31 maio 2012

If you hold a stone

Há alguns modos de exílio. Todos dolorosos. Na malha do texto polifônico que compõe o romance Exílio (2012), por exemplo, a escritora Marcela Tagliaferri cria um personagem que passa quinze anos exilado em um manicômio, vítima da obsessão de um sogro afeito ao golpe militar brasileiro e desejante de que a filha lhe seja (só e apenas) objeto de caprichos sádicos.
A poética do exílio é a do não-pertencer mais que não-pertencer. É o altíssimo grau de complexidade do estranhamento da identidade. Estranho a tudo, estrangeiro, "forasteiro do que vê e ouve", o exilado se estranha. Por sua vez, se comumente o artista é sempre um cantante localizado no exílio de si mesmo, porque submerso na gravidade do pertencer-não-pertencer ao mundo, o artista exilado opera com a potencialização da vulnerabilidade da subjetividade: a morte de Narciso.
"Os dias daquela semana na solitária da Polícia do Exército às vezes são lembrados por mim como um só dia que pareceu durar uma eternidade. Depois de muito tempo - mas o que era “muito tempo”? -, comecei a procurar por mim mesmo na pessoa que dormia e acordava no chão daquele lugar odioso cuja imutabilidade impunha-se como prova de que não havia - nunca houvera - outros lugares. Se nunca ver ninguém era um fato que contribuía decisivamente para criar essa impressão, uma outra limitação - que se perpetuou por todo o período da prisão – a intensificava: não ter acesso a espelhos", anota Caetano Veloso em Verdade tropical (1997).
No exílio, o indivíduo afastado de sua Língua, é obrigado a usá-la em conflito com a Língua do lugar onde ele se refugia. O exilado segura uma pedra em brasa nas mãos. Cantor-de-si e estranho aos cantos ao redor, ele canta a vida segurando essa pedra pesada e acesa: a própria (des)identidade? É por isso que as canções de exílio - em geral - são doídas, de tons baixos, voz despida de brilho e calor: uma quase não-voz, porque cantada de um quase não-lugar.
Exemplo disso são as canções do exílio de Caetano Veloso. Compostas em inglês sobre um palimpsesto - pergaminho cujos manuscritos foram apagados para dar lugar a outros manuscritos - brasileiro, tais canções explicitam, na voz de Caetano Veloso, não apenas o estado singular dos sujeitos cancionais, mas também do artista, do indivíduo.
Os movimentos vocais de Caetano inflamam aquilo que as letras dizem e as melodias sugerem. A quase não-voz é entoada para que a conexão com o seu lugar - perdido com o exílio - se mantenha: "Eu não vim aqui / Para ser feliz / Cadê meu sol dourado / E cadê as coisas do meu país?", pergunta o sujeito de "If you hold a stone", de Caetano Veloso, enquanto é amparado e mimado pelo coro (sabiá que melhor gorjeia) cantando "marinheiro só".
Importa lembrar que o canto do sabiá como símbolo de sustentação do indivíduo retorna mais explicitamente na obra de Caetano quando ele grava "Sou seu sabiá" (Noites do Norte, 2000): "Se o mundo for desabar sobre a sua cama / E o medo se aconchegar sob o seu lençol // (...) // Você pode estar tristíssimo no seu quarto / Que eu sempre terei meu jeito de consolar // (...) // Eu sou / Sou seu sabiá / Não importa onde for / Vou te catar / Te vou cantar". Sem o sabiá simbólico, o exilado arranha autocantos: as canções de exílio.
Não é à toa que "If a hold a stone" tenha sido dedicada a Lygia Clark, artista cujo projeto estético singulariza a produção de presença do corpo, da fisicalidade da subjetividade na arte. A participação, a penetração (para usar um termo caro à obra de Hélio Oiticica) do, agora, não-espectador mas parte do objeto, diz muito ao sujeito da canção que vem do exílio.
Unindo a imagem da pedra cantada nos versos em inglês e do arranhar que marca os dias passados na "cela de uma cadeia", o designer Claudio Rocha traduziu, transcriou "If you hold a stone" na pedra-dor onde a letra da canção foi gravada e grafada, fixando os anseios do sujeito no objeto-ícone cantado.
O trabalho de Claudio Rocha ilustra a versão que Sylvio de Oliveira fez de "If you hold a stone". Em Letra - As Canções do Exílio de Caetano Veloso (2008), Sylvio recria os temas com o coração na boca. Sylvio performatiza os sujeitos cancionais com o corpo todo através da garganta sufocada, cheia de pregnâncias do despertencer, dos sons guturais e da voz densa e amargurada. Aqui o berro no escuro apocalítico, o peso da pedra-oráculo, o excesso de não-lugar, de aturdimento rítmico, de nó-no-peito oferecem o tom do canto que presentifica o corpo-todo do indivíduo em exílio. "If a hold a stone" abre o disco, o projeto.
O contrário, ou melhor, o reverso acontece nos tons que Alexia Bomtempo (I just happen to be here, 2012) encontrou para cantar as canções em inglês de Caetano Veloso. E "If you a hold a stone" fecha o disco, em voz e violão. E a valorização do silêncio, da introspecção tem lugar na voz da cantora de dupla nacionalidade. Ou seja, o não-pertencer já não é mais uma questão, mas a fronteira, o entre, o meio.
De lá e de cá, a voz de Alexia Bomtempo se aquieta para entender as identidades dos sujeitos cantados. Os sujeitos cantados por Alexia carregam a pedra-lágrima. E o silêncio, a respiração busca o reconhecimento de sujeitos cancionais desentendidos.
"O primeiro esforço no sentido de me reconhecer em mim mesmo se deu na forma de uma tentativa de chorar: se eu estava em tão má situação, se me tinham afastado bruscamente da mulher com quem me casara havia apenas um ano, se não podia ver o apartamento que mal começáramos a arrumar, se me jogaram sobre um cobertor áspero e jornais velhos, se ninguém ouvia minhas perguntas, certamente seria suficiente que me concentrasse em tais constatações para que lágrimas começassem a correr, soluços e espasmos me sacudissem. Mas não. Essa intimidade do espírito com o corpo que o pranto propicia era-me negada", anotou Caetano sobre a prisão antes do exílio.
"If you hold a stone" na voz de Alexia Bomtempo é a lágrima que escorre do rosto invisível de um desesperançado, do artista cujo único amparo está no violão que acompanha sua voz. Aqui, a desempatia consigo mesmo que o sujeito canta - o não gostar-de-si, recebe desenhos imagéticos perfeitos. E servem de acalanto: canção de ninar.
Alexia carrega a pedra-sabiá nas mãos, na voz. O "if you" se descola da primeira pessoa do discurso - como no caso das versões do próprio Caetano e de Sylvio - para efetivamente evocar a segunda pessoa: o outro, o alheamento. Alexia canta a dor do outro, em si. E o único verso possível de ser cantado em português é "Eu não tenho amor".
O sujeito que Alexia recria entende e traduz na voz as palavras do cancionista quando este anota em seu livro de memórias: "Nós, os tropicalistas, diferentemente de muitos amigos nossos da esquerda mais ingênua, que pareciam crer que os militares tinham vindo de Marte, sempre estivemos dispostos a encarar a ditadura como uma expressão do Brasil. Isso aumentava nosso sofrimento, mas hoje sustenta o que parece ser meu otimismo. É que penso e ajo como se soubesse na carne quais as potencialidades verdadeiras do Brasil, por ter entrado num diálogo com suas motivações profundas - e simplesmente não concluo que somos um mero fracasso fatal".
Na fronteira, também tristíssima, em estado de não-pertencimento, a voz que Alexia entoa transita com cuidado pelo não-lugar. Talvez para não deixar a pedra-enigma - "You’ll never be late / To understand" - cair. Talvez para romper frestas solares, de consolo. Entre o sim e o não, talvez.

