A
canção, o teatro, a escultura, a arquitetura, a pintura, a poesia são linguagens em progresso, são exercícios
de experimentação do gesto artístico. Até chegar ao formato consolidado que
temos hoje – e que, por resistência e conformismo com o mercado, ainda vai
imperar por longo tempo – a canção passou (passa) por várias transformações.
Muitas dessas impostas pelo suporte. Mas, se no século XX a forma-canção
parecia definitivamente assentada, consensualmente, os sons eletrônicos e a
internet vieram destruir essa certeza. São muitas e descentradas as
possibilidades de se fazer canção hoje.
Penso
que compramos por muito tempo (por vezes acho que não a entendemos e/ou
forçamos sua pertinência para nós brasileiros) a impossibilidade de transmissão
da experiência, tal e qual Walter Benjamin nos apresentou e Adorno referendou.
Embora esse tenha feito revisões no conceito de “aura”. Mas, pergunto-me: sendo
as experiências outras, num mundo outro, cada vez mais veloz, as transmissões
não precisam se realinhar? Há impossibilidade ou os canais de transmissão e recepção
ficaram obsoletos?
Pensando
sobre essas e outras questões, posso sugerir que o disco Nem (2014) é mais um trabalho de excelência de Cid Campos. Da
primeira – canção que dá título ao disco e parece dialogar com “Uns”, de
Caetano Veloso – à derradeira canção, Nem
é Cid Campos dando forma sonora à forma verbal. Mas é mais que isso: há um desejo
arcaico e moderno muito bem engendrado.
Não
citei Caetano Veloso à toa. Caetano gravou “Circuladô de fulô”, trecho da proesia Galáxias, de Haroldo de Campos. “Fecho encerro”, gravada por Cid
como canção, vem da mesma obra literária de Haroldo. E é sobre esse trabalho de
musicar a palavra escrita que quero
comentar, já que Cid Campos tem desempenhado tão bem tal função poemusística.
Em Nem, por exemplo, temos textos de
Rimbaud, Emily Dickinson e Augusto de Campos. Além do já mencionado texto de
Haroldo.
No
livro Galáxias o trecho que inicia
com “Fecho encerro”, metalinguisticamente, encaminha o texto para o fim. Por
sua vez, a voz de Cid Campos entra no ritmo passional de um livro que finda.
Ele faz da voz de um narrador literário a verdade do sujeito da canção que
encerra o disco.
Para
tanto, Cid Campos alonga vogais e faz semi-pausas e pausas próprias da voz, do
ato de falar e cantar. Ele age sobre um texto sem vírgulas nem pontos finais.
Um texto que pede a interferência do leitor na construção significativa do percurso
sonoro. Aliás, Galáxias é uma obra
cuja estrutura permite mobilidades e construção de significações no trânsito
entre materialidades possíveis. O trecho que se inicia com “Fecho encerro”
destacado por Cid Campos é grafado em itálico, assemelhando-se à primeira
página (“E começo aqui”), mas diferenciando-se do restante de todo o miolo (travessia) do livro. Encerrar
como quem inicia. Eterno retorno.
Importa
lembrar que, encartado ao livro Galáxias,
o CD Isto não é um livro de viagem,
traz Haroldo de Campos lendo sua escrita. Inclusive a página “Fecho encerro”.
Mas se ali a voz do poeta é fala, com Cid Campos é canto, gestualidade
cancional. Com Haroldo, a cítara de Alberto Marsicano; com Cid, além de suas
guitarras, seu baixo e seu teclado solo, temos o teclado de Moisés Alves e a
bateria de Alexandre Damasceno, oferecendo os sons cósmicos que as galáxias
pedem. Em Haroldo, a entoação. Em Cid, a canção, a semiótica da melodia em movimentos
de distensão e tensão: andamentos, deslocamentos, acelerações, recuos, pausas.
Como
sabemos, o fato de alguns poemas terem a palavra “canção” no título não confere
cancionalidade implícita ao poema. Aliás, temos canções cujos títulos são
“Canção necessária”, “Canção que morre no ar”, “Canção pra você viver mais”.
