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15 novembro 2012

Lanterna dos afogados



"A luz da 'Lanterna dos Afogados' brilha como um convite. Antônio Balduíno deixa o cais, levanta-se da areia que o acaricia e se dirige em grandes passadas para o botequim. A lâmpada de poucas velas mal ilumina a tabuleta que traz o desenho de uma mulher bonita com corpo de peixe e uns seios duros. Por cima uma estrela pintada com tinta vermelha, derrama sobre o corpo virgem da sereia uma luz clara que a torna misteriosa e difusa. Ela retira da água uma suicida. E por baixo o nome: 'LANTERNA DOS AFOGADOS'" (Jubiabá, Jorge Amado. p. 128).
No Brasil, distanciadas da mitologia grega, reforçada pela ideologia judaico-cristã, que transferiu à mulher apenas a monstruosidade calcada na figura da sereia, as sereias, porque ligadas à imagem de Iemanjá, que, por sua vez, sicretizou com Maria (cristã), guardam os mitemas da doçura, da possibilidade do desvio ao real duro, do colo, do mimo.
"Ateu e viu milagres", admirador e difusor das sabedorias africanas, fazendo de algumas de suas obras um território da complexificação do sincretismo religioso brasileiro, Jorge Amado empresta à sereia desenhada ("mulher bonita com corpo de peixe e uns seios duros") o enigma de ser aquela que salva o afogado. Obviamente, apenas pelo trecho citado, não podemos saber se a sereia guiará o afogado de volta à vida na terra, ou o arrastará para a vida no mar.


Seja como for, a sereia mimetiza o nome do lugar. Ela é a lanterna dos afogados, dentro de uma cultura - a dos pescadores - em que o homem se vê constantemente dividido entre o bem de terra e o bem de mar. Também, noutra perspectiva, ela é o botequim, a bebida que alivia e ajuda o homem a se desligar das dores da luta diária: a bebida como promotora de uma vida (mais real). E daí o afogar as mágoas nos braços da sereia.
Ela é o destino mais que perfeito para quem viveu do/no mar. Com seu canto impregnado de maresia e convites à libertação da dor, a sereia salva, mais do que mata, como comumente se prega. Ela é a "luz no túnel", o "cais de porto" "quando chega a noite / E você pode chorar", como canta o sujeito da canção "Lanterna dos afogados", de Herbert Vianna.
A conhecida canção ganha tons insondáveis quando o compositor a interpreta com Gal Costa (Gal Costa Acústico , 1997). A voz de Herbert entoa a primeira estrofe da canção até o refrão, quando diz: "Eu tô na Lanterna dos Afogados / Eu tô te esperando / Vê se não vai demorar". Só aí entra, sem demora, a voz de Gal como a sereia que responde (ajuda) ao apelo do sujeito da canção: "Uma noite longa / Pra uma vida curta / Mas já não me importa / Basta poder te ajudar". A lanterna dos afogados é também, agora, a voz (garganta acesa) da sereia-Gal.
Depois disso, depois de devidamente em sintonia com a tal Lanterna dos Afogados (o botequim, o espaço cancional criado pelas vozes e pelos instrumentos), os dois, as duas vozes se mesclam no canto dos versos indicando o cais em que cada um se transformou para o outro. É por isso que, sem dúvidas, esta versão de "Lanterna dos afogados" guarda um dos mais belos encontros entre forma e conteúdo. Ambos pertencem e são a Lanterna dos Afogados.
Ele canta já da Lanterna, evoca a musa, canta para que a sereia venha e salve a noite, a vida. Ela chega, e ao cantar, mais tarde, os mesmos versos que ele cantou, se conecta a ele. Ambos afogados e salvos um no outro, no canto, na voz do outro, parceiro na noite escura. Tal e qual a personagem de Jorge Amado que ouve a toada triste que vem do mar. "O Gordo está atento à canção dos marinheiros: - É bonito. - E você entende? - Não, mas me bole cá dentro..." (p. 129).
É isso, um bulir por dentro o que acontece com o sujeito cantado de "Lanterna dos afogados". E isso só é possível nesta versão em dueto, já que na versão com apenas uma voz não há o cais, compartilhamento, resposta à vida curta, mas apenas a angústia da ausência e do afogamento. Como na bonita e visceral versão de Cássia Eller (1994).
"E são tantas marcas / Que já fazem parte / Do que sou agora / Mas ainda sei me virar". Se o naufrágio já aconteceu, ou vai ou não acontecer, pouco importa. O sujeito será sempre a fratura entre o bem de terra - "lindas sirenas / morenas" - e o bem de mar - "uma mulher bonita com corpo de peixe e uns seios duros (...) o corpo virgem da sereia [envolta] em luz clara que a torna misteriosa e difusa". O sujeito da canção estará sempre à deriva.