***

If you hold a stone
(Caetano Veloso)

If you hold a stone
Hold it in your hand
If you feel the weight
You’ll never be late
To understand

Mas eu não sou daqui
Eu não tenho amor

24 maio 2012

Músico

Tenho escrito aqui que a canção tem algo de materno, naquilo que ela é de alento, sentido e presença. Porque feita de música, poesia e voz - signos femininos(?) -, a canção é feminina. As mulheres sempre cantaram. Daí as musas e as sereias figurarem como símbolos de fonte e transmissão da mensagem, da história.
A voz (a feminina) aqui representa um dizer (a ação de vocalizar), mais do que um dito (significado). Neste sentido, o ato de dizer já é comunicar que alguém é e estar. Dizer é concretizar a unicidade de quem diz, tornando este um ser diferente de todos os demais.
Obviamente, estou tratando mais da escuta, em detrimento do visual, como metáfora guia da verdade. E indo no caminho inverso ao que Heráclito sentenciou: "Os olhos são melhores testemunhas que os ouvidos". Isso porque, como Adriana Cavarero (ler Vozes plurais) anota: "antes ainda de comunicar o que quer que seja, (...), a voz humana comunica ela mesma, ou seja, a sua unicidade".
Na prática, nada parece ser tão estanque e/ou bipolar (macho/fêmea) assim. Os versos da canção "Macha fêmea", de Arnaldo Antunes, Paulo Tatit e Marcelo Fromer, jogam ludicamente com isso invertendo radicalmente os conceitos: "cérebra caralha baga saca pescoça prepúcia ossa / nádego boceto têto côxo vagino cabeço boco // corpa moço dentra foro moça / orgama coita palavro sexa goza". Ou seja, esses versos liberam - "liberal gerou" - as palavras dos sentidos estáticos historicamente colados a elas .
E assim chego à canção "Músico", de Herbert Vianna, Bi Ribeiro e Tom Zé. Nela há uma reivindicação latente engendrada pelo "músico" (masculino) que quer o compartilhamento das glórias recebidas pela "música" (feminina) por disseminar verdades, "desatar presilhas".
O sujeito da canção faz isso recorrendo à mítica da "expulsão do paraíso", "Ligue-se o Éden / Som e maçã / Serpentes eternas / Sobem por nossas pernas", quando ele inseminou ela e juntos ganharam o mundo, perdendo o paraíso. Eis a questão que se configura aqui, longe da nostalgia: é o músico (seja um masculino, um feminino, um assim) quem injeta a semente (energia sonora) na música? Os argumentos do sujeito da canção levam a crer que sim. Mas ele também, por sua vez, não age encantado por ela?
Posto que a pergunta é mais importante que a resposta, este círculo infinito encontra melhor tensão na transcriação que Lucas Santtana deu à canção lançada originalmente no disco Severino, dos Paralamas do sucesso. Ao dividir os vocais com a cantora Céu, no disco O Deus que devasta mas também cura (2012), Lucas Santtana promove a refração e a transvaloração daquilo que define com nitidez músico/música, masculino/feminina. 
Aliando-se ao gesto do sujeito de "Macha/fêmea", a versão de Lucas Santtana, com voz "masculina" e "feminina" discutindo questões íntimas àquilo que cada parte deveria ser, faz um profundo corte epistemológico no tema dos gêneros. E aí se condensa e se prolifera o núcleo duro que o título do disco guarda: O Deus que devasta é o mesmo que cura. 
São muitas as possibilidades de leituras para a recriação de Lucas Santanna. A começar pelo arranjo melódico, pela sonoridade eletrônica-orgânica complexa criada para proporcionar a "fala", por sua vez também complicada, porque um quase poema concreto, do sujeito. E todos os elementos se fundamentam na voz, nas vozes.
No mais "Cadeia de gens / Somos um trem, Ô-Ô / Um trem que tem que tem que tem / A ignição de ser pó- / lem porque além disso do- / mina, insemina e se co-o-o-ze em / Semem, semem / Semem, semem". A voz que prolifera é a mesma que domina. Lucas e Céu, instrumentos e letras.
Não foi ao acaso que escolhi essa canção, não composta por Lucas Santana, para tratar de um disco seu. Até porque não nos parece gratuita a releitura que o cancionista, músico, dj faz para inseri-la entre novas composições. "Há um artista por trás de tudo", como Frederico Coelho escreveu ao comentar o disco de Lucas.
Partindo para um plano "de fora" da canção, podíamos mesmo dizer que "Músico" é uma canção-enigma de todo cancionista, principalmente os mais inventivos, como é o caso de Lucas Santtana: o músico é o cavalo da música? Mas por onde ele entra nela?

