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29 fevereiro 2020

Sereia


Desde que Ulisses narrou o famoso canto das sereias na Odisseia, esses seres cantores ocupam um espaço importante no conhecimento popular, nas artes e no pensamento teórico. Sendo a musa a fonte da mensagem poética (por guardar o relato absoluto da história a ser transmitido apenas ao poeta) e a sereia a portadora do canto audível aos ouvidos humanos comuns, caberia perguntar qual o destino das Sereias num mundo videocêntrico? Pergunta que se desdobra noutra: qual o lugar do poeta (mímese das Sereias) hoje?
Em O livro dos seres imaginários Jorge Luiz Borges anotou que: “Ao longo do tempo, as sereias mudam de forma. Seu primeiro historiador, o rapsodo do décimo segundo livro da Odisseia, não nos diz como eram; para Ovídio, são aves de plumagem avermelhada e rosto de virgem; para Apolônio de Rodes, da metade do corpo para cima são mulheres e, para baixo, aves marinhas; para o mestre Tirso de Molina (e para a heráldica), 'metade mulheres, metade peixes'. Não menos discutível é sua categoria; o dicionário clássico de Lemprière entende que são ninfas, o de Quicherat que são monstros e o de Grimal que são demônios. Moram numa ponte ilha do poente, perto da ilha de Circe, mas o cadáver de uma delas, Partênope, foi encontrado em Campânia, e deu seu nome à famosa cidade que agora se chama Nápoles, e o geógrafo Estrabão viu sua tumba e presenciou os jogos ginásticos que periodicamente eram celebrados para honrar sua memória” (BORGES, 1981, p. 145).
Os mitos aquáticos acompanham nossa história universal desde sempre. E têm no feminino uma genealogia repleta de significados em torno da fecundidade. Filha de Gaia e Urano, a titânide Tétis é a mais antiga representante da potência feminina das águas. Do hierogamo com seu irmão Oceano nasceram três mil rios e as Oceânidas, ninfas dos oceanos e mares. Tétis e Oceano constituíram, portanto, a parelha cósmica – a união de Yin com Yang – e representam a origem da manifestação visível da vida: a Fonte Divina. Para Homero, os deuses descendiam desse casal arquetípico. Tétis é representada pelas áreas mais profundas do mar, das fontes, dos lagos e das lagoas. Essas e outras arcaicas deusas-mães simbolizam o logos feminino.
Da mesma forma que Nanã, a orixá iorubá que forneceu a lama para a modelagem do ser humano, Tétis promove a manifestação imanente do Deus transcendente. Encarregado de fazer o mundo e o homem, Oxalá é socorrido por Nanã Burucu, que oferece a ele uma porção de lama do fundo da lagoa onde vivia.  Nanã é a lama sob as águas. Moldado por Oxalá, a criatura caminhou após o sopro de Olorum. Morrer é retornar à natureza de Nanã.
Na tradição do mito, o canto das sereias afirma que alguém está cantando e sendo cantado. "É um canto que fala dele mesmo. As Sereias dizem uma só coisa: que estão cantando!", escreve Todorov (2003, p.85). A Sereia nos fornece verbo, melodia e voz, restituindo a memória do útero materno (Odoiá, Iemanjá!). O canto corresponde àquilo que queremos e precisamos ouvir. Por situar o indivíduo no mundo, o canto revela a eficácia da arte do poeta. Como resistir a tamanha força de atração? Não é à toa que as sereias tenham sido domesticadas. Elas perderam a palavra. O aspecto narrativo foi eliminado. Do mito dos pássaros narradores ao confinamento na fábula e na lenda da mortífera beleza da mulher-peixe, restou-nos o grito de alerta das sirenes. O rabo de peixe e a beleza física surgem na transformação do mito em lenda na Idade Média. Criaturas híbridas, para o Cristianismo, elas significavam também a alma dividida entre os dois mundos e o mal na sua ambiguidade: sedução e pecado.
