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30 agosto 2019

Esvoaça


Ao cantar poemas de épocas anteriores os cancionistas não apenas acionam a história da literatura, a origem da poesia (o amálgama entre letra e voz), como também propõem novos modos de ler poesia - não mais apenas com os olhos, mas com a voz e os ouvidos. Além de propor uma revisão do cânone literário. Foi assim quando Caetano Veloso cantou um soneto de Gregório de Matos em 1972; e quando Suzie Franco canta "Esvoaça... esvoaça...", soneto de Ana Cristina Cesar de 1963, no disco Esvoaça (2018).
No texto "Ilusão enunciativa na canção" Luiz Tatit pondera que "ao propor que a letra segmente uma sequência melódica, o compositor deposita em seus versos não apenas uma configuração de conteúdo (um assunto a ser tratado), mas também um modo de dizer entoativo que substitui a abstração musical pela enunciação concreta de um personagem, normalmente associado à imagem do cantor" (2016, p. 128). Essa personagem a quem tenho chamado de sujeito cancional, por só ser e estar presente apenas durante o instante-já da canção, é trabalho do poder persuasivo [sirênico, das sereias] da vocoperformance dos cancionistas.
Quando Suzie Franco canta o poema de Ana Cristina César, dando o título de "Esvoaça" à canção, seguindo a segmentação entoativa dada pelo texto e reativada (recomposta) por Paulo Baiano, responsável por musicar o poema, a cantora age no desejo de definir "as unidades entoativas que 'habitam' o continuum melódico" (TATIT, p. 126), dando-nos a impressão de que os versos pedem aquela entoação.
Ao cantar os versos de Ana C., do modo como canta, Suzie Franco cria para si a imagem de cantora simbolista: atenção às reticências usadas pela poeta e aos alongamentos vocálicos performados pela cantora. Esta imagem atravessa todo o disco, não à toa, chamado Esvoaça. Há um ar lírico, romântico, suspiros poéticos e saudades marcando o roteiro do disco. E nisso a poesia de Ana C. - poeta que soube reler criticamente a tradição, inserindo-se nesta tradição (atenção à métrica do poema ora analisado) - serve à ilusão enunciativa criada pelo sujeito cancional que pergunta "Pra que tanta dor? / Se o amor que vai sumindo / Adelgaça, esvoaça, esvoaça...".
A interpretação passional de Suzie Franco presta homenagem à semelhante performance de Clara Sandroni, que no disco Tempo Algum (2000) prestou tributo à obra de Paulo Baiano. A profissionalização do cantar liga as cantoras Clara e Suzie à tradição de pesquisa e ensino da qual também Ana Cristina César, de algum modo, fez parte: "atuando na área de convivência humana difícil e acanhada que é a literatura, garota até certo ponto comum, aluna aplicada, professora responsável, loucura em fogo brando, mas persistente, escondida pelas lentes enganadoras de uma lucidez que de tão aguda doía, nela e em quem dela se aproximasse", escreve Ítalo Moriconi (ver Perfis do Rio: Ana Cristina Cesar, 1996, p. 9).
Ana, Clara, Zuzie. Estas três mulheres que estudam, aprendem e ensinam aparecem no sujeito cancional criado a partir da sensibilidade de Paulo Baiano, responsável por segmentar a performance vocal do poema, do soneto, ou seja, do texto feito para a voz em fogo brando.
Cantar um poema é dar legitimidade (corpo) à entidade de papel. Paulo Baiano soube aproveitar as redondilhas escritas por Ana C. para compor uma melodia suave, impregnada de um lirismo camerístico, por sua vez reaproveitado por Vicente Ribeiro - produtor e arranjador do disco de Suzie Franco.
