30 junho 2020

Bichos da noite de O coronel de Macambira


Pelo menos desde o Pica-flor da famosa décima atribuída a Gregório de Matos (1636-1696), passando pelo icônico Sabiá de Gonçalves Dias (1823-1864), pelo Albatroz importado por Castro Alves (1847-1871), até a Asa Branca e o Assum Preto cantados por Luiz Gonzaga (1912-1989), e o Carcará de João de Vale (1934-1996), os pássaros canoros povoam o imaginário popular e poético do brasileiro, dando voz a diagnósticos e a metáforas do Brasil. Dentre eles temos também as chamadas aves de agouro: "Toda noite no sertão / Canta o João Corta-Pau / A coruja, a mãe da lua / A peitica e o bacurau", como registrou Luiz Gonzaga em "Acauã" (Zé Dantas).
O nome "bacurau" voltou à baila em 2019, devido ao sucesso do filme dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Na tela, Bacurau é o lugar e é um modo de agir coletivamente - a ave noturna impregna o ânimo dos moradores do vilarejo no interior do sertão nordestino, estranhamente retirado do mapa. O levante coletivo contra um inimigo estrangeiro parece recuperar o nordeste das revoltas históricas, a partir de 1930, resultado do crescente urbanismo e da inserção do pensamento marxista.
Para Durval Muniz de Albuquerque Jr. neste momento do país surge "um Nordeste que olhava sem saudade para a casa-grande, que sentia o mesmo desconforto com o presente, mas que também virava as costas para o passado, para olhar em direção ao futuro. Um Nordeste construído como espaço das utopias, como lugar do sonho com um novo amanhã, como território da revolta contra a miséria e as injustiças. Um lugar onde a preocupação com a nação e com a região se encontrava com a  preocupação com o “povo”, com os trabalhadores e com os operários. Um espaço não mais preocupado com a memória, mas com o “fazer história”. Um espaço conflituoso, atravessado pelas lutas sociais, “pela busca do poder”. Um espaço fragmentado, em busca de uma nova totalização, de um novo encontro com a universalidade. Um Nordeste não mais assentado na tradição e na continuação, mas sim na revolução e na ruptura. Um espaço em busca de uma nova identidade cultural e política, cuja essência só uma “estética revolucionária” seria capaz de expressar. Nordeste, território de um futuro a ser criado não apenas pelas artes da política, mas também pela política das artes" (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 207-208).
É este território auto-gestado e munido de revolta que aparece no filme. A ave é o emblema do ânimo de quem mora nesse lugar. Foi uma postura semelhante o que insuflou o espírito messiânico e o engajamento político na canção popular brasileira, também a partir de 1930/40. Atendendo o chamado ao sacerdócio e ao dogma, muitos artistas tomaram para si a missão de restituição da identidade nacional perdida, representada, naquele contexto de grande êxodo rural, pelo retirante, sertanejo, "nordestino".
O messias que o sujeito das canções passa a assumir pode ser visto, por exemplo, evocado e projetado em canções de Geraldo Vandré, na figura do “boi” que se torna “cavaleiro” e que, travestido de “boiadeiro”, salvará o “nordestino”: “Bem no fundo do coração / Guardo há tempos um cavaleiro / Que ainda vou mandar pro norte / Vestido de boiadeiro / (...) / E há um mundo inteiro / Que espera ouvir falar / De um bravo cavaleiro / Que bem soube se guardar / Para um dia lá no sertão / E no mar e em teu coração / Sertanejo ou jangadeiro / Trazer paz para o Norte inteiro” (“O Cavaleiro”, de Geraldo Vandré e Tuca). Lembremos-nos ainda dos versos “O mundo foi rodando nas patas do meu cavalo / E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando / As visões se clareando, até que um dia acordei” (“Disparada”, de Théo de Barros e Geraldo Vandré). É esse sujeito esclarecido e desperto que toma para si a tarefa de tocar – aboiar – o levante popular. Mas isso não é manter o povo “gado”? O povo deixa de ser “gado” só porque quem está guiando agora é um sujeito “vindo do povo”? Sem esquecer o antológico “Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar / Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar”, de “Disparada” (Théo de Barros, Geraldo Vandré).
