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25 agosto 2011

Nu com a minha música

O sujeito de "Nu com minha música", de Caetano Veloso, pensa em "ficar quieto um pouquinho / lá no meio do som". Ele quer restituir uma bolha sonora protetora e paradisíaca onde ele possa ser e estar no mundo.
Semelhante ao sujeito de "Se eu quiser falar com Deus", de Gilberto Gil, o sujeito criado por Caetano engendra um ato ritualístico - "salamaleikum, carinho, bênção, axé, shalom" - para o contato com a sua música (interna) individual e intransferível. Deste lugar - "que vai de tom a tom" - o sujeito vislumbra o bem e a esperança, apesar da dor.
"Nu com a minha música" - com seus versos "Nu com meu violão, madrugada / Nesse quarto de hotel / Logo mais sai o ônibus pela estrada, embaixo do céu" - recupera outra canção de Caetano: "Noite de hotel". Em ambas há o tema da solidão do cancionista: os bastidores das angústias que antecedem e dão motor as canções - "As vezes é solitário viver", diz o sujeito, para depois concluir: "Eu que existindo tudo comigo, depende só de mim / Vaca, manacá, nuvem, saudade / Cana, café, capim / Coragem grande é poder dizer sim".
Como Cláudia Fares anota no livro O arco da conversa: "O importante é observar o que o poeta faz das evocações ["vaca, manacá..."] que lhe fazem companhia e que só dele dependem". Tais evocações estreitam o estado de pertencimento ao lugar (estranho) onde o sujeito está. Ainda para a autora: "Percorrer o 'sem fim' em total ignorância torna-se o destino do saudoso-solitário" que equilibra a dificuldade da artesania poética com a necessidade de expressão cancional.
Tudo precisa ser emoldurado por uma passionalização melódica tocante e por uma dicção enfadada e triste (timbres baixos) comoventes. Como está registrado tanto na versão do próprio Caetano Veloso (1981), quanto na versão gravada por Marisa Monte, Rodrigo Amarante e Devendra Banhart, para o disco Red hot + Rio 2 (2011).
No entanto, é justamente por enfatizar na solidão que, mesmo gostando muito das interpretações, encontro um equívoco na gravação coletiva de "Nu com a minha música" feita por Marisa Monte, Rodrigo Amarante e Devendra Banhart. Salvo engano, não há aqui aquela solidão povoada (por outros sujeitos: duplos e invisíveis), que Monique Le Moing identifica na obra de Pedro Nava, por exemplo.
Ou seja, na canção não há espaço para a permuta de vozes, mesmo que seja com outros cancionistas (pares do sujeito da canção) na tradução de uma dor que é intransferível. Ou não? Parafraseando Octávio Paz, via tradução de Haroldo de Campos, podemos dizer "Me canta o que eu canto". Dividir tal acontecimento - compartilhar os vocais - é romper isso: seria a explosão da ilha sonora que o sujeito montou para si. E, portanto, ele não estaria mais sozinho como tenta expor.
O sujeito de "Nu com a minha música" é um cancionista em seu momento mágico de mergulho para dentro do espaço íntimo, daí a compressão de referências ("vaca, manacá..."), de onde sairá a canção ora executada, cantada. Ele combina e alterna irregularidade verbal, melódica e vocal com progressão homogênea a fim de figurativizar o seu estado interno.
Sempre partindo, em turnê, entre um show e outro, cantor que é, o sujeito da canção sente o peso de estar sozinho. Como anotou Octavio Paz, em O labirinto da solidão e Post-scriptum: "A dureza e a hostilidade do ambiente - e esta ameaça, oculta e indefinível, que sempre flutua no ar - obrigam a que nos fechemos para o exterior".
"Perceber é conceber" e é deste modo que a única saída possível é a canção, a arte: de onde o sujeito pode se inclinar para o lado do sim à vida - "Sempre só e a vida vai seguindo assim".