***

 Lanterna dos afogados
(Herbert Vianna)

Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar
Há uma luz no túnel
Dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar

Eu tô na Lanterna dos Afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar

Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar
E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que sou agora
Mas ainda sei me virar

Eu tô na Lanterna dos Afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar

25 outubro 2012

No mundo do lua

Porque a performance vocal trabalha com a energia dos mitos, sonhos e paixões do cantor e do ouvinte, quando Gilberto Gil interpreta "No mundo da lua" (para a trilha sonora do filme Gonzaga – de pai pra filho, 2012), o compositor conecta-se ao Lua, vira o mundo deste de pernas para o ar, lançando-se também no ar como presentificação material daquilo que o outro (homenageado) é.
É na performance vocal de quem canta o canto de Luiz Gonzaga que as canções – imateriais – do rei do baião (sobre)vivem a engendrar vida nos signos da seca, do Nordeste, do Brasil. Na letra da canção, o canto tanto faz referência às canções e ao modo de cantar de Luiz Gonzaga, quanto ao canto-lugar: "E o povo canta o canto que eu cantei / Não importa o certo e o errado, o bem e o mal", diz o sujeito da canção.
Gilberto Gil, que a partir do contato com a Banda de Pífanos de Caruaru se encheu de novas perspectivas para pensar junto com Caetano Veloso a Tropicália como um projeto estético brasileiro, rompe a separação entre sua persona e a persona de Gonzaga através da canção, do canto do povo de um lugar.
Cavalo de Gonzaga, Gilberto Gil é Gonzaga presentificado, ambos feitos de canção. E o que era para ser uma homenagem transmuta-se em contato e revelação. Pela voz por vezes embargada de Gil no programa de TV, Gonzaga se comunica de novo com seu povo. Gonzaga-sujeito-cancional reconhece no milagre divino o poder de cantar a felicidade da existência. E renega tudo que não for motor de canção: "Se o milagre acontecesse de eu voltar / Sem poder sair cantando por aí / Juro que eu pedia a Deus pra me polpar / De um milagre assim tão besta, tão chinfrim", canta via Gil.
E, assim, a primeira pessoa (Luiz) soa como eu (Gil) sou, a segunda pessoa (Gil) soa como tu (povo que canta o canto que Luiz cantou) és e a terceira pessoa (o mesmo povo) soa como ele (Luiz) também. Em um ciclo infinito de filigranas que se conectam e se plasmam umas às outras constituindo a esperança de um dia não ser mais triste não.
Se por um lado Vinícius de Moraes cantou que "o samba é a tristeza que balança / e a tristeza tem sempre uma esperança / (...) / de um dia não ser mais triste não", e por outro lado o grupo Falamansa cantou que "toda mágoa que passei / é motivo pra comemorar / pois se não sofresse assim / não tinha razões pra cantar", o canto de Luiz mostrou que também o baião, outra forte e potente matriz sonora identitária do Brasil, afirma que "o meu cantar é um soluço / a galopar no maçapê".
Tal e qual Jackson do Pandeiro que dizia "eu quero ver a confusão / olha aí o samba-rock meu irmão", Gonzaga soube mirar, estilhaçar e condensar as sonoridades de sua região a um nível de significação e entendimento universais. Mostrou de onde vem o baião: "Vêm debaixo do barro do chão". De onde "suspira uma sustança sustentada por um sopro divino".
"O termo 'baião', sinônimo de rojão, já existia, designando na linguagem dos repentistas nordestinos, o pequeno trecho musical tocado pela viola, que permite ao violeiro testar a afirmação do instrumento e esperar a inspiração, assim como introduz o verso do cantador ou pontua o final de cada estrofe. No repente ou no desafio, cuja forma de cantar é recitativa e monocórdia, o 'baião' é a única sequência rítmica e melódica. O grande estalo de Luiz Gonzaga foi de perceber a riqueza desse trechinho musical, de sentir que ele carregava em si a alma nordestina, e todas as influências que marcaram a música do Nordeste", anota Dominique Dreyfus no livro Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga.
E é este sopro milagreiro que faz Gilberto Gil cantar "No mundo da lua". Posto que é de lá, das noites do sertão, que vem os elementos constituintes da canção (letra, música e voz), Gilberto Gil ao cantar é Luiz, assim como o povo ao cantar as canções gravadas é Gonzaga xaxando para xaxar, cantando para cantar: de novo. "Só faz milagres quem crê que faz milagres / como transformar lágrima em canção", diria Zeca Baleiro.
"Saudade o meu remédio é cantar", parece ser o mote de Gilberto Gil e do povo que mantem acesa a fé na festa disseminada por Gonzaga. E assim a tristeza balança, a vida se enche de graça, mesmo sem sentidos aparentes para tanta miséria e dor. Lágrima em canção: "Tudo em volta é só beleza / céu de abril e a mata em flor". E o milagre acontece: Gonzaga está. E junto com tudo o que o seu canto e suas canções mimetizam.
Fustigados pela seca e pelo eterno vento, o sujeito cancional criado na voz de Gil se une ao sujeito da canção que Gonzaga pseudo-psicofonicamente recita. "Que vocês ainda possam me escutar / Através das minhas velhas gravações / É sinal que o mundo vai continuar / A viver de mitos, sonhos e paixões". Os versos cantados por Lua indicam que pela materialidade dos arquivos sonoros gravados é permitido ao cantor viver eternamente. Além do bem e do mal. "A canção do povo alegre não tem fim", diz Gil.


