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30 setembro 2020

Padrão

Na noite de 15 de setembro de 1968, quando Caetano Veloso interrompeu a performance da sua canção “É proibido proibir” para responder as vaias do público do III Festival Internacional da Canção, da Rede Globo, transformou a apresentação num happening e a fala num dos discursos mais importantes contra a caretice. “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?”, começa. E grita, entre outras frases, “Hoje não tem Fernando Pessoa!”.
O fato é que no meio de “É proibido proibir”, acompanhado de Os mutantes, Caetano incluía versos do livro pessoano Mensagem (1934). Para Caetano: “o livro de Pessoa que me impressionara na época da faculdade por ser capaz – ao parecer constituir a fundação mesma da língua portuguesa ou sua justificação última – de dar vida digna a esse mito tão frequentemente ridicularizado (o termo “sebastianismo” virou sinônimo de impotência auto-iludida, um quase consensual depreciativo da crítica da cultura entre nós)” (VELOSO, 1997, p. 300). E completa: “O poema de Pessoa é, em si mesmo, uma joia do modernismo português – e uma obra-prima da poesia moderna em qualquer língua. Declamá-lo ali num programa de televisão, entre guitarras elétricas e slogans surrealistas emprestados aos estudantes franceses, era um desafio formal e também significava forçar uma visão implausível no ambiente” (p. 301).
Se naquela noite não teve Fernando Pessoa, no ano seguinte o cancionista lançava “Os argonautas” no disco Caetano Veloso (1969), canção cujo refrão repete o emblema “navegar é preciso, viver não é preciso”, que Pessoa (Bernardo Soares) anota pelo menos duas vezes no Livro do desassossego: no fragmento 125 – “Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver” (PESSOA, 2011, p. 146-147); e no fragmento 306 – “Ficamos, pois, cada um entregue a si-próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontramo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso” (PESSOA, 2011, p. 292-293).
O barco e o porto presentes no texto pessoano reaparecem no primeiro e último verso de cada uma das três estrofes da canção de Caetano. Mas a frase “navegar é preciso, viver não é preciso” vem de uma tradição mais antiga, diz-se do século I a.c., dita pelo general romano Cneu Pompeu Magno para intimidar e encorajar seus marinheiros: “Navigare necesse, vivere non est necesse”. No século XIV, o poeta italiano Petrarca assentou a expressão e Pessoa popularizou entre nós, ligando-a aos míticos argonautas, tripulantes da nau Argo, que foram até a Cólquida em busca do Velocino de ouro. Entre eles Jasão e Orfeu.
Por sua vez, Caetano interfere no cânone ao suprimir a ambiguidade do “preciso” final. “Navegar é preciso / Viver”, canta com acento do português de Portugal. O contexto de contracultura leva Caetano a incorporar antropofagicamente a tradição que Pessoa representa. Afinal, viver em tempos de sufoco, censura e repressão torna o viver impreciso. “O porto, não”, “o porto, nada”, “o porto, silêncio”. Note-se que Caetano Veloso é um exímio leitor de poesia, filosofia, ficção. As leituras do cancionista exercem forte repercussão nas suas canções. Ora de modo mais explícito, como quando canta poemas; ora através de citações, como é o caso.
Na canção “Língua” (Velô, 1984) Caetano canta as questões de identidade nacional que tanto interessam à sua poética: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões / Gosto de ser e de estar / E quero me dedicar a criar confusões de prosódia / E uma profusão de paródias / Que encurtem dores / E furtem cores como camaleões / Gosto do Pessoa na pessoa”; mais adiante diz “E deixe os Portugais morrerem à míngua”, talvez num diálogo intertextual com o fragmento 259 do Livro do desassossego: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. A minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse” (PESSOA, 2011, p. 258).