***
Músico
(Herbert Vianna / Bi Ribeiro / Tom Zé)

Ligue-se o Éden
Som e maçã
Serpentes eternas
Sobem por nossas pernas

Desatam presilhas
De estrelas e sóis
A milhões de milhas
Dentro de nós

Cadeia de gens
Somos um trem, Ô-Ô
Um trem que tem que tem que tem
A ignição de ser pó-
lem porque além disso do-
mina, insemina e se co-o-o-ze em
Semem, semem
Semem, semem

17 maio 2012

Sargaço mar

"O mais importante do bordado é o avesso", diz o sujeito da canção "O que eu não conheço", de J. Velloso e Jorge Vercilo, na voz de Maria Bethânia, ressignificando as perspectivas entre profundidade e superfície, interno e externo, dentro e fora, ser e aparência. 
Aquilo que não vemos, sequer pensamos, mas supomos existir como suporte daquilo que podemos ver, um avesso mal realizado pode inutilizar o bordado. As bordadeiras e os artesãos sabem disso: a trama interna de fios não pode ser feita de qualquer forma, o capricho com o avesso é fundamental no resultado da beleza do aparente no bordado.
Chamo atenção para isso a fim de registrar a beleza rara do projeto gráfico do encarte do disco Dorival (2011), do Quarteto Primo, com fotos feitas a partir dos bordados de Maria Esther Lacerda von Krüger sobre pinturas de Dorival Caymmi.
Atento para isso porque o bordado fotografado no encarte é a tradução imagética perfeita para a malha das vozes de Eliza Lacerda (soprano), Malu von Krüger (contralto), Matheus von Krüger (baixo) e Rogério von Krüger (tenor) ao longo das 13 canções do disco. Sob os arranjos vocais de Muri Costa, tais vozes tensionam artesania e mediatização, sutileza e técnica.
É preciso registrar que outro belo trabalho pictórico artesanal feito a partir da obra de Caymmi é a mandala O que é que a baiana tem?, de Demóstenes Vargas. Fazendo os signos de feminina baianidade circularem entre o óbvio e o exótico, a mandala (150 x 150 cm) com pontos variados é o abrigo que faz esses signos se encontrem com eles mesmos e, assim, dialogarem na sustentação do mito. Em tempo: um detalhe da mandala de Demóstenes foi utilizado para ilustrar a capa do disco Pirata (2006), de Maria Bethânia.

