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30 setembro 2019

Gil-engendra em gil rouxinol / Gilberto misterioso


"Ouvi dizer já por duas vezes que o Guesa Errante será lido 50 anos depois; entristeci - decepção de quem escreve 50 anos antes", disse Sousândrade em 1877. De fato, só em 1964 com a primeira edição do livro Re visão de Sousândrade de Augusto e Haroldo de Campos a obra do poeta maranhense foi lida com merecida atenção crítica.
Joaquim de Sousa Andrade (1833-1902) é autor de Harpas Selvagens (1857), Guesa (1858-1888), Harpa de Ouro (1888/1889) e Novo Éden (1893). O Guesa é um poema narrativo dividido em 13 Cantos (12 cantos e 1 epílogo), dos quais permaneceram inacabados quatro cantos (VI, VII, XII e XIII); e tem estrutura épica (proposição, invocação, dedicatória e narração). No Canto I temos a invocação - "Eia, imaginação divina!" - e a proposição - "Infante adoração dobrando a crença", já que o livro é baseado nas narrativas sobre o culto solar dos indígenas muíscas da Colômbia: uma criança roubada dos pais é oferecida em sacrifício ao deus-sol quando completa 15 anos.
Sob a perspectiva do protagonista, podemos dizer que Sousândrade trabalha a temática do poeta como exilado, errante, a vagar. O estilo mesclado - vozes do poeta X vozes das personagens - condensa o tom épico/histórico: a descoberta das Américas, a civilização indígena, as guerras coloniais e suas consequências; e o tom individual: sentimentos e temores. O Guesa guarda e antecipa, portanto, o indígena ancestral – anti-herói, o oposto do "bom selvagem" - do Macunaíma marioandradino.
"Eu sou qual este lírio, triste, esquivo, / Como esta brisa que nos are erra", diz o protagonista ainda nos Andes, de onde parte. E assim começa a jornada. A intertextualidade e o hibridismo, os neologismos e as metáforas vertiginosas dão conta do périplo e da errância, transitoriedades, exílios, de quem não tem lugar na floresta amazônica e na América do Sul Inca, lugares paradisíacos antes da colonização. Atravessar a natureza devastada marca o corpo do texto e a alma do protagonista.
Para Affonso Ávila (ler O poeta e a consciência crítica), Sousândrade foi "autor marginalizado, em decorrência ao mesmo tempo da desatualização crítica que lhe foi contemporânea e do espírito acomodatício de nossa história da literatura" (p.48). Ávila destaca "o comportamento do artista diante da realidade de que emergem seus temas, as implicações de ordem social e vivencial que condicionam a sua atitude criadora, a linguagem e seus desdobramentos nos estratos semântico, sintático e sonoro" (p. 50).
"O Guesa nada tendo do dramático, do lírico ou do épico, mas simplesmente da narrativa, adotei para ele o metro que menos canta, e como se até lhe fosse necessária, a monotonia dos sons de uma só corda; adotei o verso que mais separa-se dos esplendores de luz e de música, mas que pela severidade sua dá ao pensamento maior energia e concisão, deixando o poeta na plenitude intelectual - nessa harmonia interna da criação que experimentamos no meio do oceano e dos desertos, mais pelo sentimento que em nossa alma influem do que pelas formosas curvas do horizonte. Ao esplendoroso dos quadros quisera ele antepor o ideal da inteligência", escreveu Sousândrade na "Memorabilia" da edição norte-americana de o Guesa.
Daí a importância do livro dos irmãos Campos. Os autores realizam a interpretação dos aspectos macro e microestéticos da obra sousandradina, a fim de entender "o metro que menos canta" como uma deliberada antimusicalidade romântica. Contra a rima fácil, empenhado na "harmonia interna da criação que experimentamos no meio do oceano e dos desertos", Sousândrade faz dos efeitos melopaicos um gesto de "insurreição sonora". Para os autores, "a arte sonora sousandradina responde a um conceito aberto de musicalidade, que tanto pode incluir uma calculada alquimia de vogais e consoantes, num sentido de harmonização pré-simbolista , de 'poesia pura', como incorporar a dissonância e o contraste, o choque e a aspereza. É uma arte que não se volta apenas para o acorde, mas se deixa torturar até a ruptura ou a explosão pelo sentimento do desacorde" (p. 91).
