A voz é a certeza de que uma pessoa de carne e osso a emite e existe. É uma assinatura. "Fui apresentado a Gal porque ela cantava bem. Não fui conhecer uma pessoa, e sim um canto", disse Caetano Veloso em entrevista ao jornal O Globo (29/11/2011).
Para além daquilo que viria a ser a sua presença redefinidora do corpo feminino em cena, Gal Costa é uma voz - do cóccix à boca - singular e única. Viva e corpórea, a voz nos distrai da obsessiva vigilância platônica, alertando-nos para a unicidade de cada indivíduo.
Como anota Adriana Cavarero, no livro Vozes plurais: "Uma voz significa isso: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes".
Salvo engano, a canção "Autotune autoerótico", de Caetano Veloso, é síntese (e antítese) do disco Recanto (2011). O verso que abre a canção - "Roço a minha voz no meu cabelo" - dá visualidade sonora à capa do disco: o rosto de Gal Costa em close-up e sua voz (assim, meio de lado) "fotografada" no instante exato em que roça o cabelo da cantora. Notas (vocais) e fios (de cabelo) elétricos a serviço do cantar.
Aliás, com Recanto, Gal Costa se recoloca no posto da cantora que corre riscos, experimenta, cria - faz da técnica vocal ruminada pela experiência um aparelho à disposição do cantar. Gal mostra que não basta incorporar ruídos artificiais à canção para fazê-la ter ar contemporâneo. Para andar, o canto necessita das vivências e das lembranças do dono da voz. Como os arranhados (reminiscências de um tempo vivido) - ajustados eletronicamente - da agulha no vinil acompanhando a canção "Recanto escuro", por exemplo.
E é aqui que Gal Costa se redimensiona como intérprete cuja voz tépida (tons mais baixos dos que emitidos nos anos de 1970 e 1980) agora não luta mais (não precisa mais lutar, pois já sabemos que seu nome é Gal) eroticamente contra a estridência de uma guitarra elétrica, mas com a frieza de um equipamento eletrônico que ameaça distorcer (e distorce) sua voz.
São os versos "Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar / pelos caminhos que levam à grande beleza" que melhor representam a tese sustentada pelo disco. E estimulam a análise do processo de descarte da voz perpetrado tanto pela filosofia - de Platão a Derrida -, quanto, supostamente, pelo autotune.
Processador que corrige as performances vocais e instrumentais, o autotune tem servido para disfarçar erros e limitações. No entanto, como "belezas são coisas acesas por dentro" (Mautner), o autotune, de viés, revela que só o cantor - e seus botões de carne e osso - é capaz de pensar que nada "dá socorro no caminho inevitável para a morte" (Gil).
Obviamente, a intenção do sujeito de "Autotune autoerótico" não é execrar o equipamento. Pelo contrário, dizendo quem é o dono de quem, o sujeito faz da máquina um cúmplice na tentativa de significar (dar sentido a) o absurdo da vida. Sem a voz o autotune não se basta para satisfazer a urgência humana de belezas. Por sua vez, sem o autotune a voz (humana, orgânica) não chegaria aos resultados estéticos esperados.
Em "Autotune autoerótico" temos o perfeito equilíbrio entre forma e conteúdo. Tudo aquilo que é cantado por Gal Costa é mostrado sonoramente pela sua voz distorcida, através do uso do equipamento eletrônico.
É deste modo que um verso como "desço a nota até o sol do plexo" pode ser percebido em sua materialidade pelo ouvinte, já que a voz de Gal desce até o ponto mais grave das notas, localizando-se na altura da região do plexo solar, onde está o diafragma: equipamento (autotune) orgânico de sustentação e motor dos ajustes vocais.
O efeito autotune e o efeito orgânico se misturam fundando o efeito especial do ato de cantar. O cantar é maior do seus instrumentos, fura bloqueios e "coisas sagradas permanecem / nem o Demo as pode abalar". Manipulada, ou não, é a voz quem indicia a existência de um indivíduo-cantor.
Borrando fronteiras, ficção e realidade se misturam posto que, como é sabido, a jovem Maria da Graça exercitava a voz nas panelas da mãe, dona Mariah. Autoeroticamente (alter inclusive), o sujeito da canção diz: "Americana global, minha voz na panela lá / Uma lembrança secreta de plena certeza". Só lembra quem pensa. E vice-versa. O sujeito é Gal, é eu, sou eu, é nós.
