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26 novembro 2023

As duras penas


Tive o privilégio de ler AS DURAS PENAS - O ÍNDIO NA LITERATURA E A LITERATURA INDÍGENA quando ainda era a tese de doutorado de Lívia Penedo Jacob. Tendo merecidamente recebido o Prêmio Capes de Tese, o livro reúne 10 ensaios sobre representação e autorrepresentação da alteridade indígena, esse conceito guarda-chuva de algo que não tem governo, nem nunca terá, de uma singularidade prismática impossível de ser apreendida pelos filtros iluministas e românticos que ainda hoje se impõem no debate acadêmico em torno da ética e da estética na literatura. Outrossim, "enquanto a antropofagia pretendida por Oswald e Mário de Andrade buscava a miscigenação cultural, deglutindo e ruminando inclusive a escrita etnográfica, assistimos, na atualidade, à participação efetiva dos povos originários nesse fazer poético", escreve a autora. Unimúltiplo, o conceito "indígena" (e seu implícito "índio") é abordado por Lívia enquanto revelação daquilo que, não por ser exótico, é o óbvio; é nós. Para tanto, o foco na oralidade é fundamental. Desprezada por certa linha da Academia, exatamente porque impossível de ser domada, domesticada, civilizada, a pesquisa em torno da oralidade faz do livro AS DURAS PENAS, com toda ambiguidade que esse título sugere, uma referência à compreensão do gaio saber. Destaque-se o manejo de perspectivas e o diálogo estabelecidos com diversos e diferentes autores canônicos e de hoje.

19 novembro 2023

Como organizar uma biblioteca


Despretensioso, como a grande maioria das boas obras, COMO ORGANIZAR UMA BIBLIOTECA é uma leitura leve e reveladora sobre os modos de ser e estar com os livros - esse fetiche: "os livros são objetos transcendentes / mas podemos amá-los do amor táctil", canta Caetano Veloso; "o fetichismo, para ser saudável, implica o uso, o contato", escreve Roberto Calasso. E o autor vai elencando seus livros de formação, de cabeceira, de trabalho, revelando muito de si, inscrevendo sua vida através das leituras. Fatos históricos se misturam às páginas que vão passando, não à margem, mas, pelo contrário, junto, com, dentro da vida. Esse baralhar é a potência do livro COMO ORGANIZAR UMA BIBLIOTECA, já que "a organização de uma biblioteca nunca encontrará - aliás nunca deveria encontrar - uma solução", escreve Calasso. Equilibrando humor e amor, o autor presentei quem lê com tiradas tão engraçadas quanto precisas: ""​​O essencial é comprar muitos livros que não são lidos na hora. Em seguida, depois de um ano, ou de dois anos, ou de cinco, dez, vinte, trinta, quarenta, poderá chegar o momento em que se pensará ter necessidade exatamente daquele livro - e quem sabe ele poderá ser encontrado numa prateleira pouco frequentada da própria biblioteca", lê-se na tradução de Patricia Peterle. Daí porque cada biblioteca é única e incivilizada aos olhos de fora, justo porque a disposição dos livros na biblioteca é um gesto de paixão.

12 novembro 2023

Sem receita


O livro SEM RECEITA, de José Miguel Wisnik, valeria a leitura apenas por resgatar o icônico texto "Gaia ciência - literatura e música popular no Brasil", com seu diagnóstico preciso na virada do século XX para o XXI: "Podemos postular que se constitui no Brasil, efetivamente, uma nova forma de “gaia ciência”, isto é, um saber poético-musical que implica uma refinada educação sentimental. [...] Noutras palavras, o fato de que o pensamento mais “elaborado”, com seu lastro literário, possa ganhar vida nova nas mais elementares formas musicais e poéticas, e que essas, por sua vez não sejam mais pobres por serem “elementares”, tornou-se a matéria de uma experiência de profundas consequências na vida cultural brasileira das últimas décadas". Mas o livro SEM RECEITA vale também por outros diagnósticos, diversas metaforizações e várias iluminações que só o pensamento rigoroso e amoroso de José Miguel Wisnik consegue elaborar, sobre Machado e Maxixe, política e música, a transcendência da cajuína, o dom da ilusão, Zé Celso e Dioniso, etc.

05 novembro 2023

Tropicália rex


O rap abriu o debate a cerca da perda do reconhecimento confortável daquilo que definimos culturalmente ao longo de todo o século XX como sendo "canção" - monumento do gaio saber brasileiro. Entre o "ela pensa em casamento / e uma canção me consola" do verso tropicalista, o rap performa o "papo reto" de identidades historicamente postas à margem, sem o consolo, nem o direito. "O rap não é apenas um gênero da música popular brasileira que faz um jogo político; ele ressalta o jogo político que está presente desde os primórdios da tradição musical popular brasileira", escreve Liv Sovik no livro TROPICÁLIA REX. Para a autora, que trata do "fim de certo consenso pacífico em torno das hierarquias sociais e raciais" no Brasil, "o rap assume, exacerba e deixa explícito o que o tropicalismo preconizava em suas referências à cultura popular", agora, "não mais como motivo de choque, mas como veículo da vida coletiva", uma vida imersa na violência gerada pelas desigualdades. Quando, diante da audição de um rap, estranhamos e perguntamos "isso é canção?", o rap já cumpriu sua missão, ou seja, desinstalou a certeza, nublou as verdades burguesas, cravou a dúvida, deu o nó na orelha da nossa educação sentimental. TROPICÁLIA REX trata disso e de outras questões de música popular e cultura brasileira, temas sobre os quais Liv Sovik sempre lança luzes desautomatizadas.