Voltando ao Quarteto Primo. Como sabemos, a polifonia é uma chave de leitura proposta por Bakhtin para a obra de Dostoiévski (ler Problemas da poética de Dostoiévski). A polifonia de um texto vem da coexistência e da interação de várias camadas sociais e suas vozes, com a expansão do capitalismo. E Bakhtin aponta semelhanças entre o artifício polifônico e as sátiras menipeias, na ironia e no modo complexo e pretensamente "relaxado" com que planos diversos passam a dialogar.
Por nossa vez, fincados na análise das poéticas vocais, identificamos em algumas canções de Dorival Caymmi o mesmo engenho em equalizar e misturar vozes, por vezes, diversas e contrastantes, gerando o que podemos chamar de efeito polifônico. Em Caymmi, mestre em estetizar o domínio público e traduzi-lo em canção popular mediatizada, isso acontece quando, ao mesmo tempo em que observamos um sujeito cancional individual, há o indício de outras vozes, fragmentos de relatos, rastros de histórias e acontecimentos distantes do sujeito que "fala".
No disco Dorival, o Quarteto Primo, exatamente por ser um grupo vocal, os desenhos das muitas vozes que cada canção de Caymmi contém estão inflamados, expostos na voz de cada um dos componentes: vozes enredadas em uma colcha de retalhos, ora de sujeitos diversos, ora de fragmentos do acontecimento - "O povo de Iemanjá tem muito que contar", anota o narrador de Mar morto, de Jorge Amado. E são as vozes desse povo o que temos aqui.
"Sargaço mar", de Dorival Caymmi, é um exemplo disso. Na versão do Quarteto Primo, a polifonia vocal imprime o encantamento sirênico - descrito na letra - em que o sujeito da canção se enreda para se entregar à Iemanjá. A doida canção que ele ouve, e que não foi feita por ele, arrasta o sujeito-cantor a misturar com o seu um canto "de fora": o cantar da mãe d'água.
Ou seja, o sujeito de "Sargaço mar" canta enfeitiçado e, na versão do quarteto, a polifonia vocal (sim, aqui a redundância faz-se necessária) é o efeito encantatório: eco e ressonância da voz de Iemanjá a embriagar o juízo do sujeito-cantor.
A melodia complexa e estranha à letra de "Sargaço mar" quer figurativizar o instante exato em que, semelhante ao que o personagem Guma afirma no livro acima citado, o sujeito "talvez tenha inveja do pai e do filho que morreram na tempestade e que agora correrão os mundos que só os marinheiros dos grandes navios conhecem". Dito de outro modo, O "fim de som" equivale ao desejo de "Me atirar, beber o mar / Alucinado; desesperar / Querer morrer para viver com Iemanjá".
"Deusa do amor, deusa do mar", Iemanjá é a cantora. "Ela é a mãe-d'água, é a dona do mar, e, por isso, todos os homens que vivem em cima das ondas a temem e a amam. Ela castiga. Ela nunca se mostra aos homens, a não ser quando eles morrem no mar. Os que morrem na tempestade são seus preferidos. (...) Para ver a mãe-d’água, muitos já se jogaram no mar sorrindo e não mais apareceram. Será que ela dorme com todos eles no fundo das águas?", o sujeito da canção quer dissipar a dúvida lançada em Mar morto. E faz, pois o canto "Iemanjá, Odoiá, Iemanjá, Odoiá" final é a entrega derradeira.
Por falar nela, é em conformidade com a descrição feita no livro Mar morto - "a mãe-d'água é loira e tem cabelos compridos e anda nua debaixo das ondas, vestida somente com os cabelos que a gente vê quando a Lua passa sobre o mar" - que ela aparece na capa do disco do Quarteto Primo.
Não podemos deixar de mencionar que o sargaço é uma alga marinha típica dos trópicos e que o Mar de sargaço, lugar geograficamente localizado, aprisionou muitas embarcações europeias do período dos descobrimentos. Ao inverter para "Sargaço mar", Caymmi dissemina o espaço localizado. Enquanto o Mar de sargaço está no Caribe, próximo ao triângulo das bermudas - outro lugar cheio de narrativas e mistérios -, o "Sargaço mar" está em toda parte: é o instante-já de dor e prazer individual; o querer mais que bem querer morrer para viver.
O jogo entre rimas abertas - mar, ar, desesperar, Iemanjá - e rimas fechadas - for, som, cor, amor - reforça internamente à canção o argumento daquilo que se arrebenta e alucina dentro do sujeito, reforçando seu impulso de trans-suicídio. A sugestão de eternidade nos braços da deusa do amor se sobrepõe à racionalidade. Cantor e canoeiro, o sujeito segue seu destino: é assim que se morre.
"Noite da festa de Iemanjá. Nessas noites o mar fica de uma cor entre azul e verde, a Lua está sempre no céu, as estrelas acompanham as lanternas dos saveiros, Iemanjá estira preguiçosamente os cabelos pelo mar e não há no mundo nada mais bonito (os marinheiros dos grandes navios que viajam todas as terras sempre dizem) que a cor que sai da mistura dos cabelos de Iemanjá com o mar". A narrativa de Mar morto parece ser o cenário ideal para o canto-ação, o eixo da canção - "Vou me atirar, beber o mar / alucinado, desesperar / Querer morrer para viver" - do sujeito de "Sargaço mar".
As trocas de turnos vocais que o Quarteto Primo empreende entre seus integrantes vai desenhando o mar que inaugura um verde novinho em folha, sedutor a cada instante, a cada nova voz, bonito quando quebra na praia convidando o sujeito ao mergulho fatal na fonte primeira da vida.
"Sargaço mar" já ganhou versões irretocáveis - de Calcanhotto a Bethânia, passando por Olívia e Nana -, mas na versão do Quarteto Primo ganha pela polifonia vocal (redundância, creio, justificada pelo objeto analisado). A sobreposição e a justaposição das vozes, aliadas aos contra-cantos em rendado vocálico, segredam a beleza da versão do Quarteto Primo, ampliam as possibilidades do encantamento porque passa o sujeito da canção. Tudo diante "desse fim de som, doida canção" (a vida?) que quando se for - findar - abrirá caminho para o "querer morrer para viver com Iemanjá".
O que ouvimos na versão do Quarteto Primo para "Sargaço mar" é o bordado e seu avesso. O plano da letra e o plano da melodia encontram sentido no arranjo vocal polifônico. O Quarteto Primo toca ali onde o "comum" e o "simples" se transmutam em estrelas na obra de Caymmi: na mescla entre artesania da tradição e releitura da cultura.



