Pesquisar canções e/ou artistas

15 junho 2019

Ao maior

Em entrevista à primeira edição do fanzine Cama surta (outubro de 2009), Glauco Mattoso afirma: "De dentro da minha cegueira, vejo que, para a poesia, a única tendência vital será o retorno às origens, ou seja, em vez de buscar a visualidade, recuperar a oralidade". Glauco Mattoso é o pseudônimo de Pedro José Ferreira da Silva. Poeta, ensaísta, ficcionista de perfil contracultural, pós-maldito.
Cego desde a década de 1990, se a relação entre Glauco Mattoso e a técnica do soneto poderia ser tomada como um recurso de registro, memória e sobrevivência do poeta, basta lembrar a figura do aedo cego, de Homero a Hölderlin, sem esquecer o "Assum preto" cantado por Luiz Gonzaga, esta relação já estava anunciada na "fase visual" do poeta. Exemplo disso é o poema "Bilacamonia" (Memórias de um pueteiro, 1982), paródia de "Nel mezzo del carmin", soneto de Olavo Bilac, que, por sua vez, cita a abertura de "O inferno", d'A divina comédia, de Dante Alighieri. Isso mostra a linhagem dos sonetos na qual Glauco tem consciência de estar inserido. Sete séculos! Linhagem que no Brasil começa com Cláudio Manuel da Costa. Ou seria já com Gregório de Matos (poeta que Glauco homenageia com a assinatura Mattoso)?
Como epígrafe de seu "Bilacamonia" (neologismo e palavra-valise que une Bilac e Camões), o poeta anota que "todo grande clássico da literatura é um plágio, ainda que não intencional. E todo grande manifesto da vanguarda é um clássico, ainda que não intencional. Os pequenos plágios são intencionais, ainda que não".
Eis a dialética da transgressão da qual Glauco Mattoso não foge. Aliás, o livro Memórias de um pueteiro - transgressor, explícito, confessional, aforismático, debochado e irônico - é um exemplo importante para perceber como a poesia dos anos 1980 sente o conteúdo histórico da ditadura militar. O autor incorpora satiricamente a tortura (e a fetichização da tortura) na/da linguagem poética: a repressão e o obsceno são ferramentas verbovisuais utilizadas para dizer o proibido.
Historiador, teórico e crítico do soneto, Glauco destaca o papel de Petrarca para a consolidação da forma: "Petrarca não só lhe fixou tal estrutura, mas nele embutiu um ideal literário novo. Pelo soneto petrarquiano entrou na literatura o amor, não já como acessório ou baixamente interpretado, mas expressão suprema de todas as delicadezas d'alma humana, como vida interior, como sacrifício de todos os sentimentos e de toda a meditação a um modelo de beleza perfeito até ao ideal e, como ideal, inatingível. Exumando-o da multidão confusa de mitos, alegorias, concepções metafísicas e materiais prefigurações que sobre ele tinham acumulado Dante e a escolástica medieva, Petrarca purificou o amor e revelou-o. Esse amor, assim largamente compreendido, é todo um vasto mundo de emoções novas, toda uma fecunda seara de novos temas para a imaginação artística e para a meditação subjetiva; esse amor é mesmo uma completa concepção moral, uma interpretação da vida, à qual dava causa e objetivo; segundo ele, só se vivia porque se amava e só se vivia para amar, pois era o amor, com seu conteúdo inexaurível que revelava às almas a sua vida interna e as fazia vibrar" (História e teoria do soneto, de Cruz Filho, anotado por Glauco Mattoso).
É esta "meditação subjetiva", expandida e dessacralizada por Glauco, ao tematizar hábitos desregrados e escatologias, o que marca sua poética, o que configura uma transgressão e uma curtição do cânone. Isso porque a poesia do autor de O que é poesia marginal? também evoca a poesia fescenina atribuída a Bocage e que atravessa o tempo e ainda hoje evoca a clandestinidade, o impróprio de nossa hipocrisia civilizacional e suas permanentes patrulhas ideológicas pseudomoralistas.
Na poesia de Glauco, o artificialismo com que a técnica do soneto se assentou na hegemonia da escrita cede lugar à produção de vozes, de subjetividades, de certa polifonia bakhtiniana. "Literature of transgression, with its ruptures in logic, anti-rationalism, Doinysian eroticism, reverence for irreverence, and love of excess, is most effectively produced in the sensory and sensuous realm of the carnivalesque", escreve Steven Butterman (in Perversions on Parade: brazilian literature of transgression and postmodern anti-aesthetics in Glauco Mattoso, p. 9).
