Somos cantados desde o útero materno. E nossa mãe é a sereia primordial: aquela que nos oferece a força matriz - uma constante humana - da tomada de posição na vida. A razão estética das mães e das sereias se constitui, portanto, no ato deliberado de cantar o filho-navegador. Ou seja, se a mãe e a sereia vivem para cantar, elas só existem porque cantam: cantar o outro é o que mantém-nas vivas.
E eis o desenho dessa complexa relação de reciprocidade, pois, por outro lado, ser cantado - ser ouvinte (filho e navegador) - implica em tornar-se dependente do canto, e de quem canta: veneno-remédio. Afinal, como Kafka anota em O silêncio das sereias: "As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto: seu silêncio".
Fora do útero, passamos a vida cantando e sendo cantados, não necessariamente com a mesma exuberância paradisíaca, daí a circularidade permanente da ilusão e, até porque, precisamos cantar também: ser mães e ser sereias de outros.
A neosereia, o cancionista moderno, que faz uso da aparelhagem técnica e das gravações mecânicas disponíveis ao seu cantar, investe no paradigma humano ao reciclar temas e estilemas que tencionam a presença do indivíduo no mundo.
Daí a alegria latino-americana com sua profusão de ritmos e estilos cancionais. Por aqui, há mimos para todos os gostos e necessidades. O cancionista daqui trabalha com um raio imenso de significantes oriundos das misturas, da mestiçagem e da hibridação que nos constituem, sem medo de assumir influências, pois sabe que a autoria e a assinatura da canção estão no lugar do rearranjo que engendra com aquilo que as canções que lhe antecederam oferecem.
Tal rearranjo não se dá se qualquer jeito, mas precisa criar no ouvinte uma experiência estética forjadamente despretensiosa e aí reside o trabalho poético do cancionista. A fim de ninar o ouvinte, letra, palavra e gesto vocal precisam se equilibrar no eixo exato do desejo de quem ouve - quando não criar desejos - naquele instante ficcional em que a vida, com seus efeitos especiais, parece valer a pena.
O cancionista moderno é um ouvinte de canção. E isso não é pouco, pois sugere a mobilização da tradição. O cancionista moderno, a neosereia, usa as mídias como forma de canção. É isso que Marcela Bellas - no disco Será que Caetano vai gostar? (2009) - faz com a canção "Mamãe sereia", de Mário Mukeka e André Mury.
Marcela Bellas trabalha misturando sons de sintetizadores e tambores afim de criar uma cama sonora líquida - molhada - para a voz da mãe/sereia do título da canção. Isso radicaliza a mensagem do sujeito que pede à figura mítica: "Bota esse menino pra nascer / Bota esse menino pra correr / Bota esse menino no mundo que é pra ele ver".
O pedido deixa vazar um corte agridoce no cordal umbilical que vai do ouvinte ao seu cantor: filho/mãe; navegador/sereia. Ao justapor a figura da mãe e da sereia, o sujeito da canção coloca diante do espelho dois seres cantantes - Medusas no espelho - neutralizando e/ou exacerbando suas forças.
Para tanto, o sujeito recorre a Iemanjá e a Oxum - entidades que reinam sobre as águas - como metáfora poética do mergulho do sujeito liberto no mundo sonoro que ele mesmo passa a criar para si, sem a mediação materna e/ou sirênica.
Obviamente, seja como for, a interdepedência fica configurada: mães, sereias e deuses assim são porque assim os presentificamos em nossas vidas. Cabe ao indivíduo, assim como afirma fazer o sujeito de "Mamãe sereia", botar linha nas conchinhas da mamãe sereia (da vida) e fazer um colar. Aliás, é isso que faz Marcela Bellas ao se debruçar sobre nossa potência latino-americana tropicalista.
Fora do útero, passamos a vida cantando e sendo cantados, não necessariamente com a mesma exuberância paradisíaca, daí a circularidade permanente da ilusão e, até porque, precisamos cantar também: ser mães e ser sereias de outros.
A neosereia, o cancionista moderno, que faz uso da aparelhagem técnica e das gravações mecânicas disponíveis ao seu cantar, investe no paradigma humano ao reciclar temas e estilemas que tencionam a presença do indivíduo no mundo.
Daí a alegria latino-americana com sua profusão de ritmos e estilos cancionais. Por aqui, há mimos para todos os gostos e necessidades. O cancionista daqui trabalha com um raio imenso de significantes oriundos das misturas, da mestiçagem e da hibridação que nos constituem, sem medo de assumir influências, pois sabe que a autoria e a assinatura da canção estão no lugar do rearranjo que engendra com aquilo que as canções que lhe antecederam oferecem.
Tal rearranjo não se dá se qualquer jeito, mas precisa criar no ouvinte uma experiência estética forjadamente despretensiosa e aí reside o trabalho poético do cancionista. A fim de ninar o ouvinte, letra, palavra e gesto vocal precisam se equilibrar no eixo exato do desejo de quem ouve - quando não criar desejos - naquele instante ficcional em que a vida, com seus efeitos especiais, parece valer a pena.
O cancionista moderno é um ouvinte de canção. E isso não é pouco, pois sugere a mobilização da tradição. O cancionista moderno, a neosereia, usa as mídias como forma de canção. É isso que Marcela Bellas - no disco Será que Caetano vai gostar? (2009) - faz com a canção "Mamãe sereia", de Mário Mukeka e André Mury.
Marcela Bellas trabalha misturando sons de sintetizadores e tambores afim de criar uma cama sonora líquida - molhada - para a voz da mãe/sereia do título da canção. Isso radicaliza a mensagem do sujeito que pede à figura mítica: "Bota esse menino pra nascer / Bota esse menino pra correr / Bota esse menino no mundo que é pra ele ver".
O pedido deixa vazar um corte agridoce no cordal umbilical que vai do ouvinte ao seu cantor: filho/mãe; navegador/sereia. Ao justapor a figura da mãe e da sereia, o sujeito da canção coloca diante do espelho dois seres cantantes - Medusas no espelho - neutralizando e/ou exacerbando suas forças.
Para tanto, o sujeito recorre a Iemanjá e a Oxum - entidades que reinam sobre as águas - como metáfora poética do mergulho do sujeito liberto no mundo sonoro que ele mesmo passa a criar para si, sem a mediação materna e/ou sirênica.
Obviamente, seja como for, a interdepedência fica configurada: mães, sereias e deuses assim são porque assim os presentificamos em nossas vidas. Cabe ao indivíduo, assim como afirma fazer o sujeito de "Mamãe sereia", botar linha nas conchinhas da mamãe sereia (da vida) e fazer um colar. Aliás, é isso que faz Marcela Bellas ao se debruçar sobre nossa potência latino-americana tropicalista.
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Mamãe sereia
(Mário Mukeka / André Mury)
Ê mamãe sereia
Transforme a areia em estrelas do mar
Ê mamãe sereia
Suas conchinas eu boto linha e faço um colar
Bota esse menino pra nascer
Bota esse menino pra correr
Bota esse menino no mundo que é pra ele ver
Ouvir o canto da sereia
Andar no véu de Iemanjá
Ver o ouro de Oxum lá no fundo do mar
Ê mamãe sereia
Transforme a areia em estrelas do mar
Ê mamãe sereia
Suas conchinas eu boto linha e faço um colar
Bota esse menino pra nascer
Bota esse menino pra correr
Bota esse menino no mundo que é pra ele ver
Ouvir o canto da sereia
Andar no véu de Iemanjá
Ver o ouro de Oxum lá no fundo do mar
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