A sereia passa a ser sinônimo de mulher muito bonita, encantadora e fatal. Para Adriana Cavarero: “A mudança de morada é crucial. A descida para as águas, isto é, a metamorfose pisciforme é acompanhada pela sua transformação em mulheres belíssimas. Tal processo corresponde, muito significativamente, à afirmação de um dos modelos mais estereotipados do gênero feminino. Trata-se do padrão segundo o qual, em sua função erótica de sedutora, a mulher surge antes de tudo como corpo e como voz inarticulada” (CAVARERO, 2011, p. 132).
A autora de Vozes plurais destaca que "exaltada por uma voz que é pura voz, a sua corporalidade passa a dominar uma cena em que nenhuma forma de logos chega a perturbar o estereótipo do feminino" (CAVARERO, 2011, p. 133). Antes monstros barbudos, cujo poder de sedução estava no canto (logos poético), agora, em um mundo videocêntrico, as sereias mudas parecem seduzir antes pela beleza física. Segundo Cavarero, "nenhum pintor soube olhar para o destino milenar da sereia mais que Magritte" (p. 134), com o quadro The Collective Invention (1934) em que representa a sereia que não canta. "Se o monstro é classicamente um híbrido e se para desfrutá-lo é preciso renunciar a uma parte, que se renuncie ao rosto" (idem). Amparado por uma filosofia surda, para a qual a palavra escrita é definitiva, este gesto reforça a mudez do logos. "A sua boca de peixe é muda. Não respira sequer: é um peixe voluptuoso, fora da água, agonizante" (ibidem). E completa: “Serve apenas à excitação sexual do necrófilo. Acima da cintura é um peixe, abaixo é uma mulher (...) a história do imaginário que a fez bonita e lhe deu um aspecto sedutor, mesmo não ousando declará-lo, queria exatamente isso: um corpo de mulher a ser possuído, um corpo feminino para desfrute do homem, que nenhuma parte representa melhor do que o triângulo escuro entre as pernas” (CAVARERO, 2011, p. 134).
Parece-me ser esta eliminação da parte animal (logo, vocal) o que trata o poema "Sereia", de Ana Martins Marques. "Melhor é tua metade / animal // a parte humana sendo humana / sempre mente // só mesmo um peixe pode ser / contente", diz o poema. Ao longo de nossa história, calar as sereias implicou no emudecimento das mulheres, na manutenção do silêncio da culpada pela queda do homem. Relacionadas à feitiçaria, as mulheres sempre ameaçaram a razão masculina. O poema de Marques quer revisão e reparação histórica. "De nada te serviriam / joelhos ou pés // o que és é também / o que não és // nada / é o que fazes bem // metade do que sou / não sou também", escreve mais adiante. Marques dialoga com "Traduzir-se uma parte / na outra parte / — que é uma questão / de vida ou morte — / será arte?", versos de Ferreira Gullar no poema "Traduzir-se".
Note-se que no livro de Ana o poema "Sereia" está entre dois poemas bastante significativos para a compreensão de certa ontologia emudecida do sujeito: "Centauro" ("Como um velho centauro / cuja parte humana / sobrevivesse à parte animal / temos próteses, extensões / enfeites, móveis / que nos sobrevivem"; e "Ícaro" ("Quando Ícaro / caiu / no mar / a sereia que / primeiro / o encontrou / amou nele / o pássaro / ele amou nela / o peixe"). São "palavras que não usamos / planos que já não temos" o que interessa à poética de Ana.
Borges anota que "o centauro é a criatura mais harmoniosa da zoologia fantástica" (1985, p. 31). E que "no quinto livro de seu poema, Lucrécio afirma a impossibilidade do centauro, porque a espécie equina alcança sua maturidade antes que a humana e, aos três, o centauro seria um cavalo adulto e uma criança balbuciante" (1985, p. 33). Não é exatamente esta maturidade animal anterior à humana, o que, tendo sido silenciado na Sereia, canta Ana? A revocalização de um logos pré-língua, o que a sereia busca em Ícaro: asas de pássaros, mesmo falsas. Asas não domesticadas que fazem parte do ser poético, daquilo que o leitor busca (ainda busca?): "Os restos de suas asas desfeitas / foram dar na praia / entre embalagens / de plástico preservativos / garrafas vazias latas / de cerveja", diz o poema "Ícaro"; "a parte humana sendo humana / sempre mente // só mesmo um peixe pode ser / contente", diz o poema "Sereia".