Essa evasão messiânica e consoladora da “canção de protesto” brasileira é irmã das protest songs estadunidenses e da nueva canción latino-americana, mantendo o caráter de resistência cultural. Alinhada ao fortalecimento da identidade latino-americana promovida pela Revolução Cubana de 1959, no Brasil, tendo como artífices Carlos Lyra, Nelson Lins e Barros, Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo, a “canção de protesto” vai propor a valorização da brasilidade e a união nacional e latino-americana em torno da defesa e da salvaguarda desta identidade, que naquele momento significava o encontro com a “música de raiz” e a “fé no povo”. Por exemplo, depois de saldar “Quechuas, Tamoios, Mapuches, Tabajaras, Guaranis / Incas, Astecas e Maias, Aimarás e Tupis”, o sujeito da canção “De América” (Geraldo Vandré), canta: “Si es quien seguir al mismo fin / Llega a sentir a la unidad / Hay que buscar, hay que seguir / Y repartir la soledad / De américa, de américa”. A primeira canção assumidamente politizada no Brasil parece ter sido “Canção do subdesenvolvido” (1961), composta por Carlos Lyra e Chico de Assis, ambos ligados às atividades do CPC da UNE. Nessa canção, as referências e críticas à dependência econômica e cultural do Brasil com relação aos Estados Unidos ganham tons explícitos em vários trechos da canção.
No caminho dessa valorização da brasilidade e desse desejo de união nacional, Sergio Ricardo encontra no texto de Joaquim Cardozo (1897-1978), O coronel de macambira (1963), a voz parceira. Na orelha do livro, Moacyr Félix destaca que com "este 'bumba-meu-boi'" Cardozo participa "nas interrogações históricas em que se formam a sua terra e o seu povo". Segundo Félix, sem "os chavões, a inovação formal que não inova nada, o fraseado fácil e insincero dos que escrevem movidos por circunstâncias outras que a que impulsiona o coração do poeta, o esquematismo, o sectarismo tão próprio da pequena burguesia apenas revoltada ou ressentida"; e que a palavra de Cardozo, verso após verso, estrofe após estrofe, estruturou no ar de sons assim formados a invenção de uma única e inefável Fala, que é o conteúdo deste poema, deste bumba meu boi" (CARDOZO, 1963).
Esta "fala" inventada interessa aqui, pois queremos compreender as estratégias de Sergio Ricardo para verter o texto de Cardozo na canção "Bichos da noite", composta para uma montagem da peça O Coronel de Macambira e registrada no disco A grande música de Sérgio Ricardo (1967), e que figura na trilha do filme Bacurau. Sendo um texto poético-dramático, um drama falado O coronel de Macambira imprime em suas páginas uma partitura vocal, evidenciada em versos como "hô hó hó ho hauuau", em que alturas e extensões dos sons silábicos são sugeridos. Fala e partitura da peça-poema de Cardozo são solidárias com as dificuldades do povo brasileiro, pois critica os exploradores e dá voz às vítimas.
A respeito da participação social de sua arte, Cardozo anota que: "A maioria das críticas e observações contidas nestes versos agora publicados foram ouvidas e vividas: conheci na Baía da Traição, ao norte da Paraíba, um chefe de cangaceiros que se chamava 'Chico Fulô', e de quem ouvi grande parte das expressões contidas no papel do 'Valentão'; na linguagem do Mateus, Catirina e Bastião procurei transmitir a linguagem de certos tipos populares do meu tempo, que usavam, em meio a expressões dialetais ou coloquiais, frases como: 'filosofia positiva', 'certeza física e matemática', 'estio sublime' e muitas outras; esses tipos eram quase sempre oradores populares como 'Bochecha', 'Budião de Escama' e 'Gravata Encarnada' que procuravam imitar outros oradores mais escolarizados frequentes nos comícios políticos de então, oradores que, naquele tempo, pretendiam ser sucessores de Joaquim Nabuco" (CARDOZO, 1963, p. 162).
Por sua vez, não é à toa que o texto, o "Boi" de Joaquim Cardozo é dedicado a Ascenso Ferreira (1895-1965). Quem justifica a dedicatória é o próprio Cardozo: "Tomei como base para compô-lo, a versão folclórica coligida pelo poeta Ascenso Ferreira, e publicada nos números 1 e 2 de 1944, da revista Arquivos da Prefeitura de Recife; não utilizei, entretanto, todas as figuras, mais ou menos fixas, que fazem parte desse espetáculo. Trata-se, aqui, de uma obra inteiramente original, no texto, mas obedecendo às regras características desse drama falado, dançado e cantado - espécie de auto pastoril quinhentista, de onde, certamente, proveio" (CARDOZO, 1963, p. 161).