O engenho do soneto está coligado com a transgressão. "As linguagens transgressivas são signos dialógicos destinados a todos e a ninguém, e que são, ao mesmo tempo, signos precursores de uma conscientização múltipla. De uma conscientização da alienação do artistas e do indivíduo pegos no torno da massificação. É a consciência de uma utopia potencialmente problemática, mas que se realiza como um sonho insistente. É também uma conscientização da natureza política e axiológica da linguagem", escreve Wladimir Krysinski (Dialéticas da transgressão, p. 29). No caso, Glauco Mattoso assume as estruturas discursivas e axiológicas do cânone efetuando uma problematização poética do sujeito contemporâneo: lírico e experimental, mas, sobretudo, usuário das regras, da herança constantemente reescrita, curtida - salmoura, vinagre, azeite, conserva.
Daí o plágio e a curtição como métodos, as citações, as releituras, as odes, as glosas. O soneto não como fim, mas como meio de subverter o poder do dominador, o peso histórico. Signo da pós-utopia haroldiana, a poesia de Glauco Mattoso não prolonga as ambições das vanguardas históricas. Ela não transgride as normas tradicionais, ao contrário, valoriza estas normas na invenção de um eu da (meta)linguagem.
A estrutura formal reflete o conteúdo do poema. Tome-se como exemplo "Ao maior", soneto decassílabo publicado em Paulisséia ilhada: sonetos tópicos (1999). O esquema rítmico dos quartetos (ABBA) figurativiza nas rimas interpoladas (A) o maior: o verbo, Deus, Camões; e nas rimas emparelhadas (B) o manipulador do verbo: no Brasil, o poeta Gregório de Matos, que utilizou o verbo divino - o corpo místico do Brasil colônia - para confrontar Deus: "Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, / Cobrai-a; e não queirais, pastor divino, / Perder na vossa ovelha a vossa glória".
Mas, reitero, é Camões a quem o eu se refere ao dizer "Maior é o meu poeta preferido", encerrando os quartetos de "Ao maior". A expressão "maior é o/a" repete-se, sempre na mesma posição: essa anáfora é valorizada como eco (efeito de ressonância, de retomada, de permanência) que reitera a precisão de Glauco: cantar Camões. "No tocante ao rigor da forma, adotei o modelo camoniano por entender que o decassílabo heróico é o que empresta maior cadência a um gênero supostamente decadente", anota Glauco na "Advertência" do livro Centopeia: sonetos nojentos & quejandos (1999).
Este gesto de usar a língua do outro para valorizar ou implodir o que no outro é beleza ou tirania - se é que há distinção - não é gesto novo. Que nos diga o padre José de Anchieta. O fato é que isso aparece na poesia de Glauco Mattoso como método: temos uma poética camoniana no formato e autorreferente na tematização. Persona fescenina, ele provoca: "Maior o masoquismo do que Sade". Maior é a poesia do que a forma? Maior é Pedro José Ferreira da Silva que Glauco Mattoso? "Ele revaloriza o 'tormento' interno de que são espelho a rigidez e disciplina, as quais exaltam, no processo mesmo de seu construir-se, uma 'subversão' que não se quer mais óbvia, e sim roendo, insidiosa, o poema por dentro", escreve Wilson Bueno na orelha do livro Paulisseia Ilhada.
"Quem faz muito soneto, cedo ou tarde / acaba produzindo uma obra-prima, / contanto que não faça muito alarde", sugere o eu poemático de "Ao maior". Se Gregório plagiou Sá de Miranda, um dos introdutores do soneto na língua portuguesa - "Mas, ay, a no ser yo, quien no te amara? / y si no fueras tu, quien me sofriera, / y a ti sin ti, mi Dios, quien me llebara?" -, Glauco plagiou Gregório "Por trás da mera métrica ou da rima / esconde-se a coragem do covarde / e o medo, que jamais me desanima" numa ciranda de poesia que sustenta, enfrenta e curte o verbo. Mais do que promover a desconstrução acrítica, a curtição alienada, o desbunde personalista, Glauco Mattoso implode cinicamente a tradição com "leite bom na cara dos caretas", como diz os versos de "Vaca profana", de Caetano Veloso - cancionista que, não por acaso, cita Glauco Mattoso na canção "Língua".