Como restituir na voz, no canto o engenho dessa escrita experimental, inclusive no que se refere à tipografia e ao uso da página? Como ler em voz alta as onomatopeias, aliterações, sibilações, assonâncias, sinalefas criadas por Sousândrade no seu texto-montagem polilíngue? Instigado por Augusto de Campos, em 1972, Caetano Veloso gravou o verso "Gil-engendra em gil-rouxinol" da estrofe 72 do Canto X, mais conhecido como o episódio do "Inferno de Wall Street". "A estrofe 72 é uma das mais herméticas do episódio, trazendo em seu bojo aquele misterioso 'Gil-engendra em gil-rouxinol'. À falta de qualquer explicação plausível, tive a ideia de enviá-la a Caetano Veloso, então no exílio em Londres, e assim nasceu a bela canção "Gilberto misterioso", com a qual homenageou seu famoso companheiro musical no cd Araçá azul" (ler Poesia antipoesia antropofagia & cia, p. 221).
Araçá azul foi o disco mais devolvido pelos compradores no Brasil. A "insurreição sonora", "o metro que menos canta", "a plenitude intelectual" serão recebidos pelos ouvintes de canção popular mais como problemas técnicos de gravação e menos como pesquisa e estranhamento estético. "As experiências são com sons orgânicos (corporais, funcionais) tendendo para o inorgânico (a invenção do novo, o pensamento), num processo que o aproxima de Artaud e de Oswald, e que será melhor metabolizado em Joia, mas que aqui [em Araçá azul] tem um tom erótico e heroico, o sonar que penetra, som-mar = sexo", anota Luís Carlos de Morais Junior (ler Crisólogo, p. 102).
Se ao dar o título de "Gilberto misterioso" à quarta faixa do disco Caetano "desmonta" o mistério do Gil presente no poema de Sousândrade, ao mesmo tempo o cancionista investe na beleza do mistério que faz de Gilberto Gil o grande artista que é. A canção começa com o acorde ao violão (Sol maior) e uma voz em falsete passional estendendo à exaustão do limite do fôlego o /o/ de "sol". "Sol" que, lembremos, está no verso anterior ao verso cantando por Caetano: "Chuva e sol, / Gil-engendra em gil rouxinol". Assim, o "sol" aproveitado serve de enjambement no qual Caetano insere Gilberto na "linha evolutiva" da canção popular brasileira.
A voz que canta (solfeja) a palavra "sol" realiza um portamento até chegar à palavra/nota "ré", acompanhada por brusco ataque do acorde Ré com sétima e nona. Segue-se um arpejo e o retorno de Sol. Nessa variação da emissão do som /o/ podemos ouvir, inclusive o Om (ou Aum) mantra mais importante do hinduísmo. Feita esta afinação fonética e musical, Caetano passa a cantar o verso assim registrado no encarte "Gil em Gendra / Em Gil Rouxinol". A repetição do verso remete-nos à circularidade sonora mântrica: o som que engendra o som, autofagicamente: repetições da fricativa palatal sonora e da fricativa palatal surda. A busca do êxtase místico, os limites do sujeito são tateados (dedos e voz) entre uma nota e outra.
Na primeira parte da canção, o verso é cantado doze vezes, em seis partes. "Gil em Gendra / Em Gil Rouxinol / Gil em Gendra / Em Gil Rouxinol" tenciona blues e baião e essa harmonização tende a manter a dúvida, o mistério, sem expectativa de resolução. Há um breve silêncio. Na segunda parte há uma aceleração do ritmo, marcado pelo violão e percussão. O verso é cantado quatorze vezes numa performance vocal empenhado na maquinaria a vapor do engenho. Segue-se o mesmo cantar dobrado (e emparelhado) do verso. A voz e o violão voltam a ser "afinados". Entre um vibrato e um desafino são interpretados trechos de músicas, fragmentos (grunhidos) de palavras que não chegam a ser ditas, como na canção anterior "De conversa em conversa". É o aspecto orgânico do disco em cena. Começa o terceiro movimento. O piano arpeja o acorde Dó com sétima, o verso volta a ser cantado, mas o emparelhamento agora é "respondido" por assovios. Tudo caminha para a palavra final "Gil".
Fica evidente a tentativa de mimetizar o questionamento de Sousândrade sobre os limites do metro através do procedimento de colocar em xeque os sistemas temperado e tonal da música ocidental. O Gil-Rouxinol é a carnação disso. Se para Affonso Ávila, "Sousândrade chega a uma intuição realmente notável do problema da assimilação e redução de formas, tão atual e relevante para a nossa arte de país novo, ao concluir que, dentre os estilos estrangeiros que enumera, uns são repugnantes e outros, se não o são, modificam-se à natureza americana" (p. 54); em Caetano Veloso o sistema metalinguístico (texto e melodia) é experimentado e desestabilizado com o objetivo de cantar Gil: a força estabilizadora (sonoro vs surdo).