E o bacurau? No poema "Catimbó" (1927), Ascenso Ferreira anota: "Ela há de me amar... / - Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar" (FERREIRA, 2008, p. 13). Na canção popular, entre outras aparições, o bacurau é cantado e canta em: "Pássaro bacurau" (Jackson do Pandeiro e Raimundo Evangelista), na voz de Jackson do Pandeiro (Tem mulher, tô lá, 1973) - "Não é tão bonito / Como é gozado / Passo o dia cochilando / E a noite acordado // Nem que me dê mal / Ou gaste o meu dinheiro / Ainda vejo em meu viveiro / Aquele bacurau"; "A coruja e o bacurau" (Duda Santos e Ulisses Silva), na voz de Clemilda (A coruja e o bacurau, 1976) - "Minha avó tem uma coruja / Meu avo um bacurau / Todo dia os dois velhos discutem / Dizendo o meu é bom, o seu é mal"; e na instrumental "Quadrilha do bacurau" (Sivuca e Afonso Gadelha), no disco Forró e frevo vol. 4 (1984).
Responsável pelos cálculos matemáticos para a construção de Brasília, Joaquim Cardozo arquiteta uma canção em que os bichos da noite ressoam nas assonâncias do coro. Na peça O coronel de Macambira, as personagens se recostam na cerca de "ramos trançados" para esperar o dia nascer, "neste momento começa a 'dança do bichos da noite'; estes avançam, recuam, ameaçam o grupo agachado junto à cerca. As cantadeiras, durante a dança, cantam em voz surda e apagada" (CARDOZO, 1963, p. 86):
Compositor das canções, “Zelão”, “Calabouço”, “Esse mundo é meu” e “Conversação de paz”, Sérgio Ricardo compõe em 1967 o hino da localidade de Bacurau de 2019. O repente de viola e as redondilhas do cordel dão o tom e o ritmo da peça e do clima no filme. Responsável pela trilha dos filmes Deus e o Diabo na terra do sol (1964), Terra em transe (1967) e Dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha, Sergio Ricardo cria uma melodia de cortejo, passional (alongamentos vocálicos climáticos do medo e do espanto, de soluço e de lamento: "au, au, au, aaau") aproveitando sobremaneira as rubricas melódicas do texto.
Das treze (número da morte!) estrofes/quartetos da canção da peça, Ricardo utiliza sete: as cinco primeiras e as duas últimas. Ficam de fora versos como "Há um pio agourento: / E mãe da lua: urutau". Se as rimas dos primeiros e terceiros versos de cada quadra variam - "noite/dançando", "espanto/noite", "ar/feita", etc -, as rimas dos segundos e quartos versos sempre terminam em "au", desde a primeira estrofe, em que o pássaro surge - "bacurau/babau", até a derradeira "vau/perau", o canto e o cantar encaminham-se para a figuração sonora do bacurau; cujo núcleo imagético está na terceira quadra "andam feitiço no ar / de um feitiçeiro marau, / mandingas e coisas feitas / do xangô de Nicolau". O orixá como metonímia da celebração e do quebranto sustenta a dança dos bichos da noite no ar. A rima em "au" funciona como uma assonância onomatopeica estentida por todo o poema, espalhando o canto do bacurau, do pica-pau, do urutau - "uauau, uauau, uauau" - ao longo de todo o encantamento poético que o texto fixa. "As águas giram seus discos / até o funil de um perau" e adensam o estado de espanto e poesia das personagens do bumba-meu-boi.
Na peça Marechal, boi de carro, Joaquim Cardozo apresenta melhor o bacurau. Em resposta a Mateus que, "olhando para um pássaro meio esquivo na gaiola", pergunta "e este aqui, como se chama?", o passarinheiro diz: "Esse é o bacurau: está aí / Assim esquivo e escondido / Porque, como rodos sabem, / Bacurau não tinha penas, / Mas roubou dos outros pássaros / As penas que agora tem / Por isso só sai à noite / Com medo de ser pegado / Como ladrão. Este aí / Custou-me muito apanhá-lo / Agora aí está; ficou / Sob a minha proteção /  E goza de liberdade..."; ao que Mateus comenta: "Também essa liberdade... / Que o diabo a leve pro inferno" (CARDOZO, 2018, p. 302).
Essa liberdade cerceada do texto desliza para a tela de cinema. A certa altura do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles uma estrangeira pergunta “E quem nasce em Bacurau é o que mesmo?", "é gente”, responde um garoto do vilarejo. E não é "de assombrações um sarau" dos bichos da noite a rebelião do filme? "A consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950. Mas desde o decênio de 1930 houvera mudança de orientação, sobretudo na ficção regionalista, que pode ser tomada como termômetro, dada a sua generalidade e persistência" (CANDIDO, 1979, p. 345). Nesse movimento, Cardozo nega o exotismo transformando-o em estado de alma de sua poética teatral de inspiração revolucionária; supera o otimismo patriótico e paternalista; e foca na espoliação econômica do "pobre". O eu-lírico e o eu-participante se equilibram no mesmo parâmetro semântico que o bacurau é, e sem redundância retórico-sentimental sondam o humano: "Um caçador esquecido / que espreita de alto girau / não vê cotia, nem paca, / só vê jaguara e babau"; "Finge que fuma e defuma / fumando o seu catimbau / 'medo da noite' com o rosto / Pintado de colorau".