***
Nu com a minha música
(Caetano Veloso)

Penso em ficar quieto um pouquinho
Lá no meio do som
Peço salamaleikum, carinho, bênção, axé, shalom
Passo devagarinho o caminho
Que vai de tom a tom
Posso ficar pensando no que é bom

Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor
Vertigem visionária que não carece de seguidor
Nu com a minha música, afora isso somente amor
Vislumbro certas coisas de onde estou

Nu com meu violão, madrugada
Nesse quarto de hotel
Logo mais sai o ônibus pela estrada, embaixo do céu
O estado de São Paulo é bonito
Penso em você e eu
Cheio dessa esperança que Deus deu

Quando eu cantar pra turba de Araçatuba, verei você
Já em Barretos eu só via os operários do ABC
Quando chegar em Americana, não sei o que vai ser
Ás vezes é solitário viver

Deixo fluir tranquilo
Naquilo tudo que não tem fim
Eu que existindo tudo comigo, depende só de mim
Vaca, manacá, nuvem, saudade
Cana, café, capim
Coragem grande é poder dizer sim

18 agosto 2011

Chuva ácida

Ao investigar como "a moderna canção popular criada para atender ao gosto da gente urbana é geralmente contemporânea da extensão dos temas de amor às camadas baixas das cidades", José Ramos Tinhorão, em As origens da canção popular, anota que, em sua gênese, a canção de amor optou por adotar apenas o que "de lírico aparecia nas narrativas cavaleirescas".
Segundo o autor, "ia ser exatamente desses versos épico-líricos saídos das antigas gestas, que iam surgir sob a designação agora simples e curta de romances, as breves narrativas sentimentais logo aproveitadas para glosas (...) como canção de amor".
"Canções de amor / servem pra chorar as mágoas / e esquecer a dor", diz o sujeito da canção "Chuva ácida", de Erasmo Carlos e Nelson Motta, diante do instante exato da separação, do "fim do fim" de uma relação que "foi tão longe / foi tão fundo".
Guardada no disco Rock'n'roll (2009), "Chuva ácida" é metacanção que se desdobra para dentro: é o resultado, a tradução daquilo que foi uma relação erótico-amorosa. Se o amor se vai, fica a canção, como prova de que ali - no tempo/espaço ficcional da canção - existiram dois seres que se amaram enquanto o amor durou.
A canção documenta o que não pode ser esquecido. "Se o amor se vai / quanta nostalgia / na canção que um dia / só nos fez sonhar", diria o sujeito de "Se o amor se vai (Si el amor se va)", de Roberto Livi e Bebu Silvetti, na versão de Roberto Carlos e Carlos Colla.
Ao construir a canção o sujeito de "Chuva ácida" retoma a própria individualidade: não sabemos o que o outro (ouvinte/destinatário) pensa e sente diante da canção. Juntando elementos do que foi e do que poderia ter sido a vida em comum, o sujeito glosa a história dos dois. Agora, porém, sem afetações lírico-sentimentais.
O lance agora é hard: "Pra te esquecer / eu faço uma canção de amor / que vai tocar pra sempre / dentro do seu coração", diz o sujeito que, ao eternizar (e se despedir de) o amor na canção, "amaldiçoa" o outro a ficar preso a ele para sempre.
Ou seja, enquanto para o sujeito a canção é o fim, mas também o início de uma nova vida, para o outro a canção representa o (re) começo torturante da solidão, afinal o outro não terá mais quem lhe cante. Dito de outro modo: o sujeito de "Chuva ácida" se basta, pois é cantor de si, enquanto que o outro, sem voz própria e sem um cantor, perde a vida.
Ao invés de um "beijo molhado de luz", o que sela o amor aqui é a canção - a chuva ácida na despedida ferina: suas gotas corrosivas - "que nem o tempo apaga / como um hit popular".
"E quando se esquece de mim, lembra da canção", sentencia o sujeito irônico e forjadamente auto-suficiente da canção de amor rock'n'roll - balada no asfalto - feita para doer no outro, ficar no corpo como tatuagem - "se você souber perder / vai saber ganhar" - cantada na voz significativada de um roqueiro: Erasmo Carlos.