***

No mundo do lua
(Gilberto Gil)

Se o milagre acontecesse de eu voltar
E o meu vulto aparecesse no sertão
E o povo me pedisse pra cantar
E na hora me faltasse o vozeirão

Se o milagre acontecesse de eu voltar
Sem poder sair cantando por aí
Juro que eu pedia a Deus pra me polpar
De um milagre assim tão besta, tão chinfrim

Afinal de contas se ainda sou rei
É que aí na terra tudo é tão real
E o povo canta o canto que eu cantei
Não importa o certo e o errado, o bem e o mal

Que vocês ainda possam me escutar
Através das minhas velhas gravações
É sinal que o mundo vai continuar
A viver de mitos, sonhos e paixões



18 outubro 2012

Tia Nastácia



No momento em que se discute se o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, deve ou não ser recolhido "à escuridão do ventre de onde (para alguns) não deveria nunca ter saído", Adriana Partimpim ressurge cantando "Tia Nastácia" no seu disco Tlês (2012).
A canção é uma adaptação que Dorival Caymmi fez de outra canção também sua "História pro sinhozinho". Se nesta tínhamos uma certa Sinhá Zefa, naquela, feita para integrar a trilha sonora do seriado Sítio do Picapau amarelo (1977), temos a presença de Sinhá Nastácia.
Do mesmo modo que fez ao tematizar a morte ("Saiba", no disco Adriana Partimpim - 2004) e o amor entre Alexandre e Hefestião ("Alexandre", Dois - 2009), em atitude que parece pouco comum a uma criança, mesmo em tempos de internet, Partimpim não dá respostas, ao contrário, complexifica a questão, posto que ao cantar "Tia Nastácia" insinua reconhecer a força da personagem na história da literatura e da formação da cultura brasileira.
A pergunta é: negar a existência do racismo, ocultar ele dos olhos das crianças – pares de Partimpim – promoverá sua extinção, ou simplesmente servirá apenas como mais uma máscara à hipocrisia? Partimpim parece dizer "não" ao não, à proibição dos livros. Afinal, precisamos manter os olhos cheios de esperança por uma educação livre, laica e plural. É preciso discutir todos os temas.
Sim, ao que tudo indica Lobato disse sentir inveja dos norte-americanos geradores da Ku Klux Klan. No entanto, o simples gesto de taxar o autor de racista não resolve a segregação disseminada, além de ser uma redução precária da obra total, densa e ampla do autor. É como dizer hoje, algo anacronicamente, que Gregório de Matos era racista, pela forma como "tratava" as mulheres negras em sua poesia, lá nos idos seiscentos. Ou que Machado de Assis era racista por, aparentemente, não tratar do tema da escravidão. Texto é contexto, aprendemos isso desde cedo.
E como não chamar para a conversa a canção "Sinhá", de Chico Buarque e João Bosco, cujos versos "(...) Por que talhar meu corpo / Eu não olhei Sinhá / Para que que vosmincê / Meus olhos vai furar / Eu choro em iorubá / Mas oro por Jesus / Para que que vassuncê / Me tira a luz (...)", por exemplo, em que uma escrava roga clemência, argumentando-se já europeizada, tematizam a formação complexa do povo brasileiro?
Assim como as demais formas de preconceito e discriminação, e se Aqui ninguém é branco, como tão lucidamente defende a professora Liv Sovik em seu livro, o racismo – crime inafiançável – precisa ser reconhecido e debatido. "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. (...) É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte", anotou Joaquim Nabuco.
Na canção de Caymmi Sinhá Nastácia é celebrada como aquela que nina: entoa a canção necessária à construção da imaginação do sinhozinho. Contraponto de Dona Benta (de formação europeia), Nastácia – “negra, de beiços grandes, assustada e medrosa, cozinheira de mão cheia” – enche o Sítio do Picapau Amarelo com as narrativas do folclore brasileiro.