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2011.
CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: MORENO, César Fernández (org.). América latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.
CARDOZO, Joaquim. O coronel de Macambira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
CARDOZO, Joaquim. Teatro de Joaquim Cardozo. Recife, CEPE, 2018.
FERREIRA, Ascenso. Catimbó: cana caiana; xenhenhém. Introd., org., e fixação de texto Valéria Torres da Costa e Silva. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
RICARDO, Sérgio. Bichos da noite. In: A grande música de Sérgio Ricardo. Rio de Janeiro: Philips, 1967.

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Bichos da noite de O coronel de Macambira
(Joaquim Cardozo / Sergio Ricardo)

São muitas horas da noite
São horas do bacurau
Jaguar avança dançando
Dançam caipora e babau

Festa do medo e do espanto
De assombrações num sarau
Furando o tronco da noite
Um bico de pica-pau

Andam feitiços no ar
De um feiticeiro marau
Mandingas e coisas feitas
No xangô de Nicolau

"Medo da noite" escondido
Nos galhos de um pé de pau
A toda dança acompanha
Tocando seu berimbau

Um caçador esquecido
Espreita de alto jirau
Não vê cotia nem paca
Só vê jaguara e babau

Alguém soluça e lamenta
Todo esse mundo tão mau
Picando a sombra da noite
Pinica o pinica-pau

Alguém no rio agoniza
Num rio que não dá vau
Alguém na sombra noturna
Morreu no fundo perau