É na voz vinda de um recanto (eternos relance e renasce) escuro que se alimenta o gesto vocal de Gal Costa: o humano acima (ou junto) dos artificialismos. Ou seja, a voz orgânica (quente) e a voz fria (eletrônica) levam à mesma plural Gal Costa - "instintos e sentidos" - frente ao infindo.
Não sabemos onde termina a voz do sujeito da canção e onde começa a voz (biográfica) de Gal: "O menino é eu, o menino sou eu". Elas se misturam, se autoerotizam e, respondendo à pergunta feita pela voz autotunizada da cantora Cher - "Do you believe in life after love?" -, Gal Costa, com voz também modificada e acompanhada por uma base eletrônica grave e áspera, parece querer dizer que sim, que "as coisas findas, / muito mais que lindas, / essas ficarão" (Drummond), sempre que houver alguém cantando, trazendo a vida na voz e não permitindo que o amor (à vida) se perca.
A voz - "esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim" - de Gal Costa joga/luta eroticamente - atrás, na frente, em cima, em baixo, entre vozes - com as intervenções do autotune a fim de afirmar que "a lembrança secreta de plena beleza" só é possível porque há Gal Costa sustentando tudo, na voz. É nela que tudo dói e canta: e é gozo vital.
Como anota Adriana Cavarero, no livro Vozes plurais: "Uma voz significa isso: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes".
Salvo engano, a canção "Autotune autoerótico", de Caetano Veloso, é síntese (e antítese) do disco Recanto (2011). O verso que abre a canção - "Roço a minha voz no meu cabelo" - dá visualidade sonora à capa do disco: o rosto de Gal Costa em close-up e sua voz (assim, meio de lado) "fotografada" no instante exato em que roça o cabelo da cantora. Notas (vocais) e fios (de cabelo) elétricos a serviço do cantar.
Aliás, com Recanto, Gal Costa se recoloca no posto da cantora que corre riscos, experimenta, cria - faz da técnica vocal ruminada pela experiência um aparelho à disposição do cantar. Gal mostra que não basta incorporar ruídos artificiais à canção para fazê-la ter ar contemporâneo. Para andar, o canto necessita das vivências e das lembranças do dono da voz. Como os arranhados (reminiscências de um tempo vivido) - ajustados eletronicamente - da agulha no vinil acompanhando a canção "Recanto escuro", por exemplo.
E é aqui que Gal Costa se redimensiona como intérprete cuja voz tépida (tons mais baixos dos que emitidos nos anos de 1970 e 1980) agora não luta mais (não precisa mais lutar, pois já sabemos que seu nome é Gal) eroticamente contra a estridência de uma guitarra elétrica, mas com a frieza de um equipamento eletrônico que ameaça distorcer (e distorce) sua voz.
São os versos "Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar / pelos caminhos que levam à grande beleza" que melhor representam a tese sustentada pelo disco. E estimulam a análise do processo de descarte da voz perpetrado tanto pela filosofia - de Platão a Derrida -, quanto, supostamente, pelo autotune.
Processador que corrige as performances vocais e instrumentais, o autotune tem servido para disfarçar erros e limitações. No entanto, como "belezas são coisas acesas por dentro" (Mautner), o autotune, de viés, revela que só o cantor - e seus botões de carne e osso - é capaz de pensar que nada "dá socorro no caminho inevitável para a morte" (Gil).
Obviamente, a intenção do sujeito de "Autotune autoerótico" não é execrar o equipamento. Pelo contrário, dizendo quem é o dono de quem, o sujeito faz da máquina um cúmplice na tentativa de significar (dar sentido a) o absurdo da vida. Sem a voz o autotune não se basta para satisfazer a urgência humana de belezas. Por sua vez, sem o autotune a voz (humana, orgânica) não chegaria aos resultados estéticos esperados.
Em "Autotune autoerótico" temos o perfeito equilíbrio entre forma e conteúdo. Tudo aquilo que é cantado por Gal Costa é mostrado sonoramente pela sua voz distorcida, através do uso do equipamento eletrônico.
É deste modo que um verso como "desço a nota até o sol do plexo" pode ser percebido em sua materialidade pelo ouvinte, já que a voz de Gal desce até o ponto mais grave das notas, localizando-se na altura da região do plexo solar, onde está o diafragma: equipamento (autotune) orgânico de sustentação e motor dos ajustes vocais.
O efeito autotune e o efeito orgânico se misturam fundando o efeito especial do ato de cantar. O cantar é maior do seus instrumentos, fura bloqueios e "coisas sagradas permanecem / nem o Demo as pode abalar". Manipulada, ou não, é a voz quem indicia a existência de um indivíduo-cantor.