É por este viés que podemos dizer que a canção "Tia Nastácia" trabalha com a polifonia: há uma primeira voz que narra a cena da "hora em que o sol se esconde / E o sono chega / [e] O sinhozinho vai procurar / A velha de colo quente / Que canta quadras e conta histórias"; uma segunda voz que se desdobra em duas: a voz do sinhozinho pedindo canção e a voz do narrador da canção apresentando Sinhá Nastácia – "que conta história / sabe agradar / que quando nina / Acaba por cochilar / [e] vai murmurando / estórias para ninar"; e uma terceira voz que é a voz da própria Sinhá Nastácia cantando as tais estórias cheias de memória e musicalidade de um povo: "Pêxe é esse meu filho / Não meu pai / Pêxe é esse mutu, manganem / É a toca do mato guenem, guenem / Suê filhoê  / Tocaê marimbaê".
Fica claro e cabe lembrar que a polifonia é a coexistência e a interação de várias vozes em um mesmo plano narrativo. A polifonia complexifica a estrutura, como podemos perceber na canção de Caymmi, com a mescla dos registros conversacionais exigindo do ouvinte a atenção para a troca e a interação entre os turnos. Além disso, não há uma narrativa encadeada, favorecendo a mistura e a justaposição de informações diferentes. O que, por sua vez, dificulta e amplia a definição da categoria do “autor” daquilo que é dito. E como não pensar neste artifício estético como um instrumento poderoso de análise da cultura brasileira?
Em "Tia Nastácia" a voz do narrador convive com a voz da velha de colo quente e, penso, com a voz do sinhozinho embevecido. Repito de outro modo: a canção desloca a personagem de seu contexto pretensamente preconceituoso e discriminatório e a posiciona no lugar exato de quem fornece canção à vida de alguém. Lugar que, de fato, segundo muitos pesquisadores, foi/é ocupado pelas escravas e ex-escravas: substitutas legítimas das mães biológicas, estando estas mais preocupadas com outras posições na sociedade.
Sinhá Nastácia aparece na maior parte da obra de Lobato como a reprodução da Mammy norte-americana – matrona, geralmente solteira e dócil feita para cuidar da cria dos brancos. Na canção, por sua vez, percebo uma quebra na relação de superioridade que vai do sinhozinho à ex-escrava: aqui a subordinação é amolecida. O uso do "sinhá", redução carinhosa e brasileira para "senhora", é índice disso.
Nastácia é a mantenedora da vida, da canção. Importa lembrar que das mãos de Tia Nastácia nasceu Emília: a boneca-gente, esperta e atrevida – mímeses (pré-representação) da Partimpim da capa do disco Tlês? Por falar nela, a postura da mão da Partimpim-boneca tanto remete ao 3 (tlês), quanto ao gesto de “ok”: tudo certo. Mas também é índice do “gesto do conhecimento” na posição de lótus para meditação. O que poderia explicar o clima mais cool (para dentro) de Tlês, um tanto diferente dos discos anteriores.
Talvez por investir demais na “voz” do sinhozinho e no acalanto contido na letra, a versão de “Tia Nastácia” de Partimpim não tem o pulso vibrante da versão de Mariene de Castro (Tabaroinha, 2012), que lindamente impregnou a canção de extratos sonoros e gestualidades vocais que iluminam a canção por dentro, investindo no axé (energia, poder, força) da “voz” de Nastácia. Partimpim se aproxima mais da versão de 1977 do próprio Caymmi e da que Maria Bethânia fez para o disco Pirata (2006), onde canta “História pro Sinhozinho”, versão original da canção, com a presença de Sinhá Zefa, ao invés de Sinhá Nastácia.
"Tia Nastácia" na voz de Partimpim "É Gilberto Freyre em sua glória", dirá Adriana Calcanhotto, cavalo de Partimpim. Seja como for, o racismo na obra de Lobato não pode ser motivo para a proibição de livros. Mas, em atitude superiormente interessante, deve servir de mote para debates entre pais e filhos, educadores e alunos, sociedade e indivíduos. É isso que Partimpim me diz quando a ouço cantar "Tia Nastácia". Isso sim auxiliará positivamente na formação das crianças: pares de Partimpim – a criança que ainda não domina erres e eles, daí o tlês título do disco, mas já sabe o quanto de ensinamento, amor e alegria as histórias da Sinhá Nastácia podem trazer.