***

Sargaço mar
(Dorival Caymmi)

Quando se for esse fim de som
Doida canção
Que não fui eu que fiz
Verde luz; verde cor de arrebentação
Sargaço mar, sargaço ar
Deusa do amor, deusa do mar
Vou me atirar, beber o mar
Alucinado; desesperar
Querer morrer para viver com Iemanjá

Iemanjá, Odoiá, Iemanjá, Odoiá

10 maio 2012

Carta de amor

"Desde que existe como gênero literário, a filosofia recruta seus seguidores escrevendo de modo contagiante sobre o amor e a amizade. Ela não é apenas um discurso sobre o amor à sabedoria, mas também quer impelir outros a esse amor", anota Peter Sloterdijk, logo no início do livro Regras para o parque humano.
Não quero entrar aqui na definição de Filosofia, mas penso que os convites feitos por ela através de "cartas" trocadas entre o filósofo-pensador e seus destinatários não-identificados movimentam e sustentam a própria Filosofia, ou a pulsão filosófica. Os remetentes, assim, colocam suas cartas "a caminho de amigos" à distância: desconhecidos, porém reconhecidos no fato filosófico.
Tais cartas de amor lançam a sedução que convida o amigo desconhecido a ingressar no círculo afetivo. É assim que um ouvinte de canção, um leitor, o indivíduo se sente impelido - ao contato com a canção, a escrita, a obra plástica: onde a pulsão filosófica está em rotação - a assumir, porque afetado pelos agrados e/ou desagrados que a recepção causa, uma intimidade amorosa com o artista.
"Ele fez uma canção bonita / Pra amiga dele / E disse tudo que você pode / Dizer pra uma amiga / Na hora do desespero / Só que não pôde gravar / E era um recado urgente / E ele não conseguiu / Sensibilizar o homem da gravadora / E uma canção dessa / Não se pode mandar por carta / Pois fica faltando a melodia / E ele explicou isso pro homem: / 'Olha, fica faltando a melodia'", diz o sujeito de "Canção bonita", de Luiz Tatit.
Essa canção de Tatit tematiza o caráter de "recado" que muitas canções tem. Aqui o sujeito canta um recado urgente, que só pode ser transmitido através da palavra cantada, pois, "faltando a melodia", sendo apenas escrita, ele não alcançaria o resultado desejado.
Diferente, por exemplo, de "Recado", de Renato Teixeira - "Mandei um recado / Pro meu namorado / Nos classificados / De um grande jornal / Pedindo pra ele / Que um dia apareça" -, que já surge como um comentário ao recado transmitido e em transmissão, posto que encontrou a melodia e se eternizou na voz da cantora Joanna. Noutro plano de interpretação, podíamos até dizer que a canção de Tatit comenta esta canção.
Sendo recados, as canções guardam mensagens. Mas para que a mensagem chegue ao destinatário - nem sempre identificado - em forma de canção é preciso ir além. Segundo o sujeito de "Canção bonita", é preciso melodia. É no modo que a voz diz o recado, nas marcas melódicas da voz, no pulso da garganta de alguém que o recado se torna canção. E pode ser gravado.
Ou seja, nem toda palavra escrita serve à palavra cantada. E vice-versa. A primeira precisa "pedir" a segunda para que a canção surja. É por isso que letra e poesia são e não são a "mesma coisa". Para vir a ser canção, a palavra escrita precisa "ter" um "ritmo vocal", pois é na voz de "alguém cantando" que a canção se realiza. Este ritmo, por sua vez, como Tomachevski anotou em "Sobre o verso" (ler Teoria da literatura: Formalistas russos) pode ser designado como "um sistema fônico organizado com objetivos poéticos, sistema acessível à recepção dos ouvintes" (p. 141), unindo, pela amizade, pelos semelhantes interesses e inquietações diante do mundo, remetente e destinatário, acrescento. Eis a eficácia da canção.
Diferente daquilo que acontece à palavra escrita, na palavra cantada o ritmo engendra e é engendrado pelo verso. Ele se funda sobre os elementos da pronúncia. Como sabemos, tanto na escrita/leitura, quanto no canto/audição O ritmo é elemento importante na produção de sentido. Daí a importância em atentar-se para a articulação da pronúncia, para a melodia da voz.
Tudo isso é para chegar a "Carta de amor" que Maria Bethânia apresenta no disco Oásis de Bethânia (2012). Sobre texto da própria cantora, Paulo Cesar Pinheiro cria uma tensão entre a declamação e o canto. Aliás, gesto amplamente trabalhado por Bethânia ao longo de sua trajetória artística. Por exemplo: tenho testemunhos de algumas pessoas que começaram a ler Fernando Pessoa, depois de ouvir os textos pela voz da médium das sereias.
Em "Carta de amor", o destinatário não é identificado: são todos e é ninguém. Há um estranhamento que surge logo no início da canção: Bethânia cantando em assombroso falsete, impondo um incômodo no seu ouvinte habitual. Sem acompanhamento instrumental, o falsete entoando "Não mexe comigo / Que eu não ando só" assusta e sugere o que virá: um texto que, ao mesmo tempo, soa como uma autoproteção e guarda um esconjuro contra qualquer tentativa alheia de desagradar o sujeito que canta.
O refrão que abre a canção se repete com sutis diferenças - entoativas e sintáticas - tencionando a movimentação dos sentidos de quem ouve e de quem canta. Essas diferenças figurativizam o balançar dos elementos que a canção tematiza. Forjado em terra, fogo, ar, água e espiritualidade, o sujeito nada teme: "Medo não me alcança", diz. Todos os elementos, vários signos e símbolos, entram em rotação a favor da pessoa por trás da voz. Voz vitoriosa porque ungida. E ungida porque tem intimidade profunda com deuses de diversas místicas e mitologias. Há mesmo uma relação de (quase) igualdade entre sujeito e deuses: "Nem o bem, nem o mal, pensam em ti".
E entra em cena a Maria Bethânia leitora de poesia, íntima dos poetas. "O menino-Deus brinca e dorme nos meus sonhos / O poeta me contou", diz fazendo uma clara referência ao "Poema do Menino Jesus", de Alberto Caeiro: "Ele dorme dentro da minha alma / E às vezes acorda de noite / E brinca com os meus sonhos / Vira uns de pernas para o ar, / Põe uns em cima dos outros / E bate palmas sozinho / sorrindo para o meu sono". Poema, aliás, já declamado pela cantora.
Com garganta abençoada por Oxum e andando de mãos dadas com a rainha do mar, o sujeito de "Carta de amor" mescla fala e canto, acelerações e repousos para minar amor e ódio: "O veneno do mal não acha passagem". Oração e esconjuro se imbricam para compor a esfera protetora, o espaço ambíguo onde o sujeito pode "brincar de ser estrela", alheio à maldade.
Creio que os versos "Se choro, quando choro, e minha lágrima cai / É pra regar o capim que alimenta a vida / Chorando eu refaço as nascentes que você secou" contem a pedra filosofal do recado. Tudo é presente e presentificação. O mal passado está sendo - enquanto dura o canto - exorcizado dentro do sujeito. O outro, a quem a carapuça servir, por sua vez, é amaldiçoado com consequências fulminadoras: "Você está tão mirrado que nem o Diabo te ambiciona / Não tem alma / Você é o oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo".
Em "Carta de amor", letra e melodia - seja do canto, seja da declamação - estão em harmonia para a transmissão do recado urgente, emitido por uma fera ferida. Cantada e falada, a carta de amor é convite para que o outro (o destinatário não-identificado) se retire - "e pra onde você for / não leva o meu nome, não".
Ao contrário, porém tematicamente complementar, de "Canção bonita", de Luiz Tatit, citada acima, "Carta de amor" diz tudo o que se pode dizer a um "inimigo" na hora do ódio pelo malfeito. Mas "Carta de amor" não é apenas uma canção desnaturada que quer recolher o outro para sempre à escuridão do ventre, de onde ele não deveria nunca ter saído. É devoção às poéticas da palavra vocalizada: seja no canto, seja na fala.