Borrando fronteiras, ficção e realidade se misturam posto que, como é sabido, a jovem Maria da Graça exercitava a voz nas panelas da mãe, dona Mariah. Autoeroticamente (alter inclusive), o sujeito da canção diz: "Americana global, minha voz na panela lá / Uma lembrança secreta de plena certeza". Só lembra quem pensa. E vice-versa. O sujeito é Gal, é eu, sou eu, é nós.
É na voz vinda de um recanto (eternos relance e renasce) escuro que se alimenta o gesto vocal de Gal Costa: o humano acima (ou junto) dos artificialismos. Ou seja, a voz orgânica (quente) e a voz fria (eletrônica) levam à mesma plural Gal Costa - "instintos e sentidos" - frente ao infindo.
Não sabemos onde termina a voz do sujeito da canção e onde começa a voz (biográfica) de Gal: "O menino é eu, o menino sou eu". Elas se misturam, se autoerotizam e, respondendo à pergunta feita pela voz autotunizada da cantora Cher - "Do you believe in life after love?" -, Gal Costa, com voz também modificada e acompanhada por uma base eletrônica grave e áspera, parece querer dizer que sim, que "as coisas findas, / muito mais que lindas, / essas ficarão" (Drummond), sempre que houver alguém cantando, trazendo a vida na voz e não permitindo que o amor (à vida) se perca.
A voz - "esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim" - de Gal Costa joga/luta eroticamente - atrás, na frente, em cima, em baixo, entre vozes - com as intervenções do autotune a fim de afirmar que "a lembrança secreta de plena beleza" só é possível porque há Gal Costa sustentando tudo, na voz. É nela que tudo dói e canta: e é gozo vital.
***
Autotune autoerótico
(Caetano Veloso)
Roço a minha voz no meu cabelo
Desço a nota até o sol do plexo
Ai, meu amor, me dá, que calor, me beija
Ah, por favor, não vá, por favor, me deixa
Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar
Pelos caminhos que levam à grande beleza
Americana global, minha voz na panela lá
Uma lembrança secreta de plena certeza
(Caetano Veloso)
Roço a minha voz no meu cabelo
Desço a nota até o sol do plexo
Ai, meu amor, me dá, que calor, me beija
Ah, por favor, não vá, por favor, me deixa
Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar
Pelos caminhos que levam à grande beleza
Americana global, minha voz na panela lá
Uma lembrança secreta de plena certeza
13 comentários:
Que lindo, Leonardo!
Muy bueno!
Meus parabéns, um texto sensacional!!!
Ótimo, Leonardo! Abraços...
.
William Rogério
Belíssimo texto, Leonardo!
Leonardo,obrigada.
Seus comentários encantam ainda mais todos os cantos.Você nos faz ouvir muito além dos sons,das vozes,das palavras.Você é um encantador de cantos...
Leonardo- Falar que o seu texto é perfeito seria até um pleonasmo. VAMOS a minha dúvida então: Você já ouviu a musica titulo no cd? Eu a conheci somente naquele dia , pelas mãos de Caetano. Tenho curiosidade de saber se a produção eletrônica tirou ou acrescentou alguma harmonia nessa versao que é um convite à boa melancolia...
Obs: Lendo você tenho até vergonha de escrever meus textos sobre cinema!! rsrsrs
Que texto maravilhoso!
Quando crescer, quero ser como voce...
Excelente trabalho!
Feliz Natal, bjaum e muita paz!
Que bom ver que alguém ainda se interessa por escrever bons textos sobre boas músicas. A canção fica até melhor assim depois do que o Leonardo escreveu, porque (neste caso e alguns poucos outros) a canção ganha uma energia significativa que não é acionada quando a gente só a ouve. Se viesse com esse manualzinho poético, o disco de Gal teria mais êxito do que o que provavelmente terá!(se bem que ter êxito na música, hoje em dia, não significa nada além de sexo e dinheiro) Mas o disco é muito bom, sobretudo Mansidão e Miami Maculelê que é uma beleza.
vim parar aqui por acaso, mas não será munida dele que escutarei Recanto com uma nova percepção, me encantava as canções, porém percebia que minha compreensão ficava aquém, como se eu pudesse só escutar o belo, distrair-me dele mas não absorver a intenção do artista. Obrigado por dar um resquício de luz ao recanto escuro.
Que bom, Gabriela. Volte sempre.
Significado de recanto escuro, por favor
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