No texto “Experiência e pobreza” (1933), Walter
Benjamin questiona “qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural (e da
riqueza sufocante de ideias) quando a experiência já não o vincula a nós?”. É
do lugar dessa barbárie que surge a voz de Lira. Sem crença em redenção
messiânica, essa voz interrompe o curso do mundo mercantil individualista,
solitário e mimado pelo fetiche de inovação.
Desde sempre, essa voz assumiu o papel de mediador
entre a lama e o beat (bit), entre o cantador (rural) e o cantor (urbano),
entre o passado (tradição) e o contemporâneo (tradução). Lira enfrenta com
coragem de verdade o processo de depauperação (empobrecimento) da experiência,
ao fazer emergir de dentro da produção industrial de música, ecos de
sonoridades que resistem ao tempo. Nega-se a pobreza, afirmando a experiência
dessa existência sequestrada da cultura.
A palavra cantada em Lira sempre roçou a entonação
da voz dos cantadores de feiras livres, repentistas, cordelistas. A palavra
cantada em Lira é palavra forjada numa cena que (re)vitalizou uma cultura,
apresentando essa cultura essencialmente oral a uma geração que, essencialmente
video-cêntrica, na certa não atentaria para essa beleza. Mas aqui não há uma “sobrevalorização
do arcaico”, como denunciou Adorno leitor de Benjamin a respeito das
rememorizações na Modernidade. Há, sim, uma devoração do arcaico, em Lira.
A voz de Lira – palavra falada em ritmo de
canto-declamação, nunca um canto educado no gosto do mercado – avança contra o
movimento domesticador dos corpos. A voz de Lira não se adaptou aos
procedimentos autômatos da indústria, apontando para uns brasis que existem e
merecem escuta, com seus sotaques distintivos, seus jeitos de corpos
agregadores. E, o mais importante, o olhar lançado por Lira para esse interior
não é de piedade (pelas perdas), e sim de devoração, de incorporação dessas
experiências em processo de perdas. Vem daí o vigor de suas apresentações ao
vivo: da coragem de enfrentar esse patrimônio silenciado pela cultura escrita,
ora estigmatizadas como inferiores, ora folclorizadas como objeto exótico de
antigo museu. “Nós vamos pela margem da cidade / A linha de montagem desligada
/ Silêncio”, canta.
A carnavalização bakhtiniana que Lira promove nos
extratos sonoros que ele manipula revela sua intenção de apropriação da experiência
como integração do “novo” com a “tradição”: tudo fica suspenso. Isso está
sugerido na letra de “O Mergulho” (Lira): “Andar nos fios que ligam as estrelas
/ Capacidade de mudar as coisas / Ouvir do velho como faz o novo / e cantar”.
Eis a síntese do trabalho que Lira vem desempenhando na canção brasileira.
Nesse sentido, o disco O labirinto e o desmantelo (2015) surge como ápice de um projeto
estético gestado e desenvolvido desde sempre. Equilibrando a potência da poesia
falada com as experimentações melódicas dos instrumentos, Lira reforça sua
verve de declamador vigoroso de paixões. A maioria das letras canta um querer
urgente baseado em memórias coletivas (“Afinal chega o tempo de atacar a paz”)
e privadas (“Agora o plano é te fazer feliz / Correr nos tubos do teu coração”).
Em Lira, a primeira pessoa do singular é, na maioria das vezes, primeira pessoa
do plural. O eu é nós. A lírica de Lira evoca sentimentos comuns, gera
comunidade: “a forma secreta vibra como o mar / em ondas caladas”.
Lira é um ouvidor dessas ondas. E um leitor de
poesia: os versos “Eu moro dentro de um relógio / Na torre no alto / Movendo o
ponteiro das horas” estabelecem diálogo com “Sem ti é como olhar para um
relógio / Só com o ponteiro dos minutos”, do “Monólogo de Orfeu”, de Vinicius
de Moraes. Orfeu e Lira. Lira de Orfeu. Lira como um Orfeu que encanta as
montanhas do Jabitacá.
O artista avança, pesquisa. A contenção no uso do
verbo, o lapidar das palavras é característica que diferencia o Lira de O labirinto e o desmantelo do Lirinha
que pinçou da poesia cerebral de João Cabral de Melo Neto a profusão verbal de “Os
três mal-amados”: “(...) O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato
(...)”.
Por outro lado, é esse amor à palavra que faz Lira
declamar “A fábrica do poema” (outrora musicado por Adriana Calcanhotto), de
Waly Salomão, nos espetáculos da turnê do disco: “Sonho o poema de arquitetura
ideal / Cuja própria nata de cimento / Encaixa palavra por palavra (...) Acordo
/ E o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo”. Em harmonia com essa imagem, Lira
cantará: “Eu sou o homem que te conheceu / e nesse dia mergulhou num sonho (...)
verdade, eu nunca acordei”.
“Eu voltei pra replantar a tua memória”, Lira já
cantou. Tenho cá pra mim a impressão de que Benjamin aqueceria as ideias
ouvindo Lira cantar esses sujeitos líricos repletos de “lembranças desiguais”,
vindas de um recanto íntimo e público: “Faço uma nova lembrança no mesmo lugar”.
As memórias que a voz
de Lira carrega filtram saberes. E “todo filtro é santo”, assim como o canto de
Lira é ritual de imersão num tempo preservado na memória (“cercada de poeira”)
do canto do povo de um lugar: mesmo retirante – transplantado do rural para o
urbano. “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram
todos os narradores”, anotou Benjamin (“O narrador”, 1936). Creio que é isso que
Lira reafirma ao cantar que “quem sabe é pra sempre”.
***
O Mergulho
(Lira)
Eu quero
Eu quero você
Eu sou o homem que te conheceu
e nesse dia mergulhou num sonho
Nadava, passava em você
Paisagem clara que se desmontava
Passagem rara por canais brilhantes
Verdade, eu nunca acordei
Quero soprar teu calor
Agora o plano é te fazer feliz
Correr os tubos do teu coração
Tocar além, cicatrizar o chão
e sonhar
Andar nos fios que ligam as estrelas
Capacidade de mudar as coisas
Ouvir do velho como faz o novo
e cantar
(Lira)
Eu quero
Eu quero você
Eu sou o homem que te conheceu
e nesse dia mergulhou num sonho
Nadava, passava em você
Paisagem clara que se desmontava
Passagem rara por canais brilhantes
Verdade, eu nunca acordei
Quero soprar teu calor
Agora o plano é te fazer feliz
Correr os tubos do teu coração
Tocar além, cicatrizar o chão
e sonhar
Andar nos fios que ligam as estrelas
Capacidade de mudar as coisas
Ouvir do velho como faz o novo
e cantar
Nenhum comentário:
Postar um comentário