***

Tia Nastácia
(Dorival Caymmi)

Na hora em que o sol se esconde
E o sono chega
O sinhozinho vai procurar
Hum hum hum
A velha de colo quente
Que canta quadras
Que conta história para ninar
Hum hum hum

Sinhá Nastácia que conta estória
Sinhá Nastácia sabe agradar
Sinhá Nastácia que quando nina
Acaba por cochilar
Sinhá Nastácia vai murmurando
Estórias para ninar

Pêxe é esse meu filho
Não meu pai
Pêxe é esse mutu, manguenem
É a toca do mato guenem, guenem
Suê filhoê tocaê marimbaê

27 setembro 2012

Sangue, água e sal



Cantar uma canção implica em performatiza-la - torna-la concreta pela gestualidade vocal – e mima-la, em um ato metacancional, injetar vida (calor) na canção. Cantar uma canção é tencionar e misturar matéria e espírito, sendo este um produto do cérebro (da consciência) e do coração (dos riscos).
Em sua investigação sobre "'canção ruim', voltada para a satisfação de exigências, que por definição são banais, epidérmicas, imediatas, transitórias e vulgares" (p. 295-296), Umberto Eco, em "Canção de consumo" (ver Apocalípticos e integrados), sugere que é preciso ter cuidado na análise das questões relacionadas à crise do sujeito versus as novas tecnologias, para que não caiamos nem no elogio vazio da técnica, nem no preconceito ou na nostalgia vã.
É preciso pensar a complexidade do problema que distingue cultura de entretenimento e cultura como alimento do espírito, pois é na formação cumulativa das experiências - entre o entreter e o pensar – que o indivíduo integral se rascunha, vive e atua.
Se a cultura como alimento do espírito nos sugere a emancipação do indivíduo, não podemos esquecer que a técnica (as modernas possibilidades de gravação e reprodução de uma canção, por exemplo) é um produto (fruto) da marcha do humano. Para o bem e para o mal.
Se hoje, com a dificuldade que desenvolvemos sobre a duração na capacidade de atenção, já que há inúmeros apelos e intensidades exigindo nosso olhar e nosso ouvido – podemos mudar de faixa musical em um toque –, o cérebro pulsa em inúmeras frequências, parece que estamos diante do fato de que as nossas competências cognitivas apontam para a afirmação nietzschiana de Paul Valéry: "O mais profundo é a pele".
E é também Valéry quem anota: "– Adeus, fantasmas (Leonardo, Leibniz, Kant, Hegel, Marx)! O mundo já não precisa de vocês. Nem de mim. O mundo, que batiza com o nome de progresso sua tendência a uma precisão fatal, procura unir aos benefícios da vida as vantagens da morte".
Por sua vez, Umberto Eco escreve: "O drama de uma cultura de massa é que o modelo do momento de descanso se torna norma, faz-se o sucedâneo de todas as outras experiencias intelectuais, e portanto o entorpecimento da individualidade, a negação do  problema, a redução ao conformismo dos comportamentos, o êxtase passivo requerido por uma pedagogia paternalista que tende a criar sujeitos adaptados". (idem, p. 303).