Lembremos: "Rouxinol" é canção de Gilberto Gil e Jorge Mautner. Diz a letra: "Joguei no céu o meu anzol / Pra pescar o sol / Mas tudo que eu pesquei / Foi um rouxinol". A rima "sol" e "rouxinol" parecem ser os emblemas que Caetano toma para si em "Gilberto misterioso". O trecho "Levei-o [o rouxinol] para casa / Tratei da sua asa / Ele ficou bom / Fez até um som / Ling, ling, leng / Ling, ling, leng, ling // Cantando um rock com um toque diferente / Dizendo que era um rock do oriente pra mim" também. Já que é a procura (o teste, o ensaio) do "toque diferente" o que move o engenho de Caetano; e de Gil.
Se a poesia verbivocovisual de Sousândrade investe na elaboração intelectual e linguística, a canção de Caetano Veloso forja a improvisação para elogiar o logos cantado pelo ser canoro: Gilberto Gil, digo, o rouxinol a "ave imortal" da "Ode to a Nightingale" de Keats (1819): metáfora dos poetas. Dito de outro modo, da impossibilidade da representação inventa-se, via fragmentos, multipluralismo idiomático, urros, balbucios, cacofonias e inversões, o sujeito americano na e pela linguagem. Autenticidade pessoal (montagem) e lucidez da criação artística (técnica de colagem) unem Sousândrade a Caetano Veloso. Gilberto Gil é o vértice deste triângulo amoroso da investigação de uma forma original da experiência física do mundo: ser é fazer.
"Tem a nação vaidosa, que enlevada / Dentre os espelhos cem outras nações, / De todas toma os gestos – e alienada / Perde o próprio equilíbrio das razões", anota Sousândrade no corpo do Guesa. Ora "rouxinol", ora "rouxínol" canta Caetano. O erro da prosódia é assumido como traço distintivo. Como vimos com Augusto de Campos, "a arte sonora sousandradina (...) é uma arte que não se volta apenas para o acorde, mas se deixa torturar até a ruptura ou a explosão pelo sentimento do desacorde".
O próprio Augusto de Campos oraliza o episódio do "Inferno de Wall Street" no disco de Cid Campos Música para espetáculos de dança (2015). O disco é dividido em duas partes. A primeira é esta de Augusto e foi realizada para o balé de Elianae Sofia Cavalcante (2012). A segunda chamada Profetas em movimento tem oralizações de o Guesa por Décio Pignatari, Arnaldo Antunes, Walter Silveira, José Mindlin, Lauro Moreira, Ricardo Araújo e Danilo Lôbo para coreografia de Soraia Silva (1988). Cid tem sido o responsável por compor e interpretar músicas ligadas à poesia experimental. Os discos Poesia é risco, Ouvindo Oswald, Emily são alguns exemplos de sua verve.
Augusto lê acompanhado de camadas sonoras sobrepostas - pós-utópicas - que mimetizam o tom bíblico-apocalítico montado no texto. E chega à estrofe "Por sobre o fraco a morte esvoaça... / Chicago em chama, em chama Boston, / De amor Hell-Gate é esta frol... / Que John Caracol, / Chuva e sol, / Gil-engendra em gil rouxinol... / Civilização... ham!... Court-hall!". Sobre o trecho, Augusto anota "inclino-me a acreditar que o vocábulo 'gil', que também aparece no composto 'gil-Jam', na estrofe 123, referido ao jornalista James Gordon Bennet, tem seu significado ligado à ideia de astúcia, esperteza, como consignam alguns raros dicionários" (ler Poesia antipoesia antropofagia & cia, p. 223).
"Brasil, é braseiro de rosas", escreveu Sousândrade. "Um disco para entendidos", escreveu Caetano Veloso no encarte do disco Araçá Azul. "Entendido" como gíria para homossexual; "entendido" como quem sabe. E quem há de entender sem se desentender na trama sousandradina? "Ir, ir indo", "Eu vou, por que não?", "Destino eu faço não peço / Tenho direito ao avesso" são versos de Caetano que afirmam a errância do Guesa de Sousândrade. Há um cruzamento das dramatis personae, "a de herói romântico (...) e a do herói indígena", segundo Luiza Lobo (ler Épica e modernidade em Sousândrade, p. 12). Por sua vez, há a justaposição da voz do romântico exilado - "Viola, meu bem" - e da voz apocalíptica que diagostica a degradação - "Épico". É nessa encruzilhada, nestes estados de amor à linguagem, de valorização do mistério americano, que Sousândrade (Guesa) e Caetano (Araçá azul) se encontram e nos convidam à reflexão da nação.

