amor", de Zé Keti e Hildebrando Pereira Matos; e "eu sou aquele que o tempo não mudou / embora outro, eu sou o mesmo / eu sou um mero sucessor", de Péricles Cavalcanti; terceiro pelo arranjo de Rodrigo Campos e seu cavaquinho mimetizador do desfile tortuoso percorrido pelo samba nacional. Nelson Cavaquinho, Adoriran Barbosa, Dorival Caymmi são incorporados nesse processo. "Eu sou" todos e sou eu, eu sou aquele e sou este, sugere o sujeito cancional autônomo porque antropófago de Macalé.
No livro Barroco e modernidade (1998) Irlemar Chiampi anota que o barroco "é encruzilhada de signos e temporalidades" e "funda a sua razão estética na dupla vertente do luto/melancolia e do luxo/prazer". O sujeito cancional de Jards Macalé tenciona o ocaso da verdade, tanto por abrir-se a coletividade - o disco tem produção musical de Kiko Dinucci e Thomas Harres e direção artística de Romulo Fróes -, quanto por engendrar um encadeamento narrativo autorreflexivo: "nem quero que saibam / o valor de minhas canções / se boas ou más, pouco me importam" ("Valor", Jards Macalé).
A musa de Gregório assemelha-se à musa de Jards: ambas praguejam - "longo caminho do sol / breve o caminho do chão / breve a canção, essa morta vida", canta acompanhado de Romulo Froes em "Longo caminho do sol" (Jards Macalé, Kiko Dinucci, Thomas Harres, Clima). A função crítica da poesia de Gregório é reativada, posto que atemporal: "quantos há que os telhados têm vidrosos, / e deixam de atirar sua pedrada, / de sua mesma telha receosos?". E quem veste a carapuça?
Gregório ressurge contemporâneo de Jards. "Diz logo prudentaço e repousado: / fulano é um satírico, é um louco, / de língua má, de coração danado", diz um dos tercetos suprimidos pelo cancionista que em plena ditadura militar idealizou e dirigiu o show coletivo O banquete dos mendigos, em comemoração aos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ambos artistas cantam até o fim o ocaso, a crise, a agonia: "tudo fervia e eu cantava".
"Todos somos ruins, todos perversos, / só nos distingue o vício e a virtude, / de que uns são comensais, outros adversos. // quem maior a tiver, do que eu ter pude, / esse só me censure, esse me note, / calem-se os mais, e haja saúde", cantou Gregório de Matos no Brasil colonial, recanta Jards Macalé no Brasil de 2019.
***
Besta fera
(Gregório de Matos / Jards Macalé)
Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.
E bem que os descantei bastantemente,
Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em pletro diferente.
De que pode servir calar quem cala?
Nunca se há de falar o que se sente?!
Sempre se há de sentir o que se fala.
A ignorância dos homens destas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.
Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não - por não ter dentes.
Quantos há que os telhados têm vidrosos,
e deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?
Uma só natureza nos foi dada;
Não criou Deus os naturais diversos;
Um só Adão criou, e esse de nada.
Todos somos ruins, todos perversos,
Só nos distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.
Quem maior a tiver, do que eu ter pude,
Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais, e haja saúde.
(Gregório de Matos / Jards Macalé)
Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.
E bem que os descantei bastantemente,
Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em pletro diferente.
De que pode servir calar quem cala?
Nunca se há de falar o que se sente?!
Sempre se há de sentir o que se fala.
A ignorância dos homens destas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.
Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não - por não ter dentes.
Quantos há que os telhados têm vidrosos,
e deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?
Uma só natureza nos foi dada;
Não criou Deus os naturais diversos;
Um só Adão criou, e esse de nada.
Todos somos ruins, todos perversos,
Só nos distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.
Quem maior a tiver, do que eu ter pude,
Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais, e haja saúde.
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