***

Carta de amor
(Paulo César Pinheiro / Maria Bethânia)

Não mexe comigo
Que eu não ando só
Eu não ando só
Que eu não ando só (não mexe não)
Não mexe comigo
Que eu não ando só
Eu não ando só
Que eu não ando só

Eu tenho Zumbi, Besouro o chefe dos Tupis
Sou Tupinambá. Tenho os erês, caboclo Boiadeiro
Mãos de cura, morubixabas, cocares, arco-íris
Zarabatanas, curare, flechas e altares

A velocidade da luz
O escuro da mata escura
O breu, o silêncio, a espera

Eu tenho Jesus, Maria e josé,
Todos os pajés em minha companhia
O menino-Deus brinca e dorme nos meus sonhos
O poeta me contou

Não mexe comigo
Que eu não ando só
Que eu não ando só
Que eu não ando só (não mexe não)
Não mexe comigo
Que eu não ando só
Que não ando só
Eu não ando só

Não misturo, não me dobro
A rainha do mar anda de mãos dadas comigo
Me ensina o baile das ondas e canta, canta, canta pra mim
É do ouro de Oxum que é feita a armadura guarda o meu corpo
Garante meu sangue, minha garganta
O veneno do mal não acha passagem
Em meu coração, Maria acende sua luz
E me aponta o caminho

Me sumo no vento
Cavalgo no raio de Iansã
Giro o mundo, viro, reviro
Tô no Recôncavo, tô em Fès

Vôo entre as estrelas, brinco de ser uma
Traço o Cruzeiro do Sul com a tocha da fogueira de João menino

Rezo com as Três Marias
Vou além, me recolho no esplendor das nebulosas
Descanso nos vales, montanhas
Durmo na forja de Ogum
Mergulho no calor da lava dos vulcões, corpo vivo de Xangô

Não ando no breu
Nem ando na treva
Não ando no breu
Nem ando na treva
É por onde eu vou, que o santo me leva

Medo não me alcança
No deserto me acho
Faço cobra morder o rabo
Escorpião virar pirilampo

Meus pés recebem bálsamos
Unguento suave das mãos de Maria, irmã de Marta e Lázaro
No oásis de Bethânia

Pensou que eu ando só
Atente ao tempo
Não começa nem termina, é nunca é sempre
É tempo de reparar
Na balança de nobre cobre que o rei equilibra
Fulmina o injusto, deixa nua a justiça

Eu não provo do teu féu
Eu não piso no teu chão
E pra onde você for
Não leva o meu nome, não

Onde vai valente, você secou
Seus olhos insones secaram
Não vêem brotar a relva que cresce livre, verde
Longe da tua cegueira
Seus ouvidos se fecharam a qualquer música, qualquer som

Nem o bem, nem o mal, pensam em ti
Ninguém te escolhe
Você pisa na terra mas não a sente, apenas pisa
Apenas vaga sobre o planeta
E já nem ouve as teclas do teu piano

Você está tão mirrado que nem o Diabo te ambiciona
Não tem alma
Você é o oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo

O que é teu já tá guardado
Não sou eu que vou lhe dar
Não sou eu que vou lhe dar
Não sou eu que vou lhe dar

Eu posso engolir você
Só pra cuspir depois
Minha fome é matéria que você não alcança
Desde o leite do peito de minha mãe
Até o sem fim dos versos, versos, versos...
Que brotam do poeta em toda a poesia
Sob a luz da lua que deita na palma da inspiração de Caymmi