***

Chuva ácida
(Erasmo Carlos / Nelson Motta)

Chuva ácida
dia frio sem sol
nossa história
chega ao fim do fim

foi tão longe
foi tão fundo
mas agora
é hora de dar bye, bye

Sei, que tudo que se quer do amor
tudo que há de bom na vida
se você souber perder
vai saber ganhar
receber
sem chorar
sem nada pedir

Canções de amor
servem pra chorar as mágoas
e esquecer a dor

pra te esquecer
eu faço uma canção de amor
que vai tocar pra sempre
dentro do seu coração
e que nem o tempo apaga
como um hit popular

tocando
lembrando
de nós

11 agosto 2011

Sorver-te

"Sorver-te", de Kassin, promove o extravasamento da vontade, festa do desejo. Guardada no disco Sonhando devagar (2011), "Sorver-te" plasma o instante sexual - quando os corpos dizem mais do que as palavras. Focando o discurso no pré-durante-pós ato em si, o sujeito da canção revela as delícias que o outro (ouvinte) lhe proporciona no encontro homoerótico: urgente, clandestino.
Isso fica reiterado quando, na canção "Calça de ginástica", do mesmo disco, o sujeito diz querer "fazer sexo com você no banheiro de paraplégicos", apontando a urgência - tesão de realizar - e a subcultura do sexo gay - a pegação. O que oferece à Kassin elementos para construir uma subcategoria sonora: o tecnogay.
Vale dizer que os "subs" usados aqui estão mais na ordem do desdobramento (outra a partir de uma já existente) do que a assinatura de uma inferioridade, tanto do sexo, quanto da categoria. O camp é observado no "grau de artifício, de estetização", na "arte decorativa que enfatiza a textura, a superfície sensual e o estilo em detrimento do conteúdo", como anota Susan Sontag em "Notas sobre o camp", para concluir: "o camp é um solvente da moralidade".
De melodia híbrida, com um som anos 1980 misturado aos ares 2010, mixando tecnologias analógicas e eletrônicas, o sujeito de "Sorver-te" não deixa dúvidas: quer sensualizar. E destaca-se exatamente isso na canção: o desejo de fisicalidade ("calda quente") vindo de uma voz eletronicamente mexida - afetada.
Nesse ponto engendra-se a competência de Kassin em chamar atenção para as formas de cantar. Produzida, a voz que sai é ou não é do cantor? Ou melhor, que cantor é esse? Tais questões imbricam-se à perspectiva do sexo anônimo, rápido, forte/frágil: onde o que mais importa é o sexo - o som. "Cada momento com você presente / fico esperando com ansiedade / os fluidos corporais que você vai deixar", diz o sujeito.
Sugere-se a mistura entre a espontaneidade do primeiro take (velocidade na captura do acontecimento) e a racionalidade (os mecanismos de artificialização citados por Sontag). Como há de supor todo ouvinte atento à malícia da canção, o "sorvete" é uma substituição neobarroca, apropriação e deslocamento semântico latino-americanos para o "falo".
Eis a configuração de um dicionário próprio criado pelos indivíduos homoeroticamente inclinados a fim de comunicação entre si - paralelos ao vocabulário normatizado pela sociedade onde é permitido proibir.
Tropicalmente,"Sorver-te" recupera a canção "Sorvete", de Caetano Veloso, quando o sujeito diz que ela - "burra, sábia, deusa, mulher, menino e mandarim" - não quis [meu] sorvete. E "Manjar de reis", de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, e a vontade que o outro, sem timidez, chupe picolés. E ainda "História de fogo", de Otto e Alessandra Negrini: "Esse amor me derreteu / ajoelha-te esquece / me chupa e agradece / a quem te machuca". Signos espalhados que, condensados na canção de Kassin, servem à imagética da mitologia homoerótica.
Estética e existência misturam-se. As máscaras necessariamente usadas no dia-a-dia perdem todo sentido durante o sexo. Aqui, na bolha deliberadamente construída para si, o sujeito, depois de ver o outro derreter - provavelmente em ginástica, e aqui forja-se mais um diálogo com a canção "Calça de ginástica", permite-se à calda quente do outro: esfriando a alma do cotidiano moralista. "Eu fico triste quando evapora / o suor que você condensou", revela o sujeito.
Corpos suados, ardentes e apaixonados - cantantes. Tudo em silêncio, sem alarde, humanidades crescidas e bocas caladas, afinal a bolha protetora pode ser facilmente descoberta e estourada por algum passante.