Bem como “Poema”, “Estado de poesia”, “Poesia”. Adriana Calcanhotto, por
exemplo, inspirada por um poema de Wally Salomão, lançou um disco chamado A fábrica do poema (1994). É por aí,
nessas afirmações da impureza das linguagens que podemos ouvir Cid Campos
cantando, por exemplo, “me libro enfim neste livro”. O disco como livro: “como”
do verbo comer. Temos aqui um questionamento das categorias, ou das tipologias,
livro e disco.
Dito
de outro modo, quando lemos mentalmente um poema imaginamos entoações,
melodias, mas cabe a um cancionista traduzir, ou não, a linguagem verbal em
linguagem cancional. Defendo que não devemos mais confundir poemas que pagam
tributo às cantigas medievais – de amor, de amigo, de maldizer –, e que mais
tarde foram assentadas em canções líricas populares e, depois, com a difusão da
escrita, em poemas lírico/dramáticos, com aquilo que hoje entendemos – depois
de Luiz Tatit, principalmente, aqui no Brasil – por canção.
Achar
que canção é poesia musicada reduz a potência da canção enquanto linguagem artística
e mantém a hiper-valorização da poesia escrita. Creio que Caetano Veloso respondeu
a essa, a meu ver, falsa dicotomia quando cantou “Minha música vem da / Música
da poesia de um poeta João que / Não gosta de música // Minha poesia vem / Da
poesia da música de um João músico que / Não gosta de poesia”. Ou seja, canção
é um “outro retrato”, aglutinador, porém diferente. Desse modo, o que Cid
Campos apresenta em “Fecho encerro” é canção.
É
importante observar: Galáxias não é
um livro de canções. Assim como um livro de partituras, ou de letras de canções,
também não é um livro de canções. A canção só é no instante-já cancional. No
entanto, exatamente, por não ser canção, Galáxias
pode ser, digamos, cancionável no
trabalho do cancionista. Cid Campos demonstra isso.
Reforço:
a letra de canção não é a canção. Por sua vez, a versão instrumental de uma
canção é música, é trabalho do musicista, não do cancionista (que pode acumular funções), deixou de ser canção,
já que suprimiu a voz de alguém cantando. Canção é performance vocal calcada na
intencionalidade do emissor e na necessidade do receptor. Essa definição,
obviamente, difere, por questões contextuais, sociais, éticas e estéticas, por
exemplo, das trovas de Arnaut Daniel, dos lieder e, também, das songs without words de Schubert ou
Mendelssohn.
Em
“Fecho encerro”, Cid Campos aponta a restauração da voz do texto, a partir dos
esquemas rítmicos oferecidos pelo próprio texto, libertando-o do silêncio da
página e/ou da memória sonorafetiva
do leitor. Cid encontra uma forma-canção transmissora da experiência do
encerramento, ao capturar uma das possíveis dinâmicas vocais do texto. Ele localiza
a abertura para a ponte que liga uma linguagem (palavra escrita) à outra
(palavra cantada), posto que as linguagens estejam sempre negando suas
auto-suficiências. Nesse sentido, uma está sempre aberta a outra, puxando a
outra, supondo a outra.
Memória
e imaginação são mecanismos utilizados pelo cancionista a fim de “melhor cantar”.
Vem daí a eficácia do trabalho de Cid Campos. Não é o texto cabendo na voz, porém,
o amálgama. Aqui não interessa colocar a poesia escrita em primeiro lugar. A
canção é voz. Não saber sobre o que a letra trata também é um modo de ouvir
canção. Dançar é outro jeito de ouvir. Viajar no som também. A palavra-som já
basta. Não é preciso a palavra-sentido. Feito desse modo, o gesto de “musicar
um poema” é, em si, uma teorização do próprio gesto, um ordenamento, uma
posição ética, um investimento estético. No mais: “me zero não canto não conto
não quero”.
***
(Cid Campos / Haroldo de Campos)
Um comentário:
Caro Leonardo
Descobri seu blog há pouco tempo, e "por acaso". Confesso a você que gostei dele e me subscrevi. Já conhecia o trabalho de Cid Campos e gostei de sua análise. Parabéns! Ah, gostaria de ser seu amigo. Sou formado em Letras e adoro música popular brasileira.
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