Ainda em “Língua” Caetano cita o verso pessoano “Minha pátria é minha língua” e interfere, devora, expande, reescreve: “A língua é minha pátria / E eu não tenho pátria, tenho mátria / E quero frátria”. O refrão é ápice da amálgama fratriarcal caetânica, pois, citando os versos de “Língua portuguesa”, soneto do parnasiano Olavo Bilac – aquele da “Última flor do Lácio, inculta e bela, / És, a um tempo, esplendor e sepultura” –, Caetano compreende a língua-esfinge: “Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó / O que quer / O que pode esta língua?”, pergunta. Se Camões e Pessoa rimam “mar”/”navegar”, Bilac rima “oceano largo”/”exílio amargo”, “em que Camões chorou”. Por sua vez, a língua-boneca-russa, a língua que é citações críticas, a língua caetânica rima enviesadamente “Camões”/”camaleões”, “míngua”/”língua”, atenta ao “falso inglês relax dos surfistas” do mar, do oceano que a língua continua sendo transcorrendo, transformando-se. Língua “(entre o mar e aquilo que o mar espelha) as palavras”, como ele escreveu na revista Navilouca (1974).
Diretor do icônico filme Meteorango Kid – O Herói Intergalático (1969), o cineasta André Luiz Oliveira diz que o interesse pela obra de Fernando Pessoa se aprofundou quando viu Caetano Veloso incluir os versos do bardo português no happening da canção “É proibido proibir” em 1968. Em 1986, André Luiz começou a musicar os poemas do livro Mensagem. Foram necessários três discos para dar conta dos 44 poemas do livro: 1986, com 12 poemas; 2005, 13 poemas; e 2015, com os 19 poemas restantes. Vários arranjadores e cantores envolvidos.
Caetano Veloso aparece no primeiro e no terceiro discos, cantando “Padrão” e “D. João Infante, de Portugal”, respectivamente. “Fernando Pessoa é a justificativa da existência da música portuguesa. É para isso que existe a língua portuguesa. Mensagem é o livro de Fernando Pessoa da minha preferência desde que eu conheci”, comenta Caetano no DVD que registrou os bastidores do projeto.
Em “Padrão” encontramos o de sempre – o mar, o navegar, “o porto sempre por achar”, a primeira pessoa de Pessoa e, o mais importante, o “Padrão”: a língua portuguesa cantada, escrita, reencantada: “A alma é divina e a obra é imperfeita. / Este padrão sinala ao vento e aos céus / Que, da obra ousada, é minha a parte feita: / O por fazer é só com Deus”.
Parece-me pertinente perceber ecos dos versos “Eu, Diogo Cão, navegador, deixei / Este padrão ao pé do areal moreno / E para diante naveguei” na voz dos sujeitos cancionais de “Tropicália” – “Eu organizo o movimento / Eu oriento o carnaval / Eu inauguro o monumento / No planalto central do país”; e de “Alegria alegria” – “Por entre fotos e nomes / Os olhos cheios de cores / O peito cheio de amores vãos / Eu vou / Por que não, por que não”. Em ambas, do disco Caetano Veloso (1968), o mesmo ímpeto inaugural, a mesma impermanência do Diogo Cão pessoano.
Ainda no livro Verdade tropical Caetano comenta que “com Mensagem eu me sentia em presença de algo mais profundo quanto a tratar com as palavras, por causa de cada sílaba, cada som, cada sugestão de ideia parecer estar ali como uma necessidade da existência mesma da língua portuguesa: como se aqueles poemas fossem fundadores da língua ou sua justificação final” (VELOSO, 1997, p. 339). É esse tom devoto e sem o acento que tenciona paródia, paráfrase e caricatura, presente nas interpretações de “Casa Portuguesa”, de Artur Fonseca, Reinaldo Ferreira e Vasco Matos Sequeira (Palco - corpo e alma, 1976); “Estranha forma de vida”, de Amália Rodrigues e Duarte Marceneiro (Totalmente demais, 1986); e “Coimbra”, de José Galhardo e Raul Ferrão (Omaggio a Federico e Giulietta, 1999), que Caetano Veloso escolhe para elogiar o padrão português. “Porque é do português, pai de amplos mares, / Querer, poder só isto: / O inteiro mar, ou a orla vã desfeita – / O todo, ou o seu nada”, canta também Caetano em “D. João, infante de Portugal”; assumindo o risco de estar à deriva.
Da nau Argo à Navilouca, se “navegar é preciso”, “o mar sem fim é português”, sugere o autor de “É proibido proibir”.

PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Ática, 1972.
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

 
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Padrão
(Fernando Pessoa)
O esforço é grande e o homem é pequeno.

Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.