***

72 (W. CHILDS, A.M. elegiando sobre o filho de SARAH STEVENS:)

— Por sobre o fraco a morte esvoaça...
Chicago em chama, em chama Boston,
De amor Hell-Gate é esta frol...
Que John Caracol,
Chuva e sol,
Gil-engendra em gil rouxinol...
Civilização... ham!... Court-hall!

15 setembro 2019

O meu desejo


No livro Um teto todo seu Virginia Woolf chamou atenção para a urgência de compreender a mudança - "de maior importância do que as Cruzadas ou as Guerras das Rosas" - promovida pela emergência da mulher que escreve (da escrita de autoria feminina) no século XVIII inglês. 
No nosso caso, o que pensar do exemplo da maranhense Maria Firmina dos Reis (1825–1917)? Escritora, negra, com o livro Úrsula (1859) Maria antecedeu o Navio Negreiro (1869) de Castro Alves na discussão antiescravista no Brasil. Além de tematizar a opressão imposta às mulheres. Mas, diferentemente do poeta baiano, só recentemente a professora, romancista, poeta, cronista e jornalista Maria Firmina dos Reis tem recebido o merecido destaque da crítica e das editoras. Reconhecimento advindo muito por causa do trabalho de pesquisadores como os do Grupo Literafro (UFMG), entre outros. No centenário de sua morte, em 2017, Maria foi homenageada no Mulherio das Letras, movimento liderado por Maria Valéria Rezende e Susana Ventura e que revisita e valoriza escritoras silenciadas pela historiografia literária.
Autodidata, Maria Firmina lia e escrevia em Francês, recebeu o título de mestra régia e fundou a primeira escola mista e gratuita do país, causando desconforto na sociedade de Maçarico (MA). A escola foi fechada alguns anos depois e isso dá a proporção do contexto da vida e da obra de Maria Firmina, autora que ousou apresentar em pleno Romantismo brasileiro um "ecrã para a apreensão do sujeito, da sua vida e das condições de produção" (ler Crítica da razão negra de Achille Mbembe). E fez isso utilizando-se das regras de composição nacionalistas da época.
Tomemos como exemplos, além do já citado Úrsula, o conto "A escrava" (1887), o conto indianista "Gupeva" (1861) e o livro de poemas Cantos à beira-mar (1871). Neste livro - publicado pela Typografia do Paiz - Maria Firmina dedica à memória da mãe cinquenta e seis poesias. A praia é o tempo-espaço de meditação e melancolia, alegrias e cismas. "Aqui minh'alma expande-se, e de amor / Eu sinto transportado o peito meu; / Aqui murmura o vento apaixonado, / Ali sobre uma rocha o mar gemeu. // (...) // Quanta doce poesia, que me inspira / O mago encanto destas praias nuas! / Esta brisa, que afaga os meus cabelos, / Semelha o acento dessas frases tuas", diz em "Uma tarde no Cuman". E convida "Vem comigo gozar destas delícias, / Deste amor, que me inspira poesia; / Vem provar-me a ternura de tu'alma, / Ao som desta poética harmonia".
Assim como em Castro Alves ("Como Agar sofrendo tanto, / Que nem o leite de pranto / Têm que dar para Ismael"), Maria Firmina dos Reis usa o conhecimento bíblico para sensibilizar: "Canta o Cordeiro, que gemeu na Cruz, / Raio infinito de esplendente luz", diz no seu poema "O meu desejo". Afinal, como dizer-se cristão, reconhecer o poder do nazareno torturado e morto e mesmo assim fechar os olhos para o horror da escravidão?
Por ocasião do Mulherio das Letras, a cancionista Socorro Lira musicou poemas de Maria Firmina dos Reis. O projeto se desenvolveu em disco com o mesmo nome do livro Cantos à beira-mar (2019) e tem direção e arranjos de Jorge Ribas. Dentre os dez poemas cantados, destaco "O meu desejo". O poema é composto de nove partes: oito sextilhas e uma nona parte composta de uma quadra (em que o eu-lírico se apresenta) mais um terceto (em que o desejo é pronunciado). 
Depois de declamar (falar, oralizar) todo "O meu desejo" Socorro Lira canta o nono trecho: "Eu não te ordeno, te peço, / Não é querer, é desejo; / São estes meus votos - sim. / Nem outra cousa eu almejo. // E que mais posso eu querer? / Ver-te Camões, Dante ou Milton, / Ver-te poeta - e morrer". Para o canto, Socorro altera os versos "são estes sim os meus votos", "te ver Camões, Dante ou Milton" e "te ver poeta - e morrer". Estas alterações em direção à prosódia cotidiana da língua falada aproximam o desejo do sujeito cancional do ouvinte. "Tudo que a letra desconecta da enunciação, a melodia se encarrega de reconectar", anota o professor Luiz Tatit (ler "Ilusão enunciativa da canção").