Centauro, Sereia e Ícaro formam a tríade mítica - semelhanças poéticas - de O livro das semelhanças de Ana Martins Marques (2015). No texto "Mistérios e encantos da canção", Monclair Valverde escreve que: “Enquanto forma musical e formato midiático, a canção não se restringe ao feliz casamento entre palavra e música: a voz, pela singularidade de seu timbre, torna presente o corpo e o desempenho de alguém real; a melodia, a seu modo e sem dizer nada, conta uma história envolvente, quando não arrebatadora; o arranjo e a instrumentação datam e localizam o acontecimento que se canta, conferindo concretude e familiaridade à ficção; as palavras, enfim, formam o elo simbólico de uma comunidade de falantes que são anônimos e se desconhecem, mas se reconhece, enquanto falantes. Cada um desses aspectos contribui para envolver e aproximar misteriosamente os ouvintes, através da mediação proporcionada pela performance do cantor, mas o encanto das canções resulta da simbiose entre a voz, o gesto, a melodia, o acompanhamento e as palavras, que é viabilizada pela estrutura tonal de uma narrativa musical compacta" (VALVERDE, 2008, p. 272-273).
É esta presença do corpo todo que o poema "Sereia" reivindica. Corpo-todo possível no carnaval. Pelo menos esta é a compreensão que Matheus Brant propõe ao cantar o poema de Ana ao ritmo de uma (quase) marchinha no disco Assume que gosta (2016). Quase marchinha porque o andamento é pouco eufórico, como conviria. Matheus se dedica na melodia desacelerada e tencionando /ser/ e /fazer/, dança e reflexão, pagode e indie. Ao ouvinte fica a sensação de duas canções sobrepostas.
Ao convidar Juliana Perdigão para dividir os vocais da canção, Brant adensa esse investimento no caráter híbrido do ser cantado: a Sereia, que é dois em um, é o outro e é si. Semelhante ao centauro. Mas, no caso da Sereia, um ser híbrido "com sal", marinho. As duas vozes dão conta de (re)contar o mito. Assumir o que gosta move Ana, move Brant e Juliana. Criador do bloco de carnaval Me beija que eu sou pagodeiro (BH), Matheus foca na concentração de tensividade proposta nas palavras do poema. Ele canta, Perdigão canta. Os dois cantam juntos, sobrepondo vozes e evocando um sujeito cancional híbrido, erótico. Bem diferente do Ulisses "murcho para as coisas eróticas" em Filóstrato.
Se o carnaval é a fé na festa da inversão, conforme ensinou Bakhtin, suspenda-se a mentira ordinária do cotidiano dos dias civis e cante a verdade estética: assumir que gosta do canto sirênico - arcaico, primitivo, demasiado humano, fecundo, promessa de felicidade. O sujeito cancional de Brant restitui um tempo de conjunção entre ser e estar, ator e espectador, pensar e fazer, animal e humana, folia e medo: um nós que a figura da Sereia una e ambígua representa enquanto porta-voz do poético, do perigo do renascimento. O eu poético de Ana familiariza-se com a Sereia, através da voz-convite de Matheus e Juliana para o contato: "o elo simbólico de uma comunidade de falantes que são anônimos e se desconhecem, mas se reconhece, enquanto falantes", conforme lemos em Valverde. Brant e Perdigão cantando juntos parodiam o próprio ser da Sereia. A canção é um elogio à fórmula dois é um – "metade do que sou [ar?] / não sou também [mar?]".


***

Sereia
(Ana Martins Marques / Matheus Brant)

Sereia
centauro
com sal

melhor é tua metade
animal

a parte humana sendo humana
sempre mente

só mesmo um peixe pode ser
contente

de nada te serviriam
joelhos ou pés

o que és é também
o que não és

nada
é o que fazes bem

metade do que sou
não sou também