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28 janeiro 2024

Ninguém quis ver


Do primeiro - "moro a setenta quilômetros do mar" - ao derradeiro - "o rosto queimado de sol" - o livro NINGUÉM QUIS VER reúne versos, poemas, sombras, luminescências que justificam o título do livro. Bruna Mitrano escreve poemas em que saltam imagens tão inquietantes quanto óbvias, e, justamente por isso, ocultadas, postas à margem, convenientemente esquecidas. Bruna dá a dica: "só esquece do mar / quem mora perto do mar". Dialética, de contrastes, quiasmática, de fricção são algumas chaves de interpretação da poética de Bruna Mitrano. Poética em que o sol só aparece se desenhado no chão. E o que sempre chama atenção nessa poética são os cortes dos versos, cortes bruscos, violentos, que interditam qualquer lirismo comedido, bem comportado, facilitador. Para se quebrar os versos com a precisão e a eficácia de Bruna Mitrano é preciso projetar vozes líricas tão fraturas quanto: "disseram bruna você parece / que pode partir ao meio", lê-se o biografema no poema que dá título ao livro e abre a segunda das cinco partes que compõem o volume. No uso interno do nome da autora aparecem muitas outras filigranas do eu que "tem estômago pra lembrar / de ser menina". Enjambements "sem metáfora / ou outra figura de linguagem / que emprestasse beleza", os versos aqui são cortados para que "uma voz fraca / vinda do mais fundo / onde uma mulher pode ser" se projete olhando frontalmente quem lê: "eu tô brincando de verdade", lemos. Escrevo mulher porque há uma sabência que passa de avó para mãe para filha. Uma ciência aprendida, apreendida, curtida, sobrevivida: "ela disse que quando o estômago / ficava vazio por muito tempo / apertar ajudava a esquecer", anota a filha escritora. A fome cabe na "vala" do poema, Gullar? Quanto desdobrável a voz lírica de Bruna Mitrano é, Adélia? - pergunta-se quem lê NINGUÉM QUIS VER.

21 janeiro 2024

Das vanguardas à tropicália


Dentre os muitos livros que tratam da relação entre a Tropicália e as vanguardas europeias do começo do século XX, dentre eles, o incontornável "Convergências: poesia concreta e tropicalismo", de Lúcia Santaella, destaca-se DAS VANGUARDAS À TROPICÁLIA. Tamanho o rigor crítico. Nele, Guilherme de Azevedo Granato passa em revista as várias filigranas da "modernidade artística" até a "música popular". "A retomada pelo tropicalismo de processos construtivos que remetem às vanguardas históricas insere-se em um momento de recuperação do ideário vanguardista, concomitante com o cenário europeu e norte-americano", escreve Granato, para observar que "formulações como a performance e o happening surgiram como formas alternativas de fruição artística, almejando uma influência direta na vida prática por meio do estímulo sensorial e da desorganização da lógica cotidiana". No Brasil, com a censura e o controle pela ditadura militar, isso ganha conotações importantes, com usos singulares das experimentações artísticas. Urgia superar a separação entre arte e vida. E "o principal intento dos levantes vanguardistas foi o de atacar a arte enquanto instituição dentro da sociedade burguesa", lê-se em DAS VANGUARDAS À TROPICÁLIA. Insubmisso, o instante-já da performance e do happening não se deixa capturar, arquivar, reproduzir, dificultando a ação autoritária. Isso nos ajuda a entender porque muitos cancionistas deram prioridade aos discos de shows ao vivo. Microfones desligados, ruídos propositais, palavras alterações durante o canto marcam o período. Devorar as estruturas era um gesto ético e estético. O livro de Granato orienta como isso se realizou.

14 janeiro 2024

Assessora de encrenca


Em ASSESSORA DE ENCRENCA Gilda Mattoso conta como entrou e saiu de várias situações ao lado de nomes importantes da música brasileira. "Gilda Mattoso é uma superdotada para viver o melhor da vida e fazer com que assim também vivam os demais", escreve Pedro Almodóvar na contracapa. "Tudo com ela sempre teve o tom de camaradagem, onde o humor e as observações sutis predominavam", escreve Caetano Veloso na Apresentação. Em tom bastante coloquial, como uma boa conversa num dia de verão, o livro se divide em cinco grandes capítulos: Vinicius, Tom, Caetano, Outros famosos, Álbum de família. Cada capítulo guarda uma gama de enredos, causos da assessora que aprendeu a assessorar assessorando. O destacado bom humor de Gilda tornam leves, importantes e tocantes as situações mais complexas, as encrencas. E há as hilárias, como comer por enquanto os acarajés dedicados a Iansã na casa de Maria Bethânia; Pedro Almodóvar dizer "yo también", depois de Paula Lavigne responder "sou a mulher de Caetano Veloso" a um segurança em Londres. São muitos os famosos com quem Gilda trabalhou, ou, como deixa sugerido ao longo do livro, compartilhou a vida. E essa é a mensagem, ASSESSORA DE ENCRENCA conta uma vida de trabalho em que o afeto reina - a parceria profissional e a amizade andam juntas. Recheado de fotos, o livro rende boa leitura e boas risadas da assessora de imprensa, de encrenca de bom humor.

07 janeiro 2024

Anjo do bem gênio do mal


ANJO DO BEM GÊNIO DO MAL é a autobiografia de quem, não apenas esteve nos bastidores, mas foi elemento fundamental para que boa parte de nosso cancioneiro tropicalista e rebelde dos anos 1970 acontecesse. Natural de Itabuna, sul da Bahia, Paulinho Lima esteve junto com Gal Costa, Glauber Rocha e demais baianos que fizeram o sudeste rever o conceito "nordestino". Por exemplo, ele trabalhou no antológico show "Barra 69", que Gilberto Gil e Caetano Veloso fizeram na Bahia antes de saírem para o exílio em Londres, e no icônico "Gal (Fatal) a todo vapor", que segurou o vigor contestatório tropicalista durante a ausência dos compositores, em decorrência da ditadura militar. Aliás, pelo que conta, Paulinho foi fundamental para formatar a imagem de Gal Costa. ANJO DO BEM GÊNIO DO MAL conta as dificuldades técnicas, os improvisos, os dribles na censura, o trabalho de transpor os shows para os discos. Interessante ler a atuação de pessoas como Luciano Figueiredo, Oscar Ramos, Duda Machado nesse momento decisivo. Entre muitos autoelogios, destacam-se os comentários feitos sobre o projeto pessoal de gravar discos de literatura lidos por artistas famosos. Gregório de Matos, Drummond, Clarice, Augusto dos Anjos, entre outros, foram lidos por Paulo Autran, Aracy Balabanian, Othon Bastos e outros artistas de teatro, pessoas do convívio de Paulinho desde a juventude em Salvador e Rio de Janeiro. Coautor da radiofônica "Perigo" (cujo verso dá título ao livro ANJO DO BEM GÊNIO DO MAL),  sucesso na voz de Zizi Possi, entre amizades e desafetos, Paulinho transitou e agiu em boa parte do cânone da canção popular brasileira da segunda metade do século XX.  E suas memórias guardam boas percepções desse contexto histórico.