Musicalmente, Socorro Lira investe "do Espanhol as cantilenas / requebradas de langor" sugeridas pelo Navio Negreiro de Castro Alves; e no ritmo das redondilhas do texto de Maria. Texto que, por isso, pelo uso das regras métricas, se insere no uso da tradição assentada por Camões, Dante, Milton. Há uma nostalgia da palavra encarnada em cada alongamento da última sílaba poética cantada por Socorro, dando conta de figurativizar o sujeito cancional à espera de ver o desejo - dito na letra - realizado.
A primeira estrofe do poema releva a corda merencória utilizada como mote sonoro por Socorro Lira: "Na hora em que vibrou a mais sensível / Corda de tu'alma - a da saudade, / Deus mandou-te, poeta, um alaúde, / E disse: Canta amor na soledade. / Escuta a voz do céu, - eia, cantor, / Desfere um canto de infinito amor". O poeta é o alaúde que vibra a alma da saudade, a voz do céu.
Ao dobrar a própria voz no canto do verso "e que mais posso eu querer?", Socorro Lira tanto une o desejo de Maria Firmina ao seu, quanto reconhece Maria Firmina como poeta, por vê-la Camões, Dante, Milton. Ou seja, no canto de Socorro Lira, Maria Firmina dos Reis ativa a voz aédica que - transgredindo a tradição e o império da escrita - canta sua escrevivência, reconstrói a imagem de si. Por exemplo, em Úrsula, sem fabular a mulher negra escravizada, Maria Firmina problematiza as regras românticas de representação e autorrepresentação.
Vale a pena destacar o testemunho de Mãe Susana no livro: "Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes de nossas matas, que se levam para recreios dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos".
"No centro da épica, existe uma questão de voz. Homero não é simplesmente um contador de histórias. Recebendo-as da Musa, ele as coloca na voz humana e no canto", escreve Adriana Cavarero (ler Vozes plurais). Não é isso que Maria Firmina engendra ao fazer do epos de sua ancestralidade matéria para restituir a phoné (a voz de Mãe Susana) desta mesma ancestralidade (agora cantada na nação em formação)? O relato de Mãe Susana diz aquilo que o albatroz de Castro Alves não conseguiu dizer, por não ter estado nos porões. "Canta, poeta, a liberdade, - canta. / Que fora o mundo sem fanal tão grato... / Anjo baixado da celeste altura, / Que espanca as trevas deste mundo ingrato. / Oh! sim, poeta, liberdade, e glória / Toma por timbre, e viverás na história", diz o eu-lírico de "O meu desejo".
Aliás, tendo sido o livro Canto à beira-mar lançado após o Navio negreiro de Castro Alves, poderíamos pensar que Maria Firmina estaria exaltando os versos do poeta baiano, mas a dedicatória "a um jovem poeta guimaraense" não deixa dúvida sobre o endereçamento do eu-lírico: "E a liberdade, - oh! poeta, - canta, / Que fora o mundo a continuar nas trevas? / Sem ela as letras não teriam vida, / menos seriam que no chão as relvas: / Toma por timbre liberdade, e glória, / Teu nome um dia viverá na história".
Os versos acima registram a esperança que reverberia no "Hino à liberdade dos escravos", composição com letra e música de Maria Firmina dos Reis de 1888 - "Salve o sol que raiou hoje, / difundindo a liberdade, // Quebrou-se enfim a cadeia / da nefasta escravidão! / Aqueles que antes oprimias, / Hoje terás como irmão". Infelizmente, a história mostrou que o desejo - movido pelo contexto da Lei Imperial n.º 3.353, sancionada em 13 de maio de 1888 - não se realizou. O silenciamento perpetrado sobre a obra de Maria Firmina e de tantos intelectuais e artistas negros no Brasil é exemplo disso.
Cantar um poema é ler, interpretar, reanimar o logos da voz do poema. Voz que guarda o tempo histórico: a memória. De que modo cancionistas dos séculos XX/XXI estão lendo poemas de séculos anteriores e repensando o cânone literário? Neste caso, ao cantar os versos de Maria Firmina dos Reis, Socorro Lira ressignifica e ativa o desejo. Isto é, toma por timbre a liberdade e recoloca o nome Maria na história.