Se choro, quando choro, e minha lágrima cai
É pra regar o capim que alimenta a vida
Chorando eu refaço as nascentes que você secou

Se desejo, o meu desejo faz subir marés de sal e sortilégio
Vivo de cara para o vento, na chuva
E quero me molhar

O terço de Fátima e o cordão de Gandhi cruzam o meu peito
Sou como a haste fina que qualquer brisa verga
Mas nenhuma espada corta

Não mexe comigo
Que eu não ando só
Que eu não ando só
Que eu não ando só (não mexe não)
Não mexe comigo
Que eu não ando só
Eu não ando só
Eu não ando só

Não mexe comigo

03 maio 2012

Xirley

"Glória aos piratas, às mulatas, às sereias", canta o sujeito de "O mestre-sala dos mares", de Aldir Blanc e João Bosco. Inconscientemente, talvez, ele dá vivas a três elementos fundamentais, não apenas à cultura, mas, em especial, ao pensamento sobre a dita brasilidade.
O indivíduo que se forjou aqui, tradutor das diversas culturas transplantadas, migradas e pirateadas para cá, carrega a verve pirata: das marcas e dos produtos copiados e feitos para oferecer a ilusão de acesso aos "originais", aos comportamentos importados. Passando pela noção do errante (navegador) que, apropriando-se e transformando, rasga o bloqueio das metrópoles e suas culturas hegemônicas.
A mulata é a corporalidade da mistura, da mestiçagem, da hibridação. Sua presença indicia uma estética brasileira, um jeito de corpo tipicamente nosso: a torção necessária na narrativa do desenvolvimento - sempre conflituoso - dos contatos entre os povos. O corpo mulato é nosso instrumento de resistência e de sobrevivência.
Aqui as musas e as sereias são híbridas. Elas sabem que o local da cultura está descentralizado: não tem uma raiz, e sim muitas. Ao invés da sereia europeia que atraía para a morte, Iemanjá. No lugar dos longos cabelos dourados e dos olhos azuis, Iara.
E se cada um destes elementos, por si, oferece margem às variadas interpretações do brasileiro, o que diremos de quem reúne em si todos eles? É o que me pergunto quando ouço e vejo a sereia do Norte, a índio-negro-mestiça Gaby Amarantos cantar: "Eu vou samplear, eu vou te roubar". Vestida de saia vermelha e camisa preta: neo-pomba-gira em cirandas voltas.
Onde colocar Treme (2012)? Um disco em que a materialidade da tristeza é redimensionada para fazer a vida valer a pena? Uma materialidade que se confunde com as imagens que as canções trazem: "Eu canto mambo crioulo / Canto dentro do mambo, / Cabelo no grampo, / Saião de rodar". Tal e qual o Manguebeat, o Rap, o Funk carioca, o Tecnobrega (a festa das aparelhagens) é uma cena paralela à mídia tradicional: envolve comportamento, moda, costumes específicos de identidade.
O disco Treme é um daqueles acontecimentos que se assemelham aos lançamentos, entre outros, de Canção do amor demais (1958), Samba esquema novo (1963), Jovem guarda (1965), Tropicália ou Panis et circenses (1968), Fa-tal (1971), Clube da esquina (1972), Secos e molhados (1973), Amazonas (1973), Fruto proibido (1975), África Brasil (1976), Tamba-Tajá (1976), Canto das três raças (1976), Da lama ao caos (1994), Sobrevivendo no inferno (1998), Sujeito homem (2001), À Procura da batida perfeita (2003), Brasileirinho (2004), Calado (2011). Eventos redefinidores do pensar o Brasil pela canção.
Gaby Amarantos cria uma persona - Xirley - para mimetizar a si própria: independente porque da periferia, livre porque lúcida das suas raízes e da urgência de novidade. Ao estetizar sua trajetória, a garota da periferia mexe na geopolítica, causa pane no gosto de quem dá as cartas e as coordenadas da cultura, rompe o eixo sonoro RJ-SP. Como a guerreira em quem se monta na capa do disco. Aliás, a capa de Treme indicia o eletrônico fincado na floresta, desreprimindo a contraparte animal das técnicas e das próteses contemporâneas: aparelhagem e comigo-ninguém-pode, led e costela-de-adão, raio lazer e serpentes.
Um tanto diferente no flagra do gesto corporal, Gaby homenageia a capa do disco Tamba Tajá (1976), de Fafá de Belém. Neste: uma guerreira doce, frágil e amalgamada com a paisagem. Naquele: uma guerreira fera radical de pelúcia. Ambas mestiças, românticas (cheias de esperança nacional) e passionais cantando o tempo e o espaço do povo de um lugar. Ambas, com seus corpos volumosos e vozes poderosas, interferindo na frequencia da sonoridade brasileira, afirmando: isso também é Brasil.