Integrante dos grupos Tao do Trio e Vocal Brasileirão, a cantora investe no preciosismo da pronúncia límpida, leve – tencionando o conteúdo popular (o poema rima "amor" e "dor") com arranjos eruditos. E vice-versa. Gesto que mimetiza o próprio trabalho de Ana Cristina César, cuja poesia está contextualmente situada na "independente" década de 1970, marcada pela rejeição tanto à literatura classicizante, quanto aos experimentalismos de vanguarda. Dito de outro modo, Ana C. compõe um soneto com estrutura ABAB / CDED / DFD / FGD. A métrica do texto esvoaça (esfumaça) a forma do soneto clássico que é ativada na voz de Clara, de Suzie.
Guardado no livro Inéditos e dispersos (1985) o soneto foi escrito em maio de 1963, isto é, quando a poeta tinha 11 anos de idade, e dedicado ao pai "bom e viajoso". O título do poema com a palavra dobrada indica um refrão interno, que será utilizado na canção, ao mesmo tempo em que aponta algo abstrato, incapturável, perene e retornável. O texto está impregnado de um amor volátil, anti-romântico, ao mesmo tempo simbólico e imaginário: "não adiantam poemas p'ra lua", diz. Num jogo entre forma e conteúdo, a palavra "fumaça", presente já no segundo verso, se espraia ao longo das quartorze linhas.
Seria o verso de abertura do soneto de Ana C. - "É como a vela que se apaga" - uma referência ao derradeiro verso do soneto "Brinde" - "O alvo desvelo em nossa vela" - de Mallarmé? Especulações à parte, é importante pensar esta permanência das formas fixas e do devir-voz ao longo da historiografia da poesia escrita. "Da amurada deste barco / Quero tanto os seios da sereia", escreveu Ana C. no poema "Nada, esta espuma". A amurada segura que a palavra escrita (barco) promete ser é também espaço do desvio, do desejo de fuga, de retorno à espuma, fumaça que a palavra "amor" cantada representa. "Alucino aquilo que desejo", escreveu Barthes.
Para Roberto Zular, no texto "Sereia de papel (algumas anotações sobre a escrita e a voz em Ana Cristina Cesar)", "seria interessante pensarmos em um jogo que ficcionaliza, além dos atos de escrita, as situações de enunciação (a confissão, a conversa de rua, a televisão). Isso produz uma ecolalia enunciativa tanto de atos de fala quanto de escrita que só é possível deslocando Mallarmé (e o poema) e fazendo da espuma um rumor de falas e desejos, o canto múltiplo das sereias" (ver Sereia de papel - visões de Ana Cristina Cesar, 2015, p. 96).
A canção feita sobre o soneto articula estas falas carregando na paixão, este tempo-espaço entre voz e escrita. Este lugar anterior à palavra seria o contrário do "amor fraco que se apaga". Lugar contraditório que "atenua o amor, / atenua a fumaça": é pura voz que canta por traz da voz que fala no poema escrito; voz ativada na voz das cantoras-sereias.
Para Moriconi, "isso é muito importante para compreender a poética de Ana. Compreender que a poesia de Ana se desengaja da militância ortodoxa para engajar-se numa política de linguagem anti-autoritária. O exercício poético como pesquisa de articulações da linguagem não totalitárias, não totalizadoras, não vendedoras de ilusões - sequer a ilusão do sentido" (p. 50). Para Zular, seria também "a voz que chama, que é pura ordem e à qual só se pode dizer: sim, obedeço. Só se pode sucumbir a ela" (idem, p. 97).


***

Esvoaça
(Paulo Baiano / Ana Cristina Cesar)

   É como a vela que se apaga,
E a fumaça sobe e se atenua.
É o amor fraco que se apaga,
Não adiantam poemas p'ra lua.

Sofre o homem, o amor acaba
E a doce influência esvoaça
Como o fio adelgaçado
De fina e translúcida fumaça

Esvoaça, esvoaça...
Atenua o amor,
Atenua a fumaça.

Pra que tanta dor?
Se o amor que vai sumindo
Adelgaça, esvoaça, esvoaça...



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