***

O meu desejo
(Maria Firmina dos Reis / Socorro Lira)

                         A um jovem poeta guimaraense

Na hora em que vibrou a mais sensível
Corda de tu'alma - a da saudade,
Deus mandou-te, poeta, um alaúde,
E disse: Canta amor na soledade.
Escuta a voz do céu, - eia, cantor,
Desfere um canto de infinito amor.

Canta os extremos duma mãe querida,
Que te idolatra, que te adora tanto!
Canta das meigas, das gentis irmãs,
O ledo riso de celeste encanto;
E ao velho pai, que tanto amor te deu,
Grato oferece-lhe o alaúde teu.

E a liberdade, - oh! poeta, - canta,
Que fora o mundo a continuar nas trevas?
Sem ela as letras não teriam vida,
menos seriam que no chão as relvas:
Toma por timbre liberdade, e glória,
Teu nome um dia viverá na história.

Canta, poeta, no alaúde teu,
Ternos suspiros da chorosa amante;
Canta teu berço de saudade infinda,
Funda lembrança de quem está distante:
Afina as cordas de gentis primores,
Dá-nos teus cantos trescalando odores.

Canta do exílio com melífluo acento,
Como Davi a recordar saudade;
Embora ao riso se misture o pranto;
Embora gemas em cruel soidade...
Canta, poeta, - teu cantar assim,
Há de ser belo enlevador enfim.

Nos teus harpejos juvenil poeta,
Canta as grandezas que se encerram em Deus,
Do sol o disco, - a merencória lua,
Mimosos astros a fulgir nos céus;
Canta o Cordeiro, que gemeu na Cruz,
Raio infinito de esplendente luz.

Canta, poeta, teu cantar singelo,
meigo, sereno com um riso d'anjos;
Canta a natura, a primavera, as flores,
Canta a mulher a semelhar arcanjos.
Que Deus envia à desolada terra,
Bálsamo santo, que em seu seio encerra.

Canta, poeta, a liberdade, - canta.
Que fora o mundo sem fanal tão grato...
Anjo baixado da celeste altura,
Que espanca as trevas deste mundo ingrato.
Oh! sim, poeta, liberdade, e glória
Toma por timbre, e viverás na história.

----------------

Eu não te ordeno, te peço,
Não é querer, é desejo;
São estes meus votos - sim.
Nem outra cousa eu almejo.

E que mais posso eu querer?
Ver-te Camões, Dante ou Milton,
Ver-te poeta - e morrer.