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31 agosto 2021

O navio negreiro

Ao comentar seus primeiros contatos com a poesia livresca, Caetano Veloso escreve que "Sabia dos heterônimos [de Fernando Pessoa] e de algum folclore sobre sua vida, e juntava aqueles poemas ao repertório de poesia brasileira moderna (Vinicius, Drummond, Bandeira e Cecília, depois também Cabral) e isso era (com os negros de Castro Alves e os índios de Gonçalves Dias mais os ciganos de Lorca) toda a poesia que eu conhecia" (Veloso, 1997, p. 339). Quero destacar aqui a relação com seu conterrâneo: Antônio de Castro Alves (1847-1871), começando pelo famoso poema "O navio negreiro" (escrito em 1868), que teve trechos oralizados por Caetano no disco Livro (1997).
Da primeira das seis partes do poema, Caetano oraliza apenas parte do primeiro verso "Stamos em pleno mar", desprezando todo o excesso romântico castroalvino e focando na tragédia: os "desgraçados", conforme diz o texto, transportados no porão do navio negreiro. Mas é na primeira parte do poema que o eu poemático - "deixai que eu beba / Esta selvagem, livre poesia..." - pede o auxílio das asas do Albatroz, para assim poder planar sobre o navio, ver e cantar o horror: "Que cena infame e vil!... Meu Deus! meu Deus! que horror", diz no final da terceira parte que, assim como a segunda, não tem nenhum verso oralizado por Caetano. Desse modo, ficamos sabendo que, diferentemente da Preta Susana, do romance Úrsula, publicado por Maria Firmina dos Reis em 1859, o eu poemático castroalvino não vive em si o horror do porão. Por sua vez, o texto da canção começa na quarta parte do poema: "Era um sonho dantesco...".  
Para Flávio Kothe, "no cânone, ressoam as trombetas da vitória, não da luta dos oprimidos" (Kothe, 2000, p. 275); e "a literatura de Castro Alves faz parte de um processo de neutralização de qualquer revolta e cobrança dos negros" (Kothe, 2000, p. 301). Canônico, patriótico e onipresente na maioria dos livros didáticos, o poema tem recebido críticas tanto pelo seu anacronismo, já que aquilo que o poema roga (o fim do tráfico de pessoas) fora promulgado na Lei Eusébio de Queirós, em 4 de setembro de 1850, embora, na prática, a lei não tenha abolido o tráfico; quanto pela despotencialização do poema que inspirou Castro Alves, a saber: "Das Sclavenschiff", do alemão Heinrich Heine. Para o professor Flávio Kothe, "Castro Alves faz a sua fama básica com um poema que não é dele" (Kothe, 2000, p. 277). Castro Alves pode ter feito o seu poema a partir da tradução francesa de Gérard de Nerval, de 1854: "Le négrier". "A epígrafe que Castro Alves coloca em seu livro Os escravos provém de Heine e está em francês" (Kothe, 2000, p. 279).
Se "no navio negreiro, a única escrita é do livro de contas, que se refere ao valor da troca dos escravos" (Glissant, 2005, p. 17), a propagada intenção castroalvina de "humanizar" os escravizados não se efetiva, já que esses não têm voz no poema e são apresentados sempre a partir da ideologia cristã disseminada no espírito brasileiro do século XIX. Por isso também, é o messianismo romântico, promotor do controverso "levantai-vos heróis do novo mundo", a exigir da vítima a solução para o problema, que Caetano rasura ao inserir na oralização do poema um trecho de um canto de capoeira entoado em coro, formado por Nara Gil, Paula Morelenbaum e Belô Veloso.
