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26 fevereiro 2023

Também guardamos pedras aqui

Quando Hilda Hilst faz Ariana dizer a Dionísio "antes de ser mulher sou inteira poeta" está afirmando a poesia como matéria fina da auto inscrição de sua voz de mulher no mundo. A poeta mulher assume o sopro vital e criador - socialmente, lugar do homem. Ela usa a escrita (essa invenção conservadora de prestígios) para contra atacar. Ela sabe, no poema existe aquilo que na vida está interditado. Mas quantas puderam? Quantas podem poetar? Em TAMBÉM GUARDAMOS PEDRAS AQUI, Luiza Romão restitui a voz sequestrada de tantas mulheres: "Perdemos as vogais depois os rios", lemos no poema "Briseida". O livro é um canto coral a rasurar o imaginário da Grécia Antiga e do Brasil de hoje: Troia é aqui, Troia não é aqui. É - na linguagem dos mitemas, na performance das cicatrizes, na pedagogia pela pedra; não é - na experiência, na vivência singular de cada corpo. No livro "Maneiras trágicas de matar uma mulher" de Nicole Loraux lemos que "no teatro de Atenas, a escuta era, para o público da representação trágica, como que uma leitura muito refinada, à altura da 'profundidade' do texto". Utilizando a forma poética da origem da poesia, ou seja, a palavra na voz de alguém de carne e osso, Luiza Romão mexe e remexe da tradição para, com verbo participante "no sul do sul do mundo", reativar a escuta ativa do público ateniense, digo, brasileiro. Em tudo a estética do slam, da poesia falada. Notem-se o não uso da pontuação padrão de escrita e a teatralização da grafia dos versos. Tudo a serviço da re-invenção daquilo que foi recalcado ao longo do tempo: a dicção do abismo que separa norma e uso, escrita e fala, herança e matriarcado, musa e poeta, Lácio e Luanda. E nesse processo, a advertência do poema "Heitor" é luminosa: "errar o inimigo é tão fatal quanto acertá-lo".

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