***

Sorver-te
(Kassin)

gosto de ver-te derreter-te
para depois sorver-te
como um sorvete
de creme

a sua calda esfria a alma
mesmo ainda quente
quero absorver-te
deleite

a roupa cala
o seu corpo fala

cada incerteza uma confirmação
eu fico triste quando evapora
o suor que você condensou

cada momento com você presente
fico esperando com ansiedade
os fluidos corporais que você vai deixar

04 agosto 2011

Sou seu sabiá

“Sou seu sabiá”, de Caetano Veloso, do disco Noites do Norte (2001), cujos versos nucleares dizem: “Se o mundo for desabar sobre a sua cama / E o medo se aconchegar sob o seu lençol (...) Escute a voz de quem ama ela chega aí (...) Eu sou / Sou seu sabiá / Não importa onde for / Vou te catar / Te vou cantar / Te vou, te vou, te dou, te dar (...) Que tenho a dar? / Só tenho a voz / Cantar, cantar, cantar, cantar”, é um excelente exemplo de metacanção.
Observando o plano temático do disco Noites do Norte – inspirado pela leitura de Caetano sobre o livro de memórias Minha formação, de Joaquim Nabuco – podemos tomar o sabiá-sujeito cancional como aquele elemento sonoro que surge para reconfortar, consolar, mimar o desterritorializado: o escravo de alguma saudade - seja a nostalgia pela pátria roubada, seja o medo diante do estado de sentir-se só no mundo.
O sabiá, através do canto que nunca se cansa do “uníssono com a vida”, tenta restituir a alegria do ouvinte distante de sua pátria, distante de si. Como sabemos, o banzo – o sentimento de não pertencimento – foi responsável por dizimar uma grande quantidade de escravos. É nessa dobra que o sabiá quer entrar e desdobrar outros sentidos para a vida do ouvinte.
Com um arranjo melódico que marca o tic tac de um relógio afetivo, do tempo que corre à revelia do ouvinte desencantado e insone, o sujeito de "Sou seu sabiá" sustenta - na voz, no canto - o ouvinte na vida. Ao final, a performance vocal de Caetano, com seus indefectíveis falsetes, digo, do sabiá, desenha o "uníssono com a vida": entra em um diálogo orgânico com a melodia. Verbo, música e vocoperformance se equilibram em uma única intensão metacancional. Um lance lindo de se ouvir e que reforça o desejo do sujeito da canção.
Aqui, mais uma vez podemos relacionar a obra cancional de Caetano Veloso à tradição literária, pois percebemos nesta canção uma referência direta ao poema “Canção do exílio”, do poeta romântico Gonçalves Dias, em que os primeiros versos tantas vezes parodiados e/ou citados dizem: “Minha terra tem palmeiras / onde canta o sabiá”.
Ora, há no poema de Gonçalves Dias a voz de um sujeito que tenta amenizar a própria saudade através da lembrança e da exaltação das belezas da pátria amada e distante, enquanto que em "Sou seu sabiá" é o próprio sabiá - citado como um dos elementos da beleza da terra do sujeito de Gonçalves Dias - quem toma a palavra e canta o sujeito ausente da terra: restituindo-lhe à vida.
Esta inversão de voz discurssiva condensa a singularidade da canção de Caetano Veloso. O ouvinte não precisa voltar para lugar algum, pois o sabiá irá catá-lo seja onde for. Estabele-se entre quem fala (o sabiá) e quem ouve (o insone, o desterritorializado) um pacto ficcional em que um mantem-se vivo na atenção que produz no outro, reciprocamente. A voz que canta é a voz que ama. E vice-versa.
Ou seja, a razão de ser do sabiá está na existência de quem lhe ouve, ao mesmo tempo que o ouvinte precisa do cantar do sabiá para suportar a existência, a solidão irrefreável que acomete a todos nós. Passional, lenta, calma "Sou seu sabiá", para além da aliteração do título (em "s"), que figurativiza o canto, quer se aproximar do estado melancólico do ouvinte para daí removê-lo, como sugerem os tambores quase inaldíveis no final da canção.
Dito de outro modo: o texto da canção de Caetano Veloso destaca-se, dentre as outras paródias já feitas sobre o poema de Gonçalves Dias, por inverter o agente enunciador da mensagem. E, além disso, porque a superfície do texto parodiado só é percebida pela reminiscência: na delicadeza. Tudo está no plano do afeto, da memória: reserva da identidade.
Ao catar e cantar o outro - não importa onde for, pois, neosereia, ele pode ser levado na palma da mão e acessado em qualquer lugar - o sabiá (sereia) entrega o outro a si mesmo. Afinal, o que resta à sereia, ao sabiá, ao cantor a não ser cantar? Eis a contrapartida do pacto: se enquanto canta o sabiá sustenta o ouvinte na vida; ter quem cantar, por sua vez, insere o sabiá no mundo.