Assim, ao "Senhor Deus" e às "preces [que] ressoam", Caetano insere o que de fato importa: o canto do escravizado de África. Se no poema a dança é imposta pelo chicote, na canção, a capoeira - que pergunta e responde "Que navio é esse que chegou agora? / É o navio negreiro com escravos de Angola" - é signo de luta, arte, resistência, ancestralidade. Essa é a rasura revisionista que Caetano faz no poema castroalvino. O arranjo para percussão de Carlinhos Brown também imprime protagonismo àquilo que fora silenciado no poema: a cultura de matriz africana. E Caetano sempre esteve interessado nessa biopolifonia que se espraiou na cultura brasileira.
É preciso notar que a vocoperformance de Caetano tem base no rap. 1997 é o ano também de Sobrevivendo no inferno, disco dos Racionais MC's que redefiniu para sempre o modo de fazer canção no Brasil, pois ritmo e poesia se juntaram para cantar o povo de um lugar até então excluído da indústria fonográfica. Essa informação é importante para pensar o contexto do poema de Castro Alves e sua consequente canonização literária, bem como a revisão crítica desse cânone feita por Caetano num contexto de emergência de vozes historicamente subalternizadas na formação de nossa literatura. Se o texto de Heine é para ser lido em silêncio, o de Castro Alves, tendo a forma da ode, pede a leitura em voz alta. Eis a importância da canção - rap - caetânica: vocaliza o que já era para a voz, mas subverte o lugar de quem fala por trás do texto.
É o apagamento do sujeito escravizado que Caetano ensaia contrariar ao evocar e inserir no corpo do texto castroalvino versos cantados de capoeira. O que o cânone literário apagou, a canção acende. Se "a literatura tem uma dívida moral com o sofrimento no país que ela nunca há de conseguir resgatar" (Kothe, 2000, p. 274), Caetano Veloso reforça sua fé na canção popular, na gaia ciência, no domínio público dos versos do canto de capoeira: a voz do poema de Castro Alves deixa de ser individual para se tornar coletiva no disco.
Castro Alves prefere apelar para Deus, para a Musa (que no disco é dramatizada pela cantora Maria Bethânia), para o Mar. Primeira invocação: "Senhor Deus dos desgraçados!"; segunda invocação: "Dize-o tu, severa Musa"; e terceira invocação: "Ó mar, por que não apagas, / Co'a esponja de tuas vagas / Do teu manto este borrão?". Essa trindade é recolhida na sexta parte do poema: "Meu Deus! meu Deus!"; "Silêncio!... Musa!"; e "O trilho que Colombo abriu na vaga".
Observe-se que a aliteração do verso castralvino "que a brisa do Brasil beija e balança" serve de eco para o final da faixa do disco de Caetano, como que reafirmando a manutenção das práticas do século XIX no final do século XX. Não à toa "Todo camburão tem um pouco de navio negreiro", cantara O Rappa em 1994.
O disco Livro não foi a primeira vez que Caetano Veloso tratou a presença de Castro Alves em seu imaginário de cidadão e artista. Em texto para o Pasquim, de 02 a 09/04/1970, ele escreve: "na Praça Castro Alves o mar está acima do nível da mão do poeta e não há geografia que explique que descreva que estude o azul é do povo como o vermelho e o amarelo" (1977, p. 61); e "o Teatro Castro Alves é do corvo como o parto é dos com dor" (1977, p. 62). Essa última citação refere-se ao lugar do último show que Caetano e Gilberto Gil fizeram antes do exílio forçado pela ditadura civil-militar. O áudio do show ao vivo está registrado no disco Barra 69 (lançado em 1972). Já a primeira citação, a praça como lugar de convergência do carnaval baiano, ressurgiria anos mais tarde, na canção "Aquele frevo axé" (1999): "Meu amor / Ando na praça vazia e espero o sol se pôr / Vejo o clarão se extinguir / Por trás da mão do poeta".
Antes, o poema castroalvino "O povo ao poder" também ressurge revisado por Caetano, que parodia atualizando os versos em "Um frevo novo" (1972), pois o céu não é mais do condor, ave símbolo do movimento romântico do qual Castro Alves é ícone: "A praça Castro Alves é do povo / Como o céu é do avião / Um frevo novo, um frevo, um frevo novo / Todo mundo na praça e muita gente sem graça no salão", canta o tropicalista Caetano, valorizando a força da rua, espaço de disputas narrativas; valorizando o carnaval.
