Quando perguntado sobre o que seria o tempo, Santo Agostinho
respondia: "Se ninguém me perguntar, eu sei. Se eu quiser explicar a quem
me fizer a pergunta, já não sei". O entrave entre o intuir e o traduzir em
palavras levantado por Santo Agostinho nos sugere o quão difícil é definir o
tempo de modo a dar conta de sua complexidade natural, psicológica, social.
Temos um conhecimento intuitivo do tempo.
Como apontar aquilo que poderia ser o tempo diante da
realidade objetiva (o passar sucessivo dos milésimos de segundos do relógio), a
intuição individual da intervenção do tempo no humano que somos (e vice-versa)
e os acontecimentos específicos do momento histórico em que vivemos? Portanto:
A qual tempo me refiro quando quero falar sobre o tempo?
O certo é que nem todos os tempos (e aqui já aparece o
plural do termo) são dignos de destaque. Voluntária ou involuntariamente,
esquecemos e/ou recalcamos períodos, épocas. Se o passado, que é o único tempo
que existe, ou sabemos existir, porque lá já estivemos, está perdido e o futuro
deve ser (intuição de desejo) o que no passado era apenas uma promessa,
resta-nos lembrar, viver e esperar no presente.
O presente, por sua vez, é um instante tão comprimido que
quando acabo de digitar a palavra "presente" ele já se tornou
passado. O tempo depende da memória individual e coletiva. E nós precisamos
dessa memória para existir no tempo.
Em "A crise da filosofia messiânica" (In: A utopia
antropofágica) Oswald de Andrade anota: "A ciência e a técnica procuram produzir na terra o céu longa e demasiadamente prometido pelo Messianismo" (p. 185). Na modernidade, com sua ousadia (coletivamente engendrada)
de pensar a realização do futuro desejado não mais no campo da religião (pós) e
sim da terra (aqui), mediante a valorização da técnica, tudo passou a contar e
a ser valorizado em termos de produção, gerando a aflição da sensação de
aceleração do tempo, a fim de que o investidor obtenha retorno rápido.
No conhecido texto "O narrador", a partir da
experiência da guerra e do avanço da técnica, Walter Benjamin escreve sobre
esta mudança de perspectiva em relação àquilo que importava e que deixa de
importar: "Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por
cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera
inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes
e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano".
Benjamin aponta para as mudanças bruscas e repentinas nas
referências do indivíduo e mira no capitalismo especulativo da nossa sociedade
de consumo (em que poucos podem consumir). As novidades, nem sempre desejáveis,
destroem as referências do passado, quando não feitas à vida criativa. O novo
pelo novo e a necessidade de ter o "sempre novo" transformam a vida
em uma interminável sucessão de meios cujas finalidades estão perdidas em si.
A aceleração que os meios promovem nos acontecimentos
(fazemos cada vez mais coisas dentro de uma mesma fração de tempo), as tais
técnicas de reprodução criticadas por Benjamin, porque extinguiriam a
"aura" dos objetos feitos agora em série, implode a nossa capacidade
de esperar e, consequentemente, de desejar. No texto "Experiência e
pobreza", Benjamin anota: "Essa pobreza de experiência não é mais
privada, mas de toda a humanidade". Daí as depressões, as melancolias, os
fatalismos.
Sobre este ponto, Maria Rita Kehl escreveu em O cão e o tempo:
"O melancólico benjaminiano vê-se desadaptado, ou excluído, das crenças
que sustentam a vida social de seu tempo; mas ao contrário do empenho
investigativo e criativo que caracteriza seus precursores renascentistas,
sente-se abatido pelo sentimento da inutilidade de suas ações. Daí a relação
entre a melancolia (pré-freudiana) e o fatalismo, sentimento de insignificância
do sujeito como agente de transformações, tanto na vida privada quanto na
política” (p. 100).
As esperanças projetadas no futuro dizem muito do presente,
já que aquele traduz as angústias deste. Assim como o presente é o panteão das
angústias do passado. Deste modo, se "o futuro já começou", onde fica
o presente? Suprimir quaisquer dos tempos causa pane no viver.
Baseadas nas leis constantes da natureza, as técnicas da
física possibilitam prever o tempo, mas não a inconstância do humano no tempo.
É no esquecimento da tradição que reside a desvalorização do futuro e do
presente. Para Benjamin, o progresso promovido pelos meios não engendra, de
fato, progresso algum, posto que não promove a emancipação do homem, nem o fim
das desigualdades.