No soneto "Ao menor", do mesmo livro Paulisseia Ilhada, os versos "Quem faz muito soneto está sujeito / a ter alguns menores, comparados / aos sórdidos, que têm maior efeito. // Os meus dependem muito dos pecados / aos quais cada leitor é mais afeito. / Tarados também têm tons variados", além de mostrar o poeta colocando seus poemas em diálogo, afirma a metalinguagem investigativa e autorreflexiva. Neste sentido, o tom confessional de seus poemas é método e artifício para a implosão do dado, do estabelecido, da norma. Para Steven Butterman, "Glauco Mattoso assumes a performative transgressive identity, an identity that includes but also transcends a political definition of the social being in connection to the larger national or human society from which his voice emerges" (p. 10).
Para plagiar/desconstruir é preciso conhecer (por dentro) completamente, regra por regra. Mais apropriado, portanto, é dizer que Glauco Mattoso, mais do que plagiador, é glosador, utiliza a poesia do bardo, do vate, do menestrel ou do cantador como mote para compor a sua poética. Se o seu modelo brasileiro - Gregório de Matos - aclimatou, tropicalizou as formas fixas para a manutenção do poder do colonizador, Glauco Mattoso - pós-1922, pós-poesia-concreta, pós-tropicália, pós-1980 - utiliza as formas clássicas para tratar o intratável, o historicamente à sombra. Glauco torna Camões e Gregório seus contemporâneos, na concepção agambiana e trans-histórica: "Maior é o sabichão do que o sabido", escreve o poeta, reinserindo o soneto na ordem das discussões.
"Creio ter encontrado no soneto a fórmula mais disciplinar, mnemônica e laconicamente falando, para canalizar minha angústia sem abrir mão do pé, um fetiche arraigado, que agora se eleva à categoria de célula temática, em torno da qual cada poema funciona como variação orquestral", anota o poeta em Centopeia. É a apresentação vocal deste pé - técnica e fetiche, unidade rítmica - o que percebo ao ouvir os sonetos musicados de Glauco.
O disco Melopeia: sonetos musicados (2001) reúne peças do poeta cantadas por diversos cancionistas. No caso de "Ao maior", após uma introdução brilhante e floreada com o cravo barroco, entram em cena o violão 12 de Ney Couteiro e violão e voz de Madan. Especialista em musicar poemas - Adélia Prado, José Paulo Paes, Ademir Assunção, Augusto e Haroldo de Campos, Olga Savary, entre outros -, Madan faz do soneto "Ao maior" uma balada, uma ode ao verso glauquiano.
O título Melopeia serve de chave de audição, já que evoca tanto a parte melódica de um recitativo, quanto a categoria poundiana que se refere exatamente ao exercício do cancionista em recompor a entonação vocal embrionária da palavra escrita. As anáforas dos quartetos criam um estado mântrico (de repetição) próprio do conteúdo do poema. Madan compreende os encadeamentos, pois sabe que "por trás da mera métrica ou da rima / esconde-se a coragem do covarde / e o medo, que jamais me desanima".
Perguntado sobre "qual a maior diferença do poeta antes e depois da cegueira?", Glauco respondeu que "A principal differença foi que antes eu era anarchista e iconoclasta meio a serio, meio de brincadeira. Hoje sou um palhaço a serio, consciente de que minha missão é divertir meus leitores emquanto eu choro" (Diego El Khouri, Cama surta). Sua vingança - seu lance de dados no jogo de posições entre dominador e dominado - é compor sonetos. Até 2019 o poeta já compôs mais de 5.000.

***

Ao Maior
(Glauco Mattoso / Madan)

Maior é o sentimento que o sentido.
Maior é a solidão do que a saudade.
Maior é a precisão do que a vontade.
Maior é Deus, segundo o desvalido.

Maior é o sabichão do que o sabido.
Maior é a servidão que a majestade.
Maior é o masoquismo do que Sade.
Maior é o meu poeta preferido.

Quem faz muito soneto, cedo ou tarde
acaba produzindo uma obra-prima,
contanto que não faça muito alarde.

Por trás da mera métrica ou da rima
esconde-se a coragem do covarde
e o medo, que jamais me desanima.