"Nossa dor, meu amor, é que balança nossa dor, o chão da praça", diz o verso de "Chão da praça", de Fausto Nilo e Moraes Moreira (1978), cantado por Caetano Veloso em Cê ao vivo (2007). "Dia 13 de maio em Santo Amaro / Na Praça do Mercado / Os pretos celebravam / (Talvez hoje inda o façam) / O fim da escravidão", canta em "13 de maio" (Noites do Norte, 2000). A praça é o lugar da voz caetânica. Voltarei a essas outras presenças de Castro Alves na obra caetânica noutro momento.
Importante destacar ainda que o final de "O navio negreiro" - notadamente o verso "Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!" - oferece o mote para "O herói" (, 2006): "nasci num lugar que virou favela / cresci num lugar que já era / mas cresci a vera / fiquei gigante, valente, inteligente / por um triz não sou bandido / sempre quis tudo o que desmente esse país / encardido". Esses versos parecem reafirmar a "fatalidade atroz", o destino dado aqueles que vieram para cá escravizados, mas que, "por um triz", cumpre outra estrela, subverte a fatalidade: "descobri cedo que o caminho / não era subir num pódio mundial / e virar um rico olímpico e sozinho / mas fomentar aqui o ódio racial / a separação nítida entre as raças / um olho na bíblia, outro na pistola / encher os corações e encher as praças / com meu guevara e minha coca-cola".
Quem fala em "O herói" é uma voz em primeira pessoa - nasci, cresci, descobri. Voz que depreende-se de uma tomada de consciência do sujeito cancional, voz que rejeita, e aqui a citação a Castro Alves é direta, ser "a brisa que o Brasil beija e balança". Voz que canta: "já fui mulato, eu sou uma legião de ex-mulatos / quero ser negro 100% americano / sul-africano, tudo menos o santo / que a brisa do Brasil beija e balança".
Essa aparente recusa à mestiçagem pode estranhar à primeira audição, já que o pensamento mestiço é marca e defesa recorrente na obra de Caetano Veloso, mas ela surge aqui mais como diagnóstico de um novo tratamento dado às questões étnico-raciais no país. Ele mesmo já cantara em "Ele me deu um beijo na boca" (Cores, nomes, 1982): "Mas eu sou preto, meu nego / E sei que isso não nega e até ativa o velho ritmo mulato". Mantêm-se a lucidez e a utopia tropicalista, a lírica e a participação, a subjetividade e o engajamento. E Caetano Veloso esboça essas reflexões promovendo a revisão crítica do canônico, a partir do conterrâneo Castro Alves.
A poesia retórica, repleta de hipérboles e antíteses, embriaguez verbal, força da "inspiração" do gênio, "improvisos" que forçam à leitura em voz alta do texto castroalvino, serve para Caetano colocar em prática a lição de Maiakóvski: "tirando os monumentos do pedestal, devastando-os e virando, nós mostramos aos leitores os Grandes por um lado completamente desconhecido e não estudado" (1984, p. 167).

CANDIDO, Antonio. “O Direito à Literatura” in: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004.
GLISSANT, Édouard. Poétique de la Relation. Poétique III. Paris: Gallimard, 2005.
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Enilce do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013.
HEINE, Heinrich. Heine, hein? Poeta dos contrários. Trad. André Vallias. São Paulo: Perspectiva: Goethe-Institut, 2011.
KOTHE, Flávio R. O cânone imperial. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000.
MAIAKÓVSKI, Vladimir. Como fazer versos. In: A poética de Maiakóvski. Org. e Trad. de Boris Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 1984.
VELOSO, Caetano. Alegria, alegria. Uma caetanave organizada por Waly Salomão. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, 1977.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.