***

Sou seu sabiá
(Caetano Veloso)

Se o mundo for desabar sobre a sua cama
E o medo se aconchegar sob o seu lençol
E se você sem dormir
Tremer ao nascer do sol
Escute a voz de quem ama
Ela chega aí

Você pode estar tristíssimo no seu quarto
Que eu sempre terei meu jeito de consolar
É só ter alma de ouvir
E coração de escutar
Eu nunca me canso do uníssono com a vida

Eu sou
Sou seu sabiá
Não importa onde for
Vou te catar
Te vou cantar
Te vou, te vou, te vou, te dar

Eu sou
Sou seu sabiá
O que eu tenho eu te dou
Que tenho a dar?
Só tenho a voz
Cantar, cantar, cantar, cantar

28 julho 2011

Nossa Canção

"Prometo rios de leite / com seus afluentes / uma foz e o mar / aceno com presentes / que só o próprio tempo / pode adivinhar", diz o sujeito de "Canção necessária", de Guinga e Zé Miguel Wisnik. Por sua vez, o sujeito de "Nossa canção" (Zé Miguel Wisnik / Mauro Aguiar) anota que: "as canções / só são canções / quando não são / promessas".
Fojo aqui este diálogo metacancional possível entre as duas canções guardadas no disco Indivisível (2011) para observar o lugar onde a canção se realiza, onde ela é no mundo. Interferindo no tempo ordinário, suspendendo as promessas e impondo-se sempre no presente, a canção é enquanto dura suas emissão (execução) e audição.
É neste instante-já, ao oferecer verbo, melodia e, principalmente, calor vocal ao ouvinte, que a canção e, consequentemente, o seu sujeito sirênico se realizam, encontram um lugar para ser. Quando em ação, quando de fato ela é ela, a canção explode as promessas cumprindo-as: dando sentido ao absurdo cotidiano do ouvinte que, por sua vez, também se sente vivo: mimado, ninado.
Mas o sujeito de "Nossa canção" quer mais. Ao dizer, logo no início, que "nossa canção / guarda canções / diversas / minha ilusão / tua emoção / mil dimensões / imersas", ele revela a realidade (ficcional) de sua condição latino-americana: ele recupera o passado - canções cantadas; coloca-se no presente - compõe a "Nossa canção"; e sugere futuros - apropriações vindouras. Tudo através do ato genuinamente seu de contar-se: cantar-se.
Dito de outro modo, para compor a "Nossa canção" o sujeito se revela como um privilegiado ouvinte: deixa-se iludir e emocionar pelas outras vozes. Cantar, aqui (nele), é engendrar um canto paralelo: arranjado, paródico, mantenedor da contradição.
"A vida é devoração pura", anotou Oswald de Andrade. Há mais vida na canção (condensação - harmônico-contraditória de canções) do que no real. Ou melhor: a canção cria a realidade - nossa (ouvinte em ação) e de quem dela (no futuro) se apropriar. Afinal, "as canções / só são canções / quando não são / mais nossas", como diz o sujeito complexificando também a noção de autoria e insinuando parcerias invisíveis, porém constituidoras.
A canção é (de todos: e só assim ela é canção) quando deixou de ser (de alguém: de um); quando imbrica-se - "de par em par / de voz em voz" - às outras diversas e espessas canções, criando o mar sonoro necessário à ancoragem (fluida e perecível) do ouvinte.
No fundo, o que a canção precisa é o regaço do ouvinte: "que num minuto sem igual / você me lesse não me esquecesse / adivinhasse enfim / não desistisse mais de mim / e ouvisse no meu canto / as tontas entrelinhas / que silenciei / por ti", como diz o sujeito de "Canção necessária". A canção é o efeito especial que promove o indivíduo à vida.
Somos alguma coisa para ser cantada. Juntando fragmentos daquilo que pode (ou não) ser esta coisa, recolhendo sons, o sujeito de "Nossa canção" quer dizer e diz, sugerindo sua leitura oswaldiana: "Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente".
Cantar isso é nunca esquecer o nosso amor, aquilo que podemos ser: o doce mistério - um som lançado ao ar e sustentado pela permanente querela erótico-afetiva entre os diversos outros sons.



