"O
canto das Sereias é um grau superior da poesia, da arte do poeta. (...) [Mas] de
que trata o canto irresistível, que inevitavelmente faz morrerem os homens que
o escutam, tamanha sua força de atração? É um canto que fala dele mesmo. As
Sereias narram uma só coisa: que estão cantando!", anota Tzvetan Todorov
em As estruturas narrativas (2006).
Ao
longo do tempo, o aspecto narrativo do canto das Sereias foi eliminado.
Obrigaram-nas a transmutar dos seres alados (sim, vários bestiários dão conta de que
as Sereias já foram mulheres-pássaros) e narradores ao confinamento na fábula e
na lenda da mortífera beleza da mulher-peixe. Ou seja, o rabo de peixe e a
beleza física surgem na transformação do mito em lenda na Idade Média.
Criaturas híbridas, para o Cristianismo, elas significavam também a alma
dividida entre os dois mundos e o mal na sua ambiguidade: sedução e pecado.
A
ênfase no aspecto físico em detrimento da voz impõe a ordem de calar as
mulheres que cantam: belas por fora e terríveis por dentro. Por isso a
transição da ave com busto de mulher barbada para a sereia pisciforme. Aglutinando
o monstruoso e a ninfa, o canto da sereia foi reduzido ao grito de alerta das
sirenes policiais, dos bombeiros e das ambulâncias.
É
essa sereia domesticada que Roberto Carlos canta. Seja nos arranjos
harmoniosos, seja na letra que diz "Pelas estradas por onde eu andei /
Alguém igual eu nunca encontrei", seja na voz dominical do intérprete, a
canção "Sereia" (2017) atende à demanda televisiva, calcada num
"sereísmo" de mercado pretensamente inspirado nas lendas e cultura do
estado do Pará.
A
questão posta é: se era para homenagear a cultura paraense, melhor não seria
colocar na trilha sonora da novela a "Morena sereia" (2001), de
Wanderley Andrade? Embalado por uma melodia singular da região, pouco
conformada com o mercado sudestino de música, tal e qual um Ulisses homérico
que depois do contato com as Sereias tornou-se narrador de si, o sujeito da
canção de Wanderley pede: "Me ensina tua canção / Estou enfeitiçado pelo
seu encanto". Essa sereia que canta e transmite o cantar é pouco comum nas
representações sirênicas atuais. Por isso merece destaque.
Por
sua vez, mais dentro do previsto, a "Sereia" de Roberto Carlos
reforça imagens cristalizadas e docilizadas da pulsão erótica. Lampejos de
desejo, tais como "Eu quero olhar nos seus olhos / Sem duvidar do que
faço" e "Eu quero estar com você / E não me importo o que é
certo" se diluem em clichês de rimas fáceis - "A noite eu sonho
dormindo / De dia eu sonho acordado / Que um dia, todos os dias / Eu estarei do
seu lado" - e em arranjo conformista, apaziguador. Não há tensão. Tão
pouco tesão. E quem acredita nesse desejo sem conflito?
A sereia cantada por Roberto reforça o estereótipo da mulher a ser dominada – afônica – em detrimento da afirmação do ser indomável que as Sereias já representaram e que, de alguma forma, está presente no ritmo brega pop e na letra de Wanderley.
A sereia cantada por Roberto reforça o estereótipo da mulher a ser dominada – afônica – em detrimento da afirmação do ser indomável que as Sereias já representaram e que, de alguma forma, está presente no ritmo brega pop e na letra de Wanderley.
Como
sabemos, os mitemas que constituem o mito das Sereias não chegam para nós
brasileiros apenas vindos da mitologia grega, onde habitavam os rochedos entre
a ilha de Capri e a costa da Itália. A semiologia sirênica precisa ser
entendida a partir do complexo semiótico que a constitui hoje. Amazônia (Iara),
África (Iemanjá) e Europa (Ondina) nos fornecem os cantos do mundo ancestral em
permanente estado tensivo.
Hoje
a sereia simplesmente adoça o mar salgado da vida do rei cantor. Todorov
observou que "aquele que ouve o canto das Sereias não pode sobreviver:
cantar significa viver, se ouvir é igual a morrer". E que "as Sereias
fazem perecer aquele que as ouve porque, de outra forma, devem perecer elas
próprias". Talvez seja por isso que um rei à escuta das Sereias será
sempre um rei, ou seja, as regras não o deixarão perder-se, gesto primordial de
quem as escuta.
***
Sereia
(Roberto Carlos)
Quero nadar nas suas águas
Nas ondas dos seus cabelos
Sentir seu corpo molhado
A deslizar nos meus dedos
Eu quero olhar nos seus olhos
Sem duvidar do que faço
Quero beijar sua boca
E te prender nos meus braços
Sereia, te amo, te quero comigo
Pelas estradas por onde eu andei
Alguém igual eu nunca encontrei
Você é tudo que eu quero pra mim
Jamais amei assim
Eu quero estar com você
E não me importa o que é certo
Pois mesmo às vezes distante
Me sinto ainda mais perto
A noite eu sonho dormindo
De dia eu sonho acordado
Que um dia, todos os dias
Eu estarei do seu lado
(Roberto Carlos)
Quero nadar nas suas águas
Nas ondas dos seus cabelos
Sentir seu corpo molhado
A deslizar nos meus dedos
Eu quero olhar nos seus olhos
Sem duvidar do que faço
Quero beijar sua boca
E te prender nos meus braços
Sereia, te amo, te quero comigo
Pelas estradas por onde eu andei
Alguém igual eu nunca encontrei
Você é tudo que eu quero pra mim
Jamais amei assim
Eu quero estar com você
E não me importa o que é certo
Pois mesmo às vezes distante
Me sinto ainda mais perto
A noite eu sonho dormindo
De dia eu sonho acordado
Que um dia, todos os dias
Eu estarei do seu lado
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