Voltando ao texto "O narrador", Benjamin escreve
que "a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram
todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que
menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores
anônimos".
Claro está que as perdas do tempo social analisado por
Benjamin diferem radicalmente das perdas do tempo social brasileiro, basta
olhar para a tradição (a relação com o passado) das duas sociologias. Daí
também a perplexidade dos teóricos estrangeiros diante de nossa capacidade em
transformar "lágrima em canção".
Penso em tudo isso quando ouço Gilberto Gil cantar "Não
tenho medo da morte" (Banda larga cordel, 2008). Qual o outro
narrador-cancionista para cantar as angústias e os prazeres diante do tempo que
não para arrastando-nos ao nosso caminho inevitável à morte?
Em diálogo com o sujeito de outra canção de Gilberto Gil, o
sujeito da canção "Não tenho medo da morte" observa que o futuro
enquanto dimensão do tempo é sempre o mesmo: "mistérios sempre há de
pintar por aí". Por um lado, o futuro é a diversidade de possibilidades,
por outro lado, não há como fugir da morte: um presente do futuro - um estranho
presente, pois, "a morte é depois de mim".
O medo que assombra o sujeito da canção é o medo de morrer
antes de acabar o que lhe cabe viver. Morrer dentro da vida: da morte chegar
demasiado cedo. Canta: "A morte já é depois / que eu deixar de respirar /
morrer ainda é aqui (...) Não tenho medo da morte / mas medo de morrer, sim / a
morte e depois de mim / mas quem vai morrer sou eu / o derradeiro ato meu / e
eu terei de estar presente".
Noutro trecho da letra, ouvimos: "A morte já é depois /
já não haverá ninguém / como eu aqui agora / pensando sobre o além / já não
haverá o além / o além já será então". O sujeito percebe que estamos
invariavelmente presos ao presente, mas olhando sempre para o depois. "E
quando eu tiver saído / Para fora do teu círculo / Tempo tempo tempo tempo /
Não serei nem terás sido / Tempo tempo tempo tempo", canta Caetano Veloso,
na sua "Oração ao tempo".
Objetivamente, o aqui e o agora não existem. Como entender o
"Obrigada, senhores, obrigada por estarem aqui, hoje", que Maria
Bethânia me diz através do disco, senão pela minha disposição ao pacto com o
eterno presente das canções que, mesmo mediatizadas, conectam-se à minha
memória: lembranças e esperanças. Para que o sujeito cancional surja o tempo de
sua existência precisa coincidir com o tempo do ouvinte.
O tempo da "fala presente" do sujeito
cancional é o futuro do pretérito: poderia ser, tinha tudo para ser, mas não
será, mesmo estando preservado(?) da ação do tempo pela técnica. No ouvinte, no
entanto, fica a intuição de que aquilo é e pode ser. Eis o tempo complexo das
canções que a canção de Gilberto Gil, ao tematizar a morte, revela.
O tempo exige novos posicionamentos frente ao eterno retorno
não do mesmo, mas do diferente. "Não me iludo / Tudo permanecerá / Do
jeito que tem sido / Transcorrendo / Transformando", canta Gil noutra
canção sua. No modo como Gilberto canta a mensagem de "Não tenho medo da
morte" reside a eficácia da canção: calmo, sereno, em ato de espera, de
desaceleração - performance de um cancionista que "se quiser falar com
Deus" sabe que precisa "calar a voz e encontrar a paz".
A espera é a vontade que se encaminha para o exterior. Não
para o futuro, mas para a exterioridade do presente em sua expectativa modelar
do acontecimento esperado. "A morte já é depois / que eu deixar de
respirar / morrer ainda é aqui / na vida, no sol, no ar / ainda pode haver dor
/ ou vontade de mijar", canta Gil: cancionista compositor de destinos.
***
Não tenho medo da morte
(Gilberto Gil)
não tenho medo da morte
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar
a morte já é depois
já não haverá ninguém
como eu aqui agora
pensando sobre o além
já não haverá o além
o além já será então
não terei pé nem cabeça
nem fígado, nem pulmão
como poderei ter medo
se não terei coração?
não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte é depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou
então nesse instante sim
sofrerei quem sabe um choque
um piripaque, ou um baque
um calafrio ou um toque
coisas naturais da vida
como comer, caminhar
morrer de morte matada
morrer de morte morrida
quem sabe eu sinta saudade
como em qualquer despedida