***

Nossa canção
(Zé Miguel Wisnik / Mauro Aguiar)

Nossa canção
guarda canções
diversas
minha ilusão
tua emoção
mil dimensões
imersas

outras virão
buscando a luz
de cais em cais
naus sobre naus
espessas
pois as canções
só são canções
quando não são
promessas

nessa canção
cabem canções
dispersas
minha razão
teu coração
mil sensações
avessas

outras virão
de encontro a nós
de voz em voz
de par em par
esparsas
pois as canções
só são canções
quando não são
mais nossas

21 julho 2011

Minha voz

A voz é o berço das sereias. É na voz onde mora todo o mistério da sereia: suas inflexões, nuances, alturas, pausas. Se o que é dito afeta, o modo como se diz afeta muito mais. Ao produzir presença - calor humano - a voz da sereia, dizendo aquilo que mobiliza o indivíduo, arrebata, seduz, mata e dá vida.
É a voz do pastor Ernani o que toca a cindida Lavínia, no livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino. "Algo havia mudado dentro dela. E Lavínia queria mais. Queria outra dose da droga poderosa que a voz e as palavras daquele homem continham", anota o narrador.
Imersos no mar sonoro dos apelos cotidianos e íntimos, estamos expostos, porque carentes, às variadas sereias do mundo. Lavínia, pela voz de Ernani, "sem a ajuda de aditivos, estivera a salvo do peso do mundo durante horas, imune à música da outra que, sereia, tocava em seus ouvidos fazia dias", reforça o narrador.
Aquelas palavras, já tantas vezes ouvidas, em momentos distintos da vida, ditas por Ernani, produziu em Lavínia uma mirada no espelho: a descoberta inconsciente de filigranas escondidas dentro da mulher agora cantada e tocada por outras aberturas.
Um blend de concretude (de corporidade) e etéreo (de ilusão) assalta os sentidos do ouvinte das sereias. E é no lugar exato dessa mistura que o indivíduo se desdobre vivo: apto à costumeira inadequação da existência. É neste ponto que o indivíduo se reposiciona, se encaixa. Para, em instantes, quando a canção acaba, quando a voz silencia, tornar-se novamente perdido e carente de outra canção, de outra voz sirênica.
É nessa perspectiva que o sujeito da canção "Minha voz", de Déa Trancoso (Serendipity, 2011) trabalha. "Minha voz quando sai quer cantar / Minha voz sempre está / pronta pra festejar, florescer / dentro da melodia", diz o sujeito.
É a voz o que dá sentido - "ajusta harmonia" - àquilo que é dito, cantado. Mística ("é cordeira de Deus") e física ("no reinado do chão"), a voz, em sua performance, tem o ofício de personalizar a mensagem: estabelecer a ponte entre quem emite e quem ouve a canção.
Aqui, temos um sujeito pondo-se vulnerável ao revelar aquilo que lhe mantem suspenso no ar e, ao mesmo tempo, com os pés no "chão fecundo". Mas esse lirismo não é mera sensação individual. "Baiana luz do dia", a voz de Déa Trancoso, ao dizer tais palavras, emoldurada por um acompanhamento melódico suave e terno, participa das inquietações universais: coloca o ouvinte diante do espelho; exibe um saber do humano por dentro.
A voz do sujeito de "Minha voz" põe em cena algo do universal humano: a certeza incontida de que somos, na vida, uma produção ficcional - aparência tornada verdade integral - que se realiza no ato (auto)cancional. "Solidão sem luar", a voz do sujeito gera uma universalidade de conteúdo lírico urgente à identificação emissor/ouvinte.
Tornamo-nos, deste modo, amigos da sereia cuja voz sai do suporte eletrônico sonoro. Afinal, ela padece de incertezas semelhantes às nossas: indivíduos soltos sempre prontos para festejar e florescer na canção desassossegada que a vida entoa.

