Resenha escrita via whatsapp pelo grupo
de pesquisa POESIA
E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o livro “Poetas ou
cancionistas? Uma discussão sobre música popular e poesia literária”, de Lauro
Meller.
No
livro “Poeta ou cancionistas? Uma discussão sobre música popular e poesia
literária”, Lauro Meller analisa vários modelos de análise da canção,
cotejando-os e demonstrando sua complementaridade, sublinhando a singularidade
da linguagem da canção. Se por um lado as letras de canção não precisam
"fazer sentido", entendendo-se como fazedor de sentido o ato
comunicativo bem-sucedido, conformado aos parâmetros de uma língua corrente,
elas de todo jeito "fazem sentido", só que de uma maneira bastante
particular, subordinada/ligada a outros aspectos, alguns deles nem remotamente
linguísticos. Assim, um juízo valorativo da canção não pode se basear somente
no conteúdo de sua letra: se o fizermos, não estamos efetivamente lendo
canções, mas elevando/reduzindo letras de canção ao estatuto de poemas, uma
outra forma de expressão. Neste caso, a letra seria forçada a se subordinar aos
paradigmas e às regras de análise de poesia: são poucas as canções populares
que escapariam ilesas, carregando legitimidade poética, a esse crivo injusto. E
as convergências e diferenças entre a poesia na/da palavra escrita e na/da
palavra cantada são os motes da tese de Meller. Em sua avaliação, na “letra da
canção [que] oferece uma qualidade literária, há que se analisar essa letra não
em silêncio”. (p. 84). Ou seja, a canção deve ser analisada como um todo: letra
(mensagem) e o modo como essa mensagem é dita (cantada) em seus contornos
melódicos e rítmicos.
Meller
comenta a proposta de Simon Frith, para quem, ao ouvirmos uma canção, ouvimos,
ao mesmo tempo, palavras, que são uma fonte semântico-interpretativa; retórica,
que são essas palavras sendo usadas de uma maneira especialmente elaborada
(neste caso, musical); e vozes, que por si sós já carregam implicações de
sentido. Em suma, afirma que "a análise da letra de canção não envolve
apenas palavras, mas palavras em performance" (FRITH, 1996, p. 166). Se
retiramos a letra desse ambiente de performance e a colocamos no papel,
sacrificamos toda sua riqueza e potencialidade. "(…) mesmo que se queira
compensar essa perda com a abertura interpretativa que a palavra 'nua' nos
oferece, ela já está por demais atrelada ao componente musical, de modo que
essa liberdade não funcionará como funcionaria em um poema", anota Lauro
Meller (p. 94).
Para
o autor, que analisa as propostas de Luiz Tatit, de quem toma emprestado o
termo “cancionista”, e Philip Tagg, entre outros, o estudo da canção popular
vai muito além da letra, envolve um conjunto: voz (modos de dizer), melodia e
ritmo. Tagg exige conhecimentos propriamente musicais: sua análise requer
conhecimentos de melodia, arranjo, orquestração, tonalidade, acústica, etc. O
exemplo dado das várias versões de “A hard day’s night” é mais uma excelente
demonstração das especificidades da execução performática da canção, que as
diferenciam e singularizam malgrado a manutenção da letra. O autor apresenta
ainda uma revisão dos estudos de Gabrielsson e Lindström que investigaram
repostas emocionais de ouvintes não profissionais a “determinadas
características na música” (p.85). E conclui: “ao alinhavarmos as propostas de
Frith, Tagg, Tatit, Gabrielsson & Lindström e Friedlander, aplicando esses
modelos de análise da canção popular ao nosso objeto pretendemos franquear o
acesso de estudiosos não-especialistas em música ao universo dos estudos de
música popular, evitando, ao mesmo tempo, o reducionismo de se prescindir por
completo do estrato musical para privilegiar as letras” (MELLER, 2015, p.
139-140).
Meller afina-se ao
método de análise multiciplinar proposto por Tagg, por evitar desequilíbrios,
que uma abordagem mais limitada poderia ter. Por exemplo, uma crítica apenas
formalista pecaria por uma descrição estéril do objeto de análise. Da mesma
maneira, uma crítica que privilegie apenas a intuição ou a sensibilidade correria
risco de ser muito impressionista. Tagg oferece então seu "método
hermenêutico-semiológico", uma lista de parâmetros de expressão musical,
que visa analisar os diferentes aspectos – “musemas” – da canção.
Assim, Lauro Meller
denuncia a insuficiência técnica na análise cancional efetuada na Academia; e
defende a necessidade de reconhecimento da especificidade da canção em relação
à poesia, e do cancionista em relação ao poeta. Ele cita Arnold Hauser, que
aproxima alguns critérios entre aquilo que valorizamos em uma estética
literária e parte para a pergunta: "em que compositores encontramos essas
características que valorizamos na série literária tradicional?" (p. 73). O
autor percebe o movimento de críticos e pesquisadores em tentar legitimar
grandes cancionistas nacionais dentro dos parâmetros da literatura tradicional,
o que, segundo ele, resulta num erro. E cita Chico Buarque, Caetano Veloso e
Gilberto Gil como alguns dos cancionistas mais tratados nas dissertações e
teses dos cursos de Letras. Cursos que têm deixado de fora "compositores
populares 'autênticos' como Cartola, ou 'semi-eruditos', como Catulo da Paixão
Cearense", por exemplo. Ao mesmo tempo em que cita o livro "Noel Rosa
– língua e estilo" e acusam os autores Castelar de Carvalho e Antonio
Martins de Araujo por atropelarem a linha de fã/crítico e chamarem Noel de
"poeta" e não de "cancionista". E conclui que "os
autores insistem em levantar qualidades 'sérias' nas canções de um compositor
cuja principal arma era o deboche; parecem questionar o fato de Noel não ter
ainda sido agraciado com uma edição de suas obras completas pela Editora Nova
Aguilar, quando o maior desejo do autor de 'Três apitos', segundo seus
principais biógrafos, Máximo e Didier, era o de ouvir suas canções entoadas e
assoviadas nas ruas, isto é, absorvidas e postas em circulação pelo público, e
não silenciadas em estantes" (p. 76).
Dependendo do contexto
ou efeito que se espera da obra, o texto (da canção ou obra literária)
desempenhará melhor ou pior a sua função. Os diferentes gêneros e subgêneros
geram efeitos variados em públicos diferenciados. O autor defende que a canção
popular tem sido utilizada como uma espécie de caminho entre a poesia de série
literária e a música. Ele parte da diferença entre música popular e poesia
literária: a primeira sendo desfrutada coletivamente, letra e música se
materializam na voz e no corpo, na performance; já a segunda, se dando
individualmente, ainda que tenha sua dimensão material e psíquica, o caminho
entre o material e o psíquico é diferente em cada um. Fica a certeza de que, de
natureza híbrida, não podemos analisar a canção sob conceitos puramente
literários ou puramente musicais eruditos. O autor reafirma a ideia de que,
embora, a letra de canção tenha "qualidade literária", é preciso que
a análise valore todos os constituintes do gênero.
MELLER, Lauro. Poeta ou cancionistas? Uma discussão sobre música popular e poesia
literária. Curitiba: Appris, 2015.
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