Mas, como afirmar com Umberto Eco que "a música de consumo é um produto industrial que não mira a intenção de arte, e sim à satisfação das demandas do mercado" (idem, p. 296) perante a audição de Alice Caymmi cantando "Sangue, água e sal", de Alice Caymmi e Paulo César Pinheiro (Alice Caymmi, 2012)?
Ao que tudo indica, haveria uma hierarquia dentro da cultura do entretenimento, em que uma canção seria mais ou menos arte, numa escala hipotética e infrutífera diante da competência humana e individual de ressemantizar os objetos vindos da estrutura comercial da sociedade de massas.
Mesmo mediatizada e a mercê do sistema econômico, a canção popular não se furta das marcas e cicatrizes da tradição, do tempo, da história e da garganta de quem lhe deu vida. Guardada em um arquivo eletrônico, ela aponta que as tecnologias transformam o homem (ingênuo e complexo), porque vindas deste.
Em "Sangue, água e sal", a voz de Alice Caymmi e o acompanhamento melódico derivado da mítica sirênica se unem para figurativizar a imagem que estampa a capa do disco: uma neo-sereia surrada pelo tempo, multiplicada em outras pela breve história do sujeito e ressacada por temer Yemanjá.
A rainha do mar aparece aqui como fantasmagoria da fusão amor-morte, da vida que só existe no risco de morrer, se afogar, desaparecer: "Mergulhar no mar, não saber voltar / se deixar levar pela maré". O sujeito cancional que surge na interpretação de Alice rompe a dor com efeitos eletrônicos, ciranda a ilha com técnica e quer morrer para viver com Yemanjá - a grande sereia, mãe da sereia Alice.
"Sangue, água e sal" trai e não trai a "lógica das fórmulas" identificadas por Eco nas canções de consumo. Sim, há um tempo que se adéqua ao tempo breve das canções de consumo. Mas o modo e o cuidado identificado pelo ouvinte na execução eternizadora (porque fixa, gravada) da canção desperta um "expandir para dentro", um viver em si, uma quietude desestabilizadora que promove o pensamento, a concentração. A artesania (a singularidade) está na voz de quem canta, é isso que alguns teóricos do elogio à escrita não percebem.
Ou seja, não só de escrita e leitura vivem as experiências do indivíduo. Ele não sai sem marcas. E este processo é individual e singular, mexe com fissuras e crivos únicos. Por isso o erro das generalizações quando o assunto é arte, conhecimento e construção do eu. 

***

Sangue, água e sal
(Alice Caymmi / Paulo César Pinheiro)

À luz do luar
flores de Yemanjá
cobrem o altar do meu amor

Sangue, água e sal
o amor não tem dó
de quem não tem medo de amar

Pode se afogar, desaparecer
quem nunca temeu Yemanjá
Mergulhar no mar, não saber voltar
se deixar levar pela maré