***

Minha voz
(Déa Trancoso)

Minha voz quando sai quer cantar
Minha voz sempre está
pronta pra festejar, florescer
dentro da melodia

Minha quando vem me aquecer
minha voz sobe ao sol
brilho agudo ilumina meu ser
há justa harmonia

É cordeira de Deus no reinado do som
vem abrindo encantaria
minha voz é um rio lá no meio do mar
silencia

Tem ofício de céu, minha voz
solidão secular
passarinho no ar, minha voz
arisca, fugidia

Tem ofício de luz no meu brêu
corda solta no mundo
meu tambor de raiz, chão fecundo
baiana luz do dia

14 julho 2011

O objeto

A certa altura da novela De donde son los cantantes, de Severo Sarduy, uma personagem canta: "Mamá yo quiero saber de dónde son los cantantes, que los siento muy galantes y los quiero conocer". Incorrendo deliberadamente no anacronismo sadio, encontro resposta para a inquietação da personagem de Sarduy em No caminho de Swann, de Marcel Proust, quando o narrador anota: "Erguemos os olhos e só vemos as caixas dos violinos, preciosas como estojos chineses, mas, por um momento, ainda nos iludimos com o enganoso apelo da sereia".
Ou seja, é da caixa acústica - do mar sonoro que ela representa e que se imprime no ouvinte - que a neosereia (o cancionista moderno) entoa seu canto (quase) real. E afeta-nos de forma tão profunda que nos supomos íntimos daquele canto. Tornamo-nos, pela irresistibilidade daquilo que é cantado - por ele nos revelar a nós mesmos -, amigos da voz que sai dos aparelhos eletrônicos: casa das sereias.
Dito ainda de outro modo, os cantantes modernos nascem e se criam nos suportes técnicos. E se adaptam aos recursos tecnológicos de mobilidade e de reprodução. E através deles produzem presença: interferem no real.
No disco Na confraria das sedutoras (2008), músicos inventivos e antenados, Dengue, Pupillo e Rica Amabis - formadores do grupo 3 na massa - mergulham naquele lugar onde a voz busca a corporeidade necessária ao toque físico no ouvinte: na intensidade sensual.
Com canções que primam pelas descrições exacerbadas dos sentidos, o disco - via compositores masculinos - dá voz às delícias de ser mulher: objeto desejante e desejado. Os sujeitos investem no corpo, no toque da língua, que, salivando os dentes, é mais do que o órgão muscular por onde - através do qual - articulamos os sons da voz. Com ela, as sedutoras roçam (afetam) o outro; dilatam poros.
E é a língua sedutora em comum, também, o que promove a possibilidade da tal confraria do título do disco: com todas as sedutores juntas, em conluio, sempre prontas para afirmar seus desejos e tatuá-los no outro-ouvinte. É o que faz o sujeito de "O objeto", de Felipe S., Vicente, Marcelo Campelo, Rica Amabis, Dengue e Pupillo, por exemplo.
Defendida por Nina Becker, a canção transpira desejo de toque carnal. Ouvinte - "Timidamente eu ouvia sua música / E sentia os estalos do seu caminhar" -, o sujeito canta uma resposta-convite irresistível: "Eu queria ter minha foto estampada em sua blusa / Minha carne em sua unha / Dentro e fora de você".
Como boa devoradora, a sedutora (neosereia) da canção quer arrastar o ouvinte para seu universo luxurioso. E ficcional, pois ao final descobrimos que tudo pode não passar de um sonho - espelho e vontades e verdades: "Deita-te comigo / Sem tu mesmo estar aqui / Dance nos meus sonhos e me implore a pedir / Para que eu abra os olhos", diz o sujeito lúdico, brincando com o juízo do ouvinte.



***

O objeto
(Felipe S. / Vicente / Marcelo Campelo
/ Rica Amabis / Dengue / Pupillo)

Pude então
Estar aqui
Sem recordações
Do que vivi
Só no pensamento

Timidamente eu ouvia sua música
E sentia os estalos do seu caminhar
Eu queria ter minha foto estampada em sua blusa
Minha carne em sua unha
Dentro e fora de você

Molhando a minha língua
Abrindo a cortina
Iniciando a rotina
Ativando os calafrios
Sinto a pele esquentar

O espelho e as verdades
O objeto das vontades

O espelho e as vontades
O objeto da verdade

Deita-te comigo
Sem tu mesmo estar aqui
Dance nos meus sonhos e me implore a pedir
Para que eu abra os olhos