Cada uma com suas histórias e emergências, Gaby herda de Fafá o impulso e o compromisso de cantar sujeitos e temas historicamente esquecidos do mainstream. Sujeitos comuns, que estão na base da brasilidade e, por isso, são renegados. Elas dão vida a lemas do universo cotidiano desses sujeitos. Com o canto como missão, as duas sereias fazem este povo acontecer: imprime a energia do canto de um povo na voz. E eis que surge "Xirley", de Zé Cafofinho, Original DJ Copy, Chiquinho, Marcelo Machado e Hugo Gila.
Xirley é todos e ninguém, qualquer um. Indivíduo comum que ganha destaque, foco, movimenta a arte de sua comunidade. Ela é o Bartleby de Herman Melville. Mas, diferente deste, Xirley reage à pressão de existir dizendo: "preferiria sim". Xirley é uma cantora que prefere cantar com voz marcada pelas duras vivências corporais a sua potência de afirmação. Uma voz que não foi "educada" para cantar "Águas de março". E canta. Faz do clássico um raptupi. Por que não?
E engana-se quem pensa que Gaby (cavalo de Xirley) faz isso folclorizando as deficiências técnicas de sua localidade. Pelo contrário, Gaby chama atenção para sons que, vindos da periferia, com tecnologias próprias, entram nos fluxos de fluidos das possibilidades do fazer canção em tempos de vários modos de mobilidade técnica.
Aqui, a floresta se expande pela produção de tecnologia. Produção engendrada na pressão da pobreza. Gaby assume a urgência da voz da floresta mimetizada à voz da periferia. Comparativamente, Gaby se insere no ambiente dos manos. Rompe a estética da "música brasileira para inglesinho ver, em um som de estar e de festinhas felizes, e de cantoras malemolentes de vozes bonitinhas", turvamente identificada por Tales Ab'Saber no ensaio "A voz de Lula" (revista Serrote, n. 10).
Em Gaby, nada está às mil maravilhas. Sua voz não domesticada e seu corpo exuberante, vindos do centro da tensão entre a "ascensão de massas" e a permanência da miserabilidade em vários aspectos no Brasil, exigem uma mudança de postura do ouvinte, pedem um novo olhar para histórias postas na periferia, dentro do também histórico processo de "limpeza", entenda-se norte-americanização e eurocentrismo da cultura brasileira.
Porém, o mais radical em Gaby Amarantos é que ela não está preocupada com contradições e seus (talvez) datados valores dialéticos. Performatizando aquilo que o Brasil pós-centralizado não alcançou, índia-Iara canibal que é, Gaby engole Beyonce para cuspi-la depois. Devora as vicissitudes contemporâneas e radicaliza, pois nega - no corpo e no canto - o paternalismo interesseiro do mercado de consumo que quer atender à chamada "nova classe média".
Aliás, Gaby Amarantos põe em crise as relações de cordialidade até então fincadas entre essa "nova classe média" e a "velha classe média". Sendo esta a "mesma" voz que um dia disse lutar por democracia e hoje se ressente quando vê domésticas como protagonistas de novela no horário nobre da TV. A mesma voz conservadora que, ao final do clipe da canção, diz: "A pirataria é crime e pecado. Não transgrida a lei de Deus".
Voltando a Treme, como transpor uma festa de aparelhagem para um disco, para um mp3 sem perder a essência do acontecimento? "São toneladas de som / Muita iluminação / Nuvem, red e fumaça / Sacudindo a multidão / Tem telão de led / Onde o povão se vê / É melhor ao vivo / Do que 'eu vi na tv'". A tarefa não é fácil. Mas, entre algumas perdas, a produção de Treme faz o melhor.
Seja como for, ancorados em teorias em que o logos é desvocalizado - autoritário e excludente - e, consequentemente, sem corporalidades, já que a voz é o indício de que alguém de carne e osso existe, o que alguns críticos não conseguem entender quando se deparam com um fenômeno popular como Gaby Amarantos é que não dá para enquadrá-la em pre-conceitos europeizantes de cultura.
Gaby é índice do indivíduo que pensa com o corpo todo, latino-americano, eco das florestas plugadas nas tecnologias criadas para felicitar o povo. Ela caminha sobre o tênue fio que separa o exótico e o óbvio. E o óbvio, como sabemos, só é exótico visto de fora, por quem não o faz.
E aqui cabe lembrar que as aparelhagens - incorporadas até nas comemorações do Círio de Nazaré - chegam ao Pará nos anos 1950, vindas da Jamaica, popularizando o reggae, por exemplo, para com o tempo ganhar o apelo visual apoteótico presente nas festas de hoje. Pensar este processo - da radiola até as imensas caixas de som - requer um novo olhar, com outros instrumentos de análise.
Com a cabine (nave espacial a la Xuxa) do DJ virada para a plateia, Gaby e seu DJ são os mestres de cerimônia da festa de contato com um Brasil nada oculto. Tremer é uma resposta física do corpo às distorções sonoras das festas feitas por músicas de rápido consumo.
Com uma vertente mais melodiosa (Tecnomelody), feita para dançar junto, Treme é um convite para o "ao vivo" de um Brasil que sobrevive à margem e, cantando, geme e ri. Atento e forte às indiferenças dos centros de poder, à ditadura do gosto, à patrulha ideológica, o Brasil cantado por Gaby Amarantos não é ingênuo, como querem os paternalistas e/ou preconceituosos com tudo quem vem da periferia. Aliás, o que é periferia aqui? Este Brasil pensa quando se diverte, e se diverte quando pensa: quer ser lugar. E é - na voz forte e rasgante, que racha o conservadorismo, e no corpo cheio de curvas generosas de Xirley. Digo, de Gaby.

***

Xirley
(Zé Cafofinho / Original DJ Copy / Chiquinho / Marcelo Machado / Hugo Gila)

Saia vermelha, camisa preta
Chegou pra abalar
Quando tu for na casa dela, lhe buscar, ela vai preparar
Café coado na calcinha, só pra te enfeitiçar

E se tu for na aparelhagem
Tu vai ver só o que ela vai aprontar

Eu vou samplear, eu vou te roubar
Eu vou samplear, eu vou te roubar
